Um único neurônio está sobre placa de petri, isolado, mas vibrando, muito satisfeito consigo mesmo. De vez em quando, libera espontaneamente uma onda de corrente elétrica que percorre todo o seu corpo.
Ao aplicar pulsos elétricos a uma extremidade do neurônio, ele pode responder com novos pulsos de tensão. Mergulhando o neurônio em vários neurotransmissores, é possível alterar a intensidade e o sincronismo das ondas elétricas.
Na placa, isolado, o neurônio não consegue fazer muita coisa. Mas coloque 302 neurônios juntos, e eles se tornam um sistema nervoso capaz de manter vivo o verme Caenorhabditis elegans, sondar o ambiente, tomar decisões e enviar comandos para o corpo do organismo. Junte 100 bilhões de neurônios – com 100 trilhões de conexões – e terá um cérebro humano, capaz de fazer muito, mas muito mais.
Continua um mistério o fato de nosso cérebro se formar a partir de um conjunto de neurônios. A neurociência ainda não tem condições de esclarecer esse enigma, apesar de todas as suas conquistas. Alguns neurocientistas passam a vida toda explorando neurônios isolados. Outros escolhem uma escala mais alta: observam, por exemplo, como o hipocampo – um aglomerado de milhões de neurônios – codifica as lembranças.
Outros estudam o cérebro numa escala ainda mais refinada analisando as regiões ativadas em processos como ler ou sentir medo. Mas poucos tentam visualizar o cérebro em todas essas escalas simultaneamente. Em parte, a dificuldade está relacionada à natureza complexa do empreendimento. A interação apenas entre alguns neurônios pode ser um conjunto complexo de feedbacks. Acrescente mais 100 bilhões de neurônios e esse problema se transforma num insolúvel quebra-cabeça.
Alguns cientistas, no entanto, consideram que chegou a hora de enfrentar esse desafio. Eles acreditam que nunca entenderemos de fato como o cérebro se forma a partir do sistema nervoso, mesmo dividindo-o em peças separadas. Observar apenas os pedaços seria o mesmo que tentar descobrir como a água se congela estudando uma única molécula dela. “Gelo” é um termo sem sentido na escala de moléculas individuais. O conceito só existe graças à interação entre um número imenso de moléculas, que se agregam para formar cristais.
Felizmente, os neurocientistas podem se inspirar em outros pesquisadores que estudam diferentes formas da complexidade há décadas – do mercado de ações e circuitos de computadores à interação gênica e proteica em uma única célula. O mercado de ações e uma célula podem não ter muito em comum, pois os pesquisadores descobriram algumas semelhanças intrínsecas em todos os sistemas complexos que estudaram. Ferramentas matemáticas específicas foram desenvolvidas para facilitar a análise desses sistemas.
Os neurocientistas estão começando a usar essas ferramentas para tentar entender a complexidade do cérebro. A pesquisa está apenas engatinhando, mas os resultados já são promissores. O importante, segundo os cientistas, é descobrir as regras que bilhões de neurônios obedecem para se organizar em redes, e como elas se unem numa única estrutura coerente que chamamos cérebro. Para eles, a organização dessa rede é fundamental para entendermos um mundo sempre em mudanças. Alguns transtornos mentais mais devastadores, como esquizofrenia e demência, podem resultar do colapso parcial de redes
cerebrais.
Os neurônios formam redes estendendo axônios, que fazem contato com outros neurônios. Quando isso ocorre, um sinal que se propaga por uma célula nervosa pode disparar uma onda de corrente em outros neurônios. Como cada célula pode se unir a milhares de outras – tanto as próximas, como as que se encontram do outro lado do cérebro – as redes neurais podem assumir um incrível número de arranjos. A forma como uma determinada rede se organiza tem enormes implicações no funcionamento do cérebro.
CÉREBRO DE BRINQUEDO
qual a melhor forma de estudar a rede de neurônios do cérebro? Que experimentos os cientistas podem fazer para rastrear bilhões de conexões em rede? Uma alternativa é construir um modelo do cérebro em miniatura, que mostre as diferentes formas de interação entre os neurônios. Olaf Sporns, da Indiana University, e seus colegas criaram exatamente esse modelo. Na simulação, juntaram 1. 600 neurônios e os distribuíram sobre uma superfície esférica, ligando depois cada neurônio aos demais. Em qualquer instante, todos os neurônios têm uma chance mínima de se ativar espontaneamente. Uma vez ativados, têm também uma pequena chance de acionar outros neurônios ligados a eles.
