Devemos muito à vaca. Mas há quem a veja como inimiga. A vaca, aqui referida como a parte pelo todo bovino, é acusada de contribuir para a degradação do ambiente e para o aquecimento global. Cientistas atribuem ao 1,4 bilhão de cabeças de gado existentes no mundo quase metade das emissões de metano, um dos gases causadores do efeito estufa.
Acusa-se as chifrudas de beber água demais e ocupar um espaço precioso para a agricultura. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que um terço das terras do planeta seja utilizado para a pecuária. O corolário é que, a continuar desse jeito, faltará solo para plantar comida para os 2,5 bilhões de pessoas que se somarão à população mundial até 2050.
ONGs fundamentalistas de defesa dos bichos, como a Peta, dos Estados Unidos, não ruminaram muito sobre o assunto e já incorporaram o discurso do aquecimento e da fome globais a suas campanhas contra o consumo de produtos animais. Pura conversa para boi dormir.
O truísmo inconveniente é que homem e vaca são unha e carne. "O ser humano e o gado bovino representam o caso mais perfeito de simbiose entre mamíferos", escreveu o crítico cultural Florian Werner, autor do livro A Vaca – Vida, Obra e Influência, publicado neste ano na Alemanha. Imaginar o mundo sem vacas é como desejar um planeta livre dos homens – uma ideia, aliás, vista com simpatia por ambientalistas menos esperançosos quanto à nossa espécie.
"Alterar radicalmente o papel dos bovinos no nosso cotidiano, subtraindo-lhes a importância econômica, pode levá-los à extinção e colocar em jogo um recurso que está na base da construção da humanidade e, por que não, de seu futuro", diz o veterinário José Fernando Garcia, da Universidade Estadual Paulista em Araçatuba, interior de São Paulo. Garcia coor-denou a equipe científica brasileira que participou do sequenciamento do genoma da vaca, concluído em abril passado. Esse trabalho, além de dar subsídios ao melhoramento genético das raças bovinas, tem utilidade para muito além do pasto. Afinal de contas, a vaca tem 80% dos genes idênticos aos nossos e um sistema imunológico bem mais forte.
Entender como ele funciona pode ajudar a descobrir a cura para doenças que ainda nos afligem. A medicina deve muito à nossa amigona quadrúpede. Escritos egípcios de 4 000 anos atrás revelam que os sacerdotes responsáveis pela saúde dos faraós também "entendiam de gado", ou seja, provavelmente utilizavam as vacas como cobaias. Em 1796, o médico inglês Edward Jenner inventou o processo de vacinação ao inocular em uma criança o vírus da versão bovina da varíola. A palavra vacina, por sinal, vem do latim vacca.
Voltando à vaca fria, ou melhor, à tese inicial: o gado bovino foi tão vital ao desenvolvimento da humanidade que entre as mais antigas pinturas rupestres já encontradas estão aquelas que retratam a caça de auroques, os ancestrais dos bovinos. A adição de proteína animal na alimentação dos hominídeos foi o que permitiu atender à demanda energética que acompanhou, em termos evolutivos, o crescimento do cérebro.
Ou seja, não fosse a dieta onívora, teríamos uma capacidade de raciocínio infinitamente menor. Seríamos uns ruminantes na acepção metafórica. O problema é que caçar auroques – leia-se: conseguir proteína animal para manter o cérebro funcionando – era um esporte arriscado e nem sempre exitoso. Na descrição feita há mais de 2 000 anos pelo imperador romano Júlio César, eles eram "um pouco menores que elefantes". Por isso, representou um grande avanço quando o auroque foi finalmente domesticado, há 10 000 anos. Isso aconteceu separadamente em duas regiões distintas do globo, onde hoje ficam o Oriente Médio e a Índia. No primeiro caso, deu-se origem ao gado taurino (Bos taurus) e, no segundo, ao zebu (Bos indicus). As duas espécies, com o passar dos milênios, resultaram em quase 900 raças. A vaca é uma invenção humana.
A domesticação consistia em prender os animais selvagens mais dóceis e deixar que eles se reproduzissem. Assim começaram as primeiras experiências com melhoramento genético. As vacas davam leite, carne, couro para se proteger do frio e ossos para a fabricação de ferramentas. Os bovinos eram uma fonte ambulante de comida fresca e, como tal, representavam literalmente a salvação da lavoura quando secas ou pragas destruíam os cultivos vegetais. Mas o animal também foi essencial para o próprio desenvolvimento da agricultura. A vaca foi o primeiro motor da história: atrelada a um eixo com rodas ou a um arado, sua força de trabalho deu ao homem tanto mobilidade como condições de abandonar a vida nômade.
Os novos hábitos sedentários e os excedentes de alimentos, ambos consequências tanto da criação de gado quanto da agricultura, deram origem às cidades e às civilizações. Já nas primeiras sociedades, quem possuía um maior número de cabeças de gado desfrutava mais status. Na Grécia antiga, davam-se às meninas nomes antecipando os dotes que seus futuros noivos receberiam: Polyboia, por exemplo, significa "aquela que tem muitas vacas".
A própria palavra capitalismo vem do latim caput, uma referência às cabeças de gado que definiam um homem rico. E pecuária tem a mesma raiz de pecunia, latim para "dinheiro". A vaca tem um papel econômico crucial até onde é considerada animal sagrado. Na Índia, metade da energia doméstica vem da queima de esterco. O líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), que, como todo hindu, não comia carne bovina, escreveu: "A mãe vaca, depois de morta, é tão útil quanto viva". Nos Estados Unidos, as bases da superpotência foram estabelecidas quando a conquista do Oeste foi dada por encerrada, em 1890, fazendo surgir nas Grandes Planícies americanas o maior rebanho bovino do mundo de então.
"Esse estoque permitiu que a carne se tornasse, no século seguinte, uma fonte de proteína para as massas, principalmente na forma de hambúrguer", escreveu Florian Werner. Até hoje, quando o PIB de um país cresce, eleva-se paralelamente o seu consumo per capita de carne. Comer um bom bife é uma aspiração natural e cultural. Ou seja, nem que a vaca tussa a humanidade deixará de ser onívora.
Diogo Schelp
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