26 de jul. de 2008

O cão e o limbo


Ser habitante pós-humano da pós-história

Eu sou a lenda , filme adaptado do romance de 1956 de Richard Matheson e dirigido por Francis Lawrence, mostra o último humano, o último testemunho da espécie, a conviver com um cão.

Assistir o filme sem atenção a esse dado é perder o cerne da questão que, conscientemente ou não, está proposta no enredo.

O último homem é um sobrevivente que tem a sorte (ou não) de ser o cientista, um implicado sujeito do saber, que testemunha uma experiência além do humano na emblemática cidade de Nova York onde ele está abandonado à sorte e prisioneiro da cidade. Os seres humanos que restam vivos foram contaminados por um vírus cuja manifestação é uma doença terrível, que faz perder o traço humano e coloca cada um no limbo entre natureza e cultura, entre humanidade e animalidade como numa dialética sem síntese em que a tragédia não encontra termo.

O filme é a plena exposição de uma dialética negativa expressa por meio da condição de limbo na qual se situa o humano. Limbo que constitui não apenas um espaço, a própria cidade onde todos habitam como bandidos que se escondem em becos e outros escuros, mas também aquele lugar onde o homem tornado animal, devém monstro.

A expressão limbo, muito conhecida por quem se interessa por sobrenaturalismos ou religião em geral não deve ser interpretada como novidade de alguns poucos que resolvem meter medo em adolescentes ansiosos por ficção e terror. A condição de limbo, do intervalo intransponível até que se passe por uma prova - quando há uma prova - é experimentada ontologicamente no abismo sobre o qual a linguagem humana é a ponte. O limbo é a experiência do bordo. Lugar da vertigem que só o ser humano é capaz de expressar.

Ligação dentro do limbo
O fato de que Robert Neville (o cientista interpretado por Will Smith) sobreviva na companhia de uma cão (Sam, interpretada pela cadela Abbey) é explicativo da dialética que define a condição do limbo: Dr. Neville está acompanhado de Sam, a cadela, mas, por não poder conversar com ela, vive uma espécie de companhia incompleta devido à lacuna de linguagem que os enlaçaria se ainda se pudesse supor um paraíso perdido em que a linguagem dos homens é a linguagem dos animais. Ao mesmo tempo, no entanto, dizer que ele está só seria um erro, pois o fato de que não possa falar com o animal, ou que possa falar mesmo sem receber palavras como retorno, não invalida a relação entre eles.

É o estatuto da relação que só pode ser compreendido por esta possível "ligação dentro do limbo", no intervalo onde toda distinção entre humano e animal desaparece. Mas, sobretudo, no qual a linguagem humana de pouco ou nada serve. A fratura interna à relação - uma espécie de relação que carrega constitutivamente sua própria interrupção - é o que essa dupla informa de modo emblemático. Limbo, pode-se dizer, é a solidão que conjuga homem e animal numa eterna impossibilidade de encontro enquanto, ao mesmo tempo, permite relação. Limbo é o lugar de uma relação perdida, no espaço e no tempo, e cuja marca material define a linguagem como um mero miasma.

No filme, animais selvagens não são contaminados pelo vírus. Apenas o cão, essa figura histórica e simbolicamente próxima do homem, é que carrega a potência de sua contaminação. Homem e cão são postos como semelhantes, o vírus é o emblema da participação entre suas naturezas. É o que expressa a sua "comunidade".

Que a tradição popular o tenha afirmado como o melhor amigo do homem não é motivo menor. O melhor amigo do homem, tanto quanto o homem, é um habitante do limbo existente entre animalidade e humanidade. Os dois se encontram no mesmo lugar, apenas separados pela linguagem tornada miasma a transitar entre eles. Por sua inteligência, por sua afetividade, por sua capacidade de escravidão e entrega, não há animal mais parecido com o humano. O humano apenas tenta garantir uma espécie de soberania em relação à natureza ao afirmar-se humano pela linguagem, o que no filme é expresso pela busca da cura do vírus que traria humanos à sua condição anterior, mas tristemente exposto pela impossibilidade de alcançá-la.