Sporns e sua equipe soldaram as conexões entre os neurônios e observaram o cérebro de brinquedo em ação. Inicialmente conectaram cada neurônio apenas a seus vizinhos imediatos. Com a rede formada, o cérebro produzia pequenos lampejos aleatórios de atividade. Quando um neurônio se ativa espontaneamente, cria uma onda elétrica que desaparece rápido. Quando os pesquisadores ligaram cada neurônio aos demais, no cérebro, o padrão resultante foi bem diferente: o cérebro inteiro foi ativado e desativado em pulsos regulares.
No fim, os cientistas acabaram atribuindo cérebro uma rede intermediária, criando conexões locais e de longa distância entre os neurônios. O cérebro havia se transformado, então, num sistema complexo. Quando os neurônios começaram a se ativar, surgiram grandes padrões brilhantes de atividade que se propagavam pelo cérebro. Alguns deles colidiam entre si e outros se propagavam pelo cérebro em círculos.
O cérebro de brinquedo de Sporns ensinou uma lição importante sobre o aparecimento da complexidade. A própria arquitetura da rede molda seu padrão de atividade. Sporns e outros pesquisadores estão aprendendo as lições que juntaram aos poucos de outros modelos cerebrais e tentando obter padrões similares em cérebros reais como os nossos. Infelizmente, os cientistas não podem monitorar cada neurônio de nosso cérebro. Por isso, usam técnicas inteligentes para registrar a atividade de alguns neurônios e tiram conclusões fantásticas desses resultados.
EM PLACAS DE PETRI
dietmar plenz, neurocientista do instituto nacional de saúde mental dos Estados Unidos, e seus colaboradores tentaram analisar a arquitetura do cérebro estimulando o crescimento de volumes de tecido cerebral do porte de sementes de gergelim em placas de Petri. Eles prenderam 64 eletrodos ao tecido para examinar o acionamento espontâneo dos novos neurônios. Os eletrodos detectaram uma rápida manifestação de atividade conhecida
como avalanches neurais.
De início, parecia que os neurônios estavam apenas espoucando com ruído aleatório. Se isso estava realmente ocorrendo, então haveria a mesma probabilidade de que cada avalanche neural fosse mínima ou de grande alcance. No entanto, não foi isso que Plenz e os colegas descobriram. Avalanches pequenas eram muito frequentes; as grandes, mais raras; e as muito grandes, mais incomuns ainda. Num gráfico, as probabilidades de ocorrência de diferentes tamanhos formavam uma suave curva descendente.
Os cientistas já estavam bem familiarizados com esse tipo de curva. Os batimentos cardíacos, por exemplo, não são todos iguais. A maioria é um pouco mais longa ou mais curta que a média. Um pequeno número de batimentos é muito mais longo ou curto, e um número muito menor é ainda mais longo ou curto que a média. Terremotos seguem o mesmo padrão. O deslocamento das placas continentais produz muitos terremotos fracos, mas poucos muito intensos. Durante epidemias, normalmente novos casos surgem a cada dia, com um surto esporádico de novos casos. Se fizermos um gráfico, os batimentos cardíacos, terremotos e o número de novos casos, eles formarão um curva
exponencial descendente.
Essa curva, conhecida como lei de potências, é a marca registrada de uma rede complexa que engloba conexões de curta e de longa distância. Um tremor em determinado ponto da Terra pode, em alguns casos, espalhar-se somente por uma área restrita. Em casos raros, o abalo se estende por uma região mais ampla.
Os neurônios se comportam da mesma forma. Às vezes ativam apenas seus vizinhos imediatos, mas, em outras podem deflagrar uma onda de atividade que se estende por uma vasta área.
A forma de curva da lei de potência pode fornecer pistas sobre a rede que a produziu. Plenz e seus colaboradores testaram várias redes neurais possíveis para ver quais produziam avalanches neurais como no caso de neurônios reais. O melhor ajuste para a curva foi obtido com uma rede de 60 aglomerados de neurônios. Esses aglomerados estavam conectados, em média, a 10 outros, e as conexões não se espalhavam aleatoriamente entre eles. Poucos aglomerados continham inúmeras conexões, enquanto muitos apresentavam apenas algumas. Como resultado, o número de conexões de um aglomerado com qualquer outro era bastante reduzido. Os cientistas chamam esse tipo de arranjo de redes de pequeno porte.
Verificou-se que esse tipo de rede pode tornar o cérebro absolutamente sensível aos sinais que chegam até ele, da mesma forma como um microfone amplifica uma ampla faixa de sons. Plenz e sua equipe aplicaram descargas elétricas de diferentes intensidades e mediram a resposta neural. Verificaram que descargas fracas estimulam um número limitado de neurônios, e descargas fortes provocam respostas intensas de uma faixa mais ampla de células.
