12 de jan. de 2014

Eusébio - Brincando nos campos de Salazar

No Portugal dos anos 1960, abundavam as imagens de Eusébio da Silva Ferreira. Ele ali estava, espalhado por jornais e revistas, mas também em programas e serviços noticiosos da Radiotelevisão Portuguesa. Atleta do Benfica e da seleção nacional, sempre na sua função de jogador de futebol, era aclamado pelo inegável talento. 
No Portugal metropolitano de então, onde rareavam ainda os naturais de África, nunca um negro merecera tanto destaque e fora objeto de tamanha glória.

Uma representação dessas distinguia-se da imagem do africano, que proliferara na cultura popular. Como demonstrou Isabel Castro Henriques (A Herança Africana em Portugal, ed. CTT), o negro era quase sempre ridicularizado, com evidente crueldade, em livros, imagens, jornais, bandas desenhadas, campanhas publicitárias e anedotas. A construção de um outro tipo de africano, fundada numa distância que permitia as maiores efabulações, só tomou um sentido mais concreto durante a guerra colonial, onde o africano era o inimigo, o "turra".
Justificou-se, dessa forma, que Portugal atribuísse uma cidadania específica à maioria dos povos que governava, enquadrada pelo chamado sistema de indigenato, que cessou em 1961, precisamente no ano em que Eusébio começou a jogar no Benfica, depois de chegar a Portugal em dezembro de 1960. Desde seus primórdios, o Estado Novo contribuíra decisivamente para a disseminação de um racismo generalizado, garantindo-lhe até um caráter científico. Em exposições e congressos, nos trabalhos de diversas ciências coloniais, e em muitas publicações oficiais, expunha-se um outro africano culturalmente diferente, que fazia parte integrante do império português, mas era colocado à parte, como se se tratasse de um todo racial e cultural discrepante. O império afirmara o atraso civilizacional das populações africanas, legitimando assim uma conquista colonial anunciada como uma missão de desenvolvimento dessas regiões e dos seus povos.
É evidente que as retóricas integracionistas do Estado Novo na década de 1960 obrigavam a outras representações do africano, nomeadamente a de um sujeito colonial assimilado à sociedade portuguesa. Eusébio ajustava-se bem a essa imagem. Sua autobiografia, publicada em 1966 em Portugal e redigida por Fernando G. Garcia a partir de um conjunto de entrevistas (traduzida em inglês no ano seguinte), conta a história de um "bom rapaz", narrativa mestra e memória oficial a partir daí repetida em jornais, biografias e bandas desenhadas.
A "verdadeira" história de Eusébio apresenta um conjunto de etapas, do Bairro da Mafalala na Lourenço Marques colonial, onde vivia com a mãe, Elisa, num contexto de pobreza honrada, os jogos de bairro e a equipe dos "brasileiros", as idas à escola, o deslumbramento com o centro da cidade colonial, que pouco conhecia, a entrada no futebol local, a transferência atribulada para o Benfica e os diversos passos da brilhante carreira profissional.
Nessa história, a lista impressionante de feitos desportivos é intervalada pelo relato do casamento com Flora e pela incorporação de Eusébio, em 1963, no Exército português, profusamente fotografada e utilizada como propaganda. A incorporação militar, o casamento e a vida familiar contribuíam para a construção quase perfeita da biografia de um indivíduo assimilado, preocupado com o trabalho e com a família e plenamente integrado no Portugal de Salazar, um jovem de origens desfavorecidas que, apesar da notoriedade, continuava a perceber seu lugar social.
A apropriação oficial da imagem de Eusébio não anulava os efeitos produzidos pelo fato de um negro se ter tornado uma figura dominante da cultura popular portuguesa. Eusébio entrou, tal como a fadista Amália, num universo de glorificação cultural até aí constituído por indivíduos com origens e percursos muito distintos, consagrados em atividades oficialmente legitimadas e de onde o futebol e o fado se encontravam afastados.
Apesar do reconhecimento de seu mérito, a apreciação entusiástica que mereceu não resultava de uma inusitada consciência de igualdade racial, tão-pouco poderia servir de prova de que a sociedade portuguesa estava preparada, devido a uma característica cultural adquirida, a aceitar a diferença. A relevância de Eusébio dependia do seu valor enquanto elemento de uma economia particular, no contexto de uma troca muito específica, proporcionada pelo processo de profissionalização do futebol. O jogador moçambicano oferecia quase todas as semanas capitais preciosos à representação nacional, mas sobretudo clubista, a uma específica cidadania exercida diariamente por muitos indivíduos, quase todos homens, durante incontáveis encontros, conversas e imensas retóricas, nos quais se manifestava uma identificação, uma forma de apresentação na vida de todos os dias.