O cão equivale ao homem, perdido que está entre a cultura e a natureza sem chance de encontrar uma morada de um lado ou outro da fronteira. Que o cão seja a principal companhia do homem (e vice-versa) define o desamparo como solidão existencial. Do homem em relação a si mesmo, mas também em relação ao seu outro. O simbolismo da amizade com um animal é indício da falsidade ou da impossibilidade da relação com outro humano.

Ainda que no filme seja mantida a pátina humana nos bonecos que Dr. Neville espalha pela cidade para escapar da solidão insuportável e com os quais conversa crente de que ali está o seu semelhante, nem que este tenha sido reduzido a espectro, é com o cão que ele se assemelha por afinidade ontológica, por condição metafísica. Ambos estão sós mesmo quando unidos. A mônada que é cada indivíduo sustenta-se na bolha humana cuja pele é a linguagem, mas esta bolha de nada vale quando se estabelece vínculo com o animal.

Melancolia e o pós-humano
Historicamente o cão foi emblema da melancolia, doença do humor expressa pela infinita solidão da consciência, do que se é e do que se poderia ser, do possível e do impossível conjugados na mesma dialética negativa, mera dupla banda que explica que a realidade - e a verdade não passa de jogo de espelhos.

Esta solidão melancólica que caracterizou o homem de exceção desde a antiguidade clássica, é o traço desumano dentro do humano, o elemento da interrupção do que é propriamente humano, a saber, o laço que unindo os seres entre si define a condição humana como ética e como política. Pode-se dizer que a melancolia é uma antecipação do que hoje se chama pós-humanidade. O pós-humano não é uma novidade. Ele sempre esteve presente como impossibilidade da humanidade completa. A solidão é uma sempre posta experiência do desencontro que caracteriza o limbo, elemento constitutivo de todo laço humano.

Nela se esclarece a pertença, ao mesmo tempo que a condição estrangeira do homem dentro da natureza e da cultura, na dupla banda existencial que estarrece a atenção de todo aquele que sobreviveu alienado de sua própria condição. Felicidade é a expressão que desde os primórdios filosóficos da humanidade tenta apagar a infelicidade própria dos seres de linguagem e que só seria apagada quando, como animais, voltássemos ao escuro.

Esta alternativa é interdita ao animal humano abalado em sua condição pela luz da razão realizada como linguagem. O que era tido como o cerne da felicidade humana se converte em incontornável tormento de qualidade ancestral. O que Kojève sustentava ao ocupar-se da pós-história não era uma possibilidade do futuro, mas algo que já havia acontecido. A pós-história é a vivência do eterno presente, segundo Kojève, própria da american way of life, tempo de americanização (atualmente sinologização) do mundo a que chamam hoje globalização. Kojève, no entanto, sustentava a possibilidade de manutenção do humano em tempos pós-históricos desde que, decerto modo, humanos aniquilassem o animal em si mesmos. Humano era essa negação do animal, no que Kojève não se diferencia de toda a tradição filosófica que desde a antiguidade esforçou-se em ver o humano a partir de um deslocamento em relação à natureza. Desejo de superar a morte? É certo que o lucro simbólico é imenso.

O corpo não passa de lembrança da morte num tempo transformado em máquina de esquecimento, em lugar de passagem, característica da vida sempre capturada pelo desejo humano de poder. O corpo é a própria experiência do limbo que São Tomás já interpretava como tempo de abandono. No limbo, o que resta ao humano é o espectro do símbolo, é viver do formalismo, é ser imitação de si mesmo: boneco ou cão, a escolha não mais nos pertence. Eis o que significa a pós-humanidade.
Marcia Tiburi
Picture by Lucien Freud

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