Para entender como a estrutura da rede afeta essa resposta, os pesquisadores adicionaram uma droga aos neurônios que enfraquecia as conexões entre eles, e as células nervosas deixaram de responder aos sinais fracos. Mas, resultados diferentes foram obtidos quando os cientistas injetaram uma droga que tornava os neurônios mais propensos a se ativar em resposta ao contato com seus vizinhos. Nesse caso, os neurônios responderam intensamente aos sinais fracos – tão intensamente que a resposta aos sinais fracos equivalia à dos fortes. Esses experimentos revelaram como as redes neurais podem ser finamente sintonizadas e como essa sintonia fina permite que elas transmitam os sinais com precisão. Se os neurônios fossem organizados numa rede diferente, produziriam respostas incoerentes e sem sentido.
A grande dúvida agora é como relacionar a atividade observada na placa de laboratório com os processos mentais do dia a dia. Observando o cérebro como um todo, os pesquisadores descobriram padrões de atividade espontânea que refletem o mesmo tipo de padrão encontrado por Plenz nos blocos de tecido cerebral. Marcus E. Raichle da Washington University em St. Louis, e seus colaboradores descobriram que as ondas elétricas podem se propagar por todo o cérebro em padrões complexos quando estamos descansando, sem pensar em nada específico. Experimentos recentes sugerem que essa atividade espontânea pode desempenhar papel vital na vida mental. Pode permitir que a mente em repouso afete suas funções internas, revendo lembranças e planejando o futuro.
CARTÓGRAFOS NEURAIS
para entender como essas ondas se comportam, os neurocientistas estão tentando mapear as conexões entre neurônios de todo o cérebro. Considerando o desafio de investigar o que ocorre num minúsculo pedaço de tecido cerebral, esse desafio parece gigantesco. Sporns dirige um dos projetos mais ambiciosos de mapeamento neural. Juntamente com Patric Hagmann, da Universidade de Lausanne, na Suíça, e seu grupo de neuroimagem, ele analisou dados obtidos do cérebro de cinco voluntários, usando um método conhecido como imagem de espectro de difusão, ou DSI (na sigla em inglês). O DSI captura rapidamente imagens de axônios cobertos por uma fina camada de gordura – fibras longas que se conectam a diferentes regiões do córtex, conhecida como matéria branca. Os cientistas selecionaram quase mil regiões do córtex e mapearam conexões da matéria branca de cada uma delas com as demais.
A partir daí criaram uma versão simulada dessas mil regiões e realizaram experimentos para analisar os tipos de padrão produzidos. Cada região gerou sinais que podiam se propagar para as regiões conectadas, fazendo com que neurônios de outras regiões também enviassem sinais semelhantes. Quando esse cérebro virtual foi ativado, começou a produzir ondas de atividade que se desviavam de maneira lenta. Curiosamente, essas ondas se pareciam com as oscilações reais observadas por Raichle em cérebros em repouso.
A rede que Sporns e seus colegas mapearam em todo o cérebro apresenta uma organização muito semelhante àquela menor, que Plenz encontrou em seus pedacinhos de tecido: uma rede de pequeno porte, com poucos centros ou nós bem conectados. Essa arquitetura de grande escala pode ajudar nosso cérebro a economizar recursos e trabalhar mais rápido. Gastamos muitos recursos para desenvolver e manter a matéria branca. Como alguns centros bem conectados, nosso cérebro precisa de muito menos matéria branca do que necessitariam outros tipos de redes. E como são necessárias poucas conexões para ir de uma parte a outra do cérebro, a informação é processada mais rapidamente.
Em um ano, os neurocientistas terão condições de gerar mapas muito mais precisos das redes neurais, graças a um roje to de US$ 30 milhões lançado em 2009 pelo Instituto Nacional da Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês). Conhecido como Human Connectome Project (a exemplo do Human Genome Project), o projeto pretende identificar todas as conexões entre neurônios de um cérebro adulto. Mas mesmo um mapa tão amplo não deverá abrigar a complexidade do cérebro humano, porque os neurônios utilizam somente um subconjunto de conexões cerebrais para se comunicar com outros. De uma hora para outra, essa rede poderá mudar de forma à medida que algumas conexões são desativadas e outras ativadas. Para criar modelos cerebrais, que possam capturar todas essas redes dinâmicas, será preciso lançar mão de todas as artimanhas da interação que a teoria da complexidade pode oferecer.
