16 de mar. de 2008

D. João


Em março são completados 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, após curta passagem pela Bahia. Para muitos pode ser apenas curiosidade histórica, “acidente napoleônico”, pois a família real trocou Portugal pelo Brasil fugindo da invasão comandada pelo general Andoche Junot.

Mas a chegada da corte alterou profundamente as condições do Brasil e, entre outros efeitos, abriu espaço para a pesquisa científica, ao mesmo tempo que permitiu a impressão de livros e jornais pela criação da Imprensa Régia. Ainda assim, a chegada da corte – na verdade em séqüito de 15 mil pessoas a bordo de 35 embarcações – continua motivo de chacota e ironia. É verdade que a condição dos fugitivos não era nada confortável.

Relatos de testemunhas dizem que exalavam um odor insuportável, atormentados por pulgas e piolhos, sem contar o embaraço representado por d. Maria, a Louca, mãe de d. João.
Ela resistira em deixar Portugal, determinada a enfrentar as tropas do general “Tempestade” – como Junot era conhecido –, e, no Rio, ainda lamentava com um repetitivo “Ai, Jesus!”, intercalado por impropérios. D. João é uma personagem controvertida nesse cenário aparentemente confuso, mas a ele devemos uma base histórica de ciência no Brasil, ainda que não se possa dizer que tenha sido um homem de cultura. De sensibilidade, sem dúvida.

Os problemas do príncipe português começavam por seu porte físico, baixo e atarracado, estendendo-se para o que sua mulher – a venenosa d. Carlota Joaquina – considerava “falta de autoridade”. D. Carlota não ajudou em nada a minimizar as dificuldades. Ao contrário, contribuiu para piorar a situação todo o tempo em que esteve no Brasil, até 1821. Registros históricos relatam incidentes criados por ela e seu autoritário corpo de segurança envolvendo representações diplomáticas estrangeiras. E ela se deliciava com tudo isso.

Filha de Carlos IV da Espanha e de Maria Luisa – a fogosa rainha que brigou com a duquesa de Alba por ciúmes de Goya, pintor dos reis de Espanha e autor de um de seus retratos –, era bisneta de Luís XV. Fisicamente é descrita como uma criatura baixa, feia e disforme, portando alguma barba e um indisfarçável bigode. O cronista Paulo Setúbal garante que ela apreciava a fumaça inebriante da Cannabis sativa e teve liberdades íntimas até com um jardineiro real. De irrefutável, sabe-se que d. Carlota odiava o Brasil e manipulou o que pôde para uma submissão à Espanha, com talento para tecer a intriga palaciana.

Todo esse conjunto de elementos contribui para a interpretação de uma fuga apressada e pouco corajosa da família real para o Brasil, situação que talvez valha a pena ser reconsiderada às vésperas do 200º aniversário desse acontecimento. E isso por várias razões, entre elas a compreensão de como a ciência se implantou e se desenvolveu por aqui.
O primeiro convite para uma revisão nesse sentido foi feito em 1909, com a publicação de D. João VI no Brasil, do diplomata e historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima (1867-1928). Oliveira Lima, entre outras considerações, revê a estratégia de fuga da corte, substituindo por astúcia e premeditação o que sempre se considerou fraqueza e frouxidão.
Com a mudança para o Brasil, avalia Oliveira Lima, a monarquia dos Bragança escapou da humilhação que deixou prostradas outras realezas européias, caso dos Bourbon da Espanha e da Itália, do rei da Prússia e do monarca austríaco.A primeira prova de uma pretensa sagacidade portuguesa?

Nada disso. Considere o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494 com a Espanha (Castela) para ampliação dos limites portugueses de 100 para 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Antes mesmo de Colombo ter feito sua viagem de descobrimento, em 1492, cosmógrafos portugueses tinham consciência de seu erro – idéia de que ele havia atingido as Índias.
Portugal obteve sucesso em Tordesilhas, negociando diretamente com os reis católicos Fernando e Isabel, e dessa forma assegurou parte do território brasileiro de que seguramente tinha conhecimento, dissimulado pelo que ficou conhecido como Política do Sigilo.

Há quem sustente que os espanhóis acataram Tordesilhas por esperar estabelecer a união ibérica pela estratégia de casamentos reais. A união acabou se dando, entre 1580 e 1640, por outras razões. Mas a verdade é que Portugal, já em fins do século 15, tinha domínio dos mares superior ao da Espanha. E sagacidade para negociar, levando em conta desvantagens como pequeno território e reduzida população, ao menos em comparação à Espanha.
À época da chegada da corte, vários problemas afligiam a coroa portuguesa. A restauração dos Bragança – após o intervalo de domínio espanhol, pela morte de d. Sebastião, o Desejado – custara caro. O apoio da Inglaterra a essa emancipação significou o casamento da infanta d. Catarina, filha de d. João IV, com o rei Carlos II da Inglaterra, acompanhado de dote de 2 milhões de cruzados e a entrega de Tânger, na África, e Bombaim, na Índia.
A expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro – a região mais rica da colônia, pela produção de açúcar – em 1654 também implicara uma indenização definida pelo Tratado de Paz de Haia, de 4 milhões de cruzados, acompanhada da entrega do Ceilão e das ilhas Molucas.

A volatilização de patrimônios e a perda de renda fizeram com que, às vésperas da partida da corte, Portugal estivesse engolfado em dificuldades financeiras, com rarefação do fluxo de ouro e diamantes do Brasil, que atingiu o auge por volta de 1750. A corte chegou com tudo que pôde carregar, incluindo sobras de somas envolvidas na tentativa de negociar neutralidade com a França. Talvez a carga mais valiosa tenham sido as máquinas de impressão vindas da Inglaterra e ainda não desencaixotadas, além dos 60 mil exemplares de livros que deram origem à Biblioteca Real, ainda em 1808, transformada depois em Biblioteca Pública. À biblioteca somaram-se o Horto Real, depois Jardim Botânico, e o Banco do Brasil, entre outros.

A irrupção da ciência no Brasil – criação de instituições de saúde e preparação de médicos em substituição aos barbeiros, academia militar etc. – se deu pelas mãos de d. João VI, em quem Oliveira Lima enxergou um homem paciente e generoso, dividindo personalidade com um glutão.

Quando a corte desembarcou no Rio, a primeira atividade científica no Brasil, a observação e descrição do céu austral – incluindo o Cruzeiro do Sul – por Mestre João, estava para completar 308 anos. Pode-se falar de ciência no Brasil apenas a partir de 1808.
Homens como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) não só contribuíram para a consolidação da pesquisa aqui como conquistaram prestígio internacional e, metaforicamente, acenaram – ao mesmo tempo que desejaram – com implantar nos trópicos uma nação desenvolvida, nos moldes dos países europeus onde estudaram.
Dois séculos depois da abertura de d. João, o mecenato capaz de estimular a produção, divulgação e aumento da atividade científica no Brasil praticamente inexiste, ao contrário do que ocorre em países como os Estados Unidos. A astronomia internacional, especialmente a cosmologia, só atingiu o estágio atual com a construção de observatórios como os de Monte Wilson e Palomar, resultado de generosa filantropia privada americana. Por aqui, nada disso sensibiliza.
Ulisses Capozzoli

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