Os que no campo representavam com seu gênio desportivo essa pertença (ser do Benfica, do Sporting, do Porto, ou da seleção) mereciam quase todas as recompensas, independentemente da sua origem ou da cor da sua pele. O valor de Eusébio nessa economia particular dependia da manutenção de um nível performativo constante, de um ritmo laboral intenso, com consequências físicas conhecidas, como asseveram as inúmeras cirurgias ao seu martirizado joelho.
As exibições no Mundial de 1966 ampliaram a reputação de Eusébio, oferecendo-lhe uma dimensão global. Esse enorme atleta, personagem principal de uma cultura de consumo em expansão que gerava novas identificações, juntou-se à memória visual coletiva de uma geração, ao lado de outros ícones da cultura popular dos anos 1960.

Na Inglaterra, país que na altura já abdicara da grande parte das suas colônias, governada em 1966 por um governo trabalhista, os negros eram uma enorme raridade nos campeonatos desportivos e nenhum chegara à seleção nacional.
O efeito do poder mediático de vedetas populares como Eusébio foi alvo de escrutínio, as suas posições interpretadas, os resultados políticos dos seus atos avaliados. Se o Estado Novo sempre desconfiara da espectacularização do desporto assente no movimento associativo, veio depois a perceber que essa lhe podia ser útil. Para as oposições ao regime, menos preocupadas em reconhecer o efeito propriamente político da invulgar notoriedade social de um negro em Portugal, importava denunciar a utilização de Eusébio na defesa da "situação", enquanto elemento da narcotização do povo - ao lado do fado, do chamado nacional-cançonetismo e de Fátima - e especificamente da propaganda imperial, fundada na mitologia do pluri-racialismo, num período em que Portugal lutava pelos seus territórios numa guerra travada em três frentes.
É interessante verificar que nas últimas décadas Eusébio veio a tornar-se objeto de interesse para os estudiosos do continente africano, entendido como um pioneiro do futebol em África, um exemplo de talento extraordinário e, simultaneamente, ao lado de outros grandes nomes negros da história do desporto internacional, nomeadamente norte-americanos, desde Joe Louis a Jesse Owens, alguém que vingara num mundo fortemente discriminatório. O desejo de alguns acadêmicos e jornalistas estrangeiros em encontrar no discurso de Eusébio posições emancipadoras e politizadas esbarrou quase sempre em respostas evasivas e no habitual refúgio no mundo do futebol. Na verdade, o universo que ele, desde pequeno nos espaços livres da Mafalala, aprendera a dominar. Para aquele que foi considerado, depois do Mundial de 1966, como "o melhor da Europa", e de quem se falava estar a disputar com Pelé o título de "rei do futebol mundial", África e a política africana estavam muito longe.
O Estado Novo tratou de voltar a lembrar que Eusébio era africano, parte de um Portugal enorme que se prolongava para sul. Se é evidente que o impacto de Eusébio na sociedade portuguesa não pode ser avaliado apenas à luz de uma história política, sendo essencial investigar o efeito simbólico da notabilidade de um jogador negro, é também certo que na década de 1960 sua glória serviu à defesa de uma excepcionalidade colonial. Foi essa que serviu de justificativa à soberania sobre os territórios africanos e a sua história, contada e recontada até nossos dias, contribuiu para lançar um manto sobre o passado e reproduzir mitos sobre a tolerância racial dos portugueses.
Um ano antes do Mundial de 1966, o embaixador português Franco Nogueira, numa conferência na embaixada portuguesa em Londres (em maio de 1965), falou sobre os princípios orientadores da política portuguesa em África: "Nosso primeiro princípio orientador é a igualdade racial - uma pequena noção que trouxemos para África há mais ou menos 500 anos". Portugal orgulhava-se do seu império se constituir como um "espaço multirracial", uma "democracia racial real" onde todos "trabalham harmoniosamente para os mesmos fins".