NEURÔNIOS DE WALL STREET
dois matemáticos do dartmouth college, Daniel N. Rockmore e Scott D. Pauls, estão tentando analisar essa complexidade tratando o cérebro como um mercado de ações. Os dois ambientes consistem em grandes quantidades de pequenas unidades – neurônios e investidores – que estão organizados em uma rede de larga escala. Os investidores podem influenciar os demais na forma de comprar e vender ações; e essa influência pode se espalhar e afetar o mercado todo, fazendo o valor dos títulos subir ou descer. A rede toda, por sua vez, pode influenciar níveis mais baixos. Quando o mercado de ações começa a subir, por exemplo, os investidores isoladamente podem querer entrar numa corrida que faz o mercado subir mais ainda.
Rockmore, Pauls e seus colegas desenvolveram um conjunto de ferramentas matemáticas para descobrir qual o tipo de estrutura da rede da Bolsa de Valores de Nova York. Eles tiveram acesso aos dados do preço de fechamento diário de 2.547 ações durante 1.251 dias e tentaram encontrar semelhanças na variação de preços de diferentes papéis – por exemplo: uma tendência de ascensão e queda praticamente simultânea. Essa pesquisa revelou a existência de 49 aglomerados de ações. Quando os cientistas retomaram os dados financeiros, descobriram que os aglomerados correspondiam principalmente a determinados setores da economia, como software ou restaurantes, ou a determinadas regiões, como América Latina ou Índia.
O fato de terem encontrado essas categorias simplesmente analisando dados tornou os cientistas mais confiantes nos próprios métodos. Afinal de contas, faz sentido que ações de empresas de acesso à internet tendam a subir e cair em cadeia (efeito dominó). Um vírus perigoso poderia pôr em risco o grupo todo.
Rockmore e Pauls também descobriram que esses 49 aglomerados estavam, na verdade, organizados em sete superaglomerados. Em vários casos, esses superaglomerados correspondiam a indústrias que dependem umas das outras. O setor de shoppings lineares e o setor da construção caminham lado a lado. Os pesquisadores também perceberam que esses superaglomerados estavam ligados a um loop gigantesco criado, provavelmente, por uma prática comum entre administradores de investimentos, chamada de rotação setorial.
Ao longo de vários anos esses administradores movimentaram o dinheiro de uma parte da economia para outra. No momento, Rockmore e Pauls estão usando os mesmos métodos matemáticos para construir modelos cerebrais. Em vez de informação financeira se movimentando de uma parte do mercado para outra, eles analisam informações que se deslocam de uma região do cérebro para outra. E da mesma forma que os mercados financeiros têm redes dinâmicas, o cérebro pode reorganizar sua rede de um momento para outro.
Para testar seu modelo, Rockmore e Pauls analisaram, recentemente, imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) que Raichle e seus colegas obtiveram do cérebro de uma pessoa em repouso. Eles observaram o aumento e diminuição da atividade de cada voxel – a menor região que uma fMRI pode medir, ou seja, uma porção do cérebro do tamanho de um grão de pimenta. Eles tentaram encontrar relações íntimas entre os padrões. Exatamente como os dois aglomerados no mercado de ações, eles agora descobriram que os voxels podiam ser agrupados em 23 aglomerados. E estes, por sua vez, pertenciam a quatro aglomerados maiores. Curiosamente, esses quatro aglomerados maiores correspondiam a uma versão neurológica da rotação setorial que Rockmore e Pauls encontraram no mercado de ações. Esses aglomerados se mantêm juntos num loop, e ondas de atividade os arrastam
num ciclo.
Como Rockmore e Pauls já são capazes de reconstruir a rede num cérebro em repouso, agora estão interessados em estudar o cérebro em ação, isto é, pensando. Para entender como o cérebro altera sua organização, eles analisaram dados de fMRI de pessoas às quais eram mostrados alguns objetos. Se o modelo funcionar, os pesquisadores poderão predizer que tipo de resultado os neurocientistas obteriam da imagem de ressonância magnética de uma pessoa que recebe um determinado tipo de estímulo, como ver o rosto de um velho amigo. Isso poderia tornar a neurociência uma ciência verdadeiramente profética.
Apesar dos avanços já obtidos, ainda vai demorar até a complexidade do cérebro humano ser completamente decifrada. O verme C. elegans é um bom exemplo disso. Há mais de 20 anos o mapeamento de todas as conexões que interligavam seus 302 neurônios foi concluído, mas até agora os pesquisadores não sabem como essa rede simples dá origem a um sistema nervoso dinâmico.
Carl Zimmer
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