14 de set. de 2009

Depois do jantar

Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar. O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio. — Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um? — Não fumo, respondeu o outro. Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio: — 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa. — Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio. — Como? — Já disse. Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude. O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono. — Agora posso continuar? — Continuar o quê? — O passeio. Eu estava passeando, não viu? — Vi, sim. Espera um pouco. — Esperar o quê? — Passa a carteira. — Mas... — Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade? — Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar... — E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade? — Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato. — Diga. — Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil. — Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto? — Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber? — É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja? — Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra. — Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro. — Não precisa, não precisa. — Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau. — Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo. — Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou? — Claro. — Você, o assaltado. Certo? — Confere. — Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil. — Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo. — Tá bom, não se discute. — Vamos, procure nos... nos escaninhos. — Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade. — Deixe ao menos tirar os documentos? — Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras. — Nem uma de quinhentos? Uma só. — Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto. — Nem eu ia aceitar dinheiro de você. — Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha. Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé. Carlos Drummond de Andrade

3 comentários:

uma leitora disse...

Fantástico esse conto de Drummond. Tive o prazer de vê-lo encenado no Cine PE desse ano na Mostra Pernambuco - competitiva de curtas em 25 de abril. Ficou muito bom!

http://www.cine-pe.com.br/cinepe_2009/interna/programacao.php

Bjo
Berenice

Fabio disse...

huahauhaua
boa.

Maria José Speglich disse...

Amo as poesias e os escritos de Drummond, mas depois que eu soube que ele tinha uma relação incestuosa com a filha, não consigo mais admirá-lo tanto.

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