Falso e mitificador, o olhar de Franco Nogueira, ao incluir o império dentro da sociedade portuguesa, acabava por realçar o facto de que o mundo governado pelos portugueses na década de 1960 era maioritariamente negro e africano, realidade por vezes esquecida nas análises historiográficas sobre Portugal. E qual era o lugar que a gestão colonial portuguesa atribuíra a essa grande maioria da população? Segundo a história mediatizada da vida de Eusébio, existia em Moçambique um contexto de igualdade de oportunidades e uma ausência de preconceito racial, bem ilustrados por um percurso de mobilidade social, desde o Bairro da Mafalala até à metrópole e aos grandes estádios europeus.
Poderá um caso excepcional ilustrar a excepcionalidade de um regime colonial? É que o lugar da população africana, na grande sociedade portuguesa de 1960, era bem diferente do representado pelo caso de Eusébio. Sua integração estava longe de estabelecer qualquer padrão que pudesse explicar os 500 anos de colonialismo de que falava Franco Nogueira.
Mais fiável parecia ser a história da cidade onde o jogador moçambicano cresceu. Desde sua fase moderna, iniciada no final do século 19 e projectada pela industrialização da África do Sul, que Lourenço Marques se dividira entre um centro colono, predominantemente branco, e um subúrbio precário, predominantemente negro. Pela força, afastaram-se as populações locais para a periferia. Separada fisicamente, a mão de obra africana que se acumulava nos subúrbios, essencial para o funcionamento do sistema colonial, foi enquadrada por leis e normas. Essas regulavam uma discriminação racial, a qual era evidente não apenas na lógica do indigenato, mas que se traduzia no quotidiano, nos espaços públicos, nas escolas, nos transportes e nos locais de trabalho, onde sofreram durante muito tempo o flagelo do trabalho forçado. O historiador Valdemir Zamparoni explicou bem esse mesmo processo na sua tese sobre a capital de Moçambique.
Já depois do fim do indigenato persistia o que, num artigo publicado em 1963 no jornal A Tribuna, o arquitecto Pancho Guedes chamava de "cinto do caniço" que separava o centro urbano da "cidade dos pobres, dos serventes e dos criados", isto é, a cidade dos africanos. Lourenço Marques carecia então, segundo o arquitecto, de "uma genuína integração social - ou serão os ‘pretos’ só para estar nas cozinhas e nas recepções?".
Os habitantes dos bairros periféricos da cidade, onde nasceu Eusébio em 1942, trabalhavam nas indústrias locais, nos portos e nos caminhos-de-ferro, nos serviços domésticos, em atividades ditas informais, dependendo de pequenas lavras, ou faziam parte da forte emigração para o país vizinho, controlada e taxada pelo Estado colonial. Essa estrutura laboral era fortemente racializada, pertencia a um sistema onde a cor da pele mostrava os contornos da organização social. Na grande sociedade portuguesa de 1960, o lugar dessa maioria africana, mesmo depois do fim do indigenato, continuava a revelar a herança de um colonialismo predador e racista, não muito diferente dos outros colonialismos nos seus propósitos e objetivos, nos meios e nas estratégias, e absolutamente nada excepcional.
Explicada pela conjugação única entre a profissionalização do futebol e a procura de talentos, a força da cultura popular mediática e um regime que necessitava de defender por todas as formas o mito do pluri-racialismo lusófono, a carreira extraordinária de Eusébio não belisca a imagem pérfida do sistema colonial português. Tão-pouco deve servir de modelo para descrever, hoje, as relações raciais em Portugal.
Nuno Domingos

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