Décadas mais tarde, já no limiar do século XIX, Machado de Assis, em uma de suas crônicas, recomendava aos políticos locais que jamais falassem em nome do “povo brasileiro”, mas, no máximo, em nome daquela pequeníssima parcela alfabetizada da população, parcela que supostamente conseguia entender o que era dito pelos ilustres “representantes do povo”.
Ainda que nos soem um tanto “politicamente incorretos”, tais comentários, por certo, receberiam o aval da esmagadora maioria dos letrados brasileiros do século XIX. Todos, com mais ou menos paixão, comungaram da idéia de que havia um país a construir, sem dúvida, mas sobretudo, e especialmente, de que havia um povo a civilizar, um povo rústico e iletrado, “ansioso” por ser banhado pelas “luzes” da cultura ocidental-européia.
“crença” era antiga e, de certo modo, saíra, como tantas outras idéias caras aos homens de letras do Brasil oitocentista, das narrativas de viagem. O visitante europeu, desde muito cedo, pintou a população local como bárbara ou, no mínimo, como semi-bárbara, de qualquer modo, muito necessitada da cultura e das regras de civilidade européias.
Há uma passagem sobremodo ilustrativa de tal crença no conhecido “Viagem pelo Brasil”, dos alemães Spix e Martius. Logo que desembarcaram no Rio de Janeiro, em 1817, os naturalistas trataram de registrar, certamente para a surpresa de muitos dos seus leitores europeus, o seguinte:
“Quem desembarca convencido de encontrar esta parte do mundo, descoberta só desde três séculos, com a natureza inteiramente rude, violenta e invicta, poder-se-ia julgar, ao menos aqui na capital do Brasil, fora dela, tanto fez a influência da civilização e cultura da velha e educada Europa para remover deste ponto da colônia as características da selvageria americana, e dar-lhe cunho de civilização avançada. Língua, costumes, arquitetura e afluxo de produtos de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro aspecto europeu”.
No que tange à “selvageria americana”, os simpáticos sábios prussianos não são, nem de longe, os primeiros a tecerem tal gênero de comentário. Ao contrário, trata-se de um “lugar comum” das narrativas de viagem sobre o Brasil, um tópico cuja origem remonta ao século XVII, quando começam a aparecer as primeiras descrições estrangeiras das cidades costeiras espalhadas pelo litoral brasileiro.
O que é novo na observação destes visitantes das décadas iniciais do século XIX é a “esperança” de que o contato mais intenso com a cultura européia, propiciado pela abertura do país às gentes e coisas de outras nações, cedo apagaria nos brasileiros os vestígios dessa tal “selvageria”.
Felizmente ou infelizmente, e isso pouco importa a essa altura, a dita “intelligentsia” local, ao menos aquela do século XIX, herdou, quase como um filho primogênito, a perspectiva desses visitantes; um pouco acerca de si própria, sem dúvida, daí o seu comportamento sempre acanhado e submisso diante daquele ou daquilo que “vinha do estrangeiro”, mas sobretudo acerca daquela entidade que ganhou formas e cores ao longo do século XIX, o denominado povo brasileiro.
É raro encontrar um letrado coetâneo que não tenha olhado para essa “ralé de todas as cores”, como dizia o regente Feijó, como uma espécie de malta desordeira e ignara na qual era preciso, a todo preço -por meios propositivos, mas também à custa da força, se necessário fosse-, incutir princípios de civilidade.
José de Alencar, tempos depois, numa defesa que faz de sua peça “Asas de um Anjo”, acusada na época de imoral, comenta: “Não há aí uma só personagem que não represente uma idéia social, que não tenha uma missão moralizadora”. Ainda mais contundente neste aspecto é o político e literato Quintino Bocaiúva que, em 1863, respondendo a uma carta do jovem Machado de Assis, procura incentivar o escritor novato com as palavras seguintes:
"És moço, e foste dotado pela Providência com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéia é uma força. Inoculá-la no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da regeneração moral (...). Repito, pois, nessa obra de cultivo literário há uma obra de edificação moral”.
Edificação moral, missão civilizadora, doutrinação do povo, as designações são muitas, mas a “missão” é sempre a mesma: através da “Ilustração”, educar e moralizar um povo que, àquela altura, estava, aos olhos desses homens, há milhas de distância do ideal de cidadão que se queria para o jovem país.
Tal concepção, ao menos, verdade seja dita, mostrou-se, ao fim e ao cabo, mais pragmática, sobretudo depois de se “descobrir” que, em um país com carências elementares, a “conscientização” do povo dispensa a “elitista” solução do Oitocentos de civilizá-lo, de “derramar a educação sobre todas as classes” -como dizia o conservador Bernardo de Vasconcelos. Em país de “gente simples”, basta uma “bolsa-família”.
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