8 de nov. de 2009

Ainda há o que derrubar


A queda do muro de Berlim é universalmente interpretada como o fim da guerra fria e a vitória do capitalismo e da democracia liberal. Por essa visão triunfante, que comemora 20 anos, a história é passível de uma visão teleológica (ou seja, destinada a uma finalidade inevitável), na qual o estágio mais avançado é o chamado Estado democrático de direito, em sua versão europeia: liberal em economia e tolerante em política. 

O muro era a cicatriz que estampava a divisão do mundo entre dois blocos, um capitalista, liderado pelos Estados Unidos; e outro socialista (ou do chamado socialismo realmente existente), que tinha a União Soviética como cabeça, coração e cofre. Quando a parede caiu, foi carimbada a vitória do lado ocidental e, de quebra, declarado o fim do sentido da distinção entre esquerda e direita. Não foi a primeira vez que isso ocorreu. No século 19, o filósofo Hegel já decretara que o Estado Alemão de seu tempo ocupava o topo da pirâmide evolutiva das organizações sociais, realizando na prática o que ele previra em teoria: um movimento dialético ascensional até o estágio em que as contradições seriam todas resolvidas. 

A inspiração hegeliana é a mesma que deu ao cientista político norte-americano Francis Fukuyama a certeza de que havíamos chegado ao fim da história com os Estados Unidos. Berlim seria o lugar mítico do dissolvimento da ideologia em nome de uma nova realidade política: o fim do comunismo e a afirmação do projeto da globalização. Um único mundo. No entanto, se a vitória do mercado parecia evidente, mesmo às economias planejadas que começavam a flexibilizar sua inserção internacional e quebrar o automatismo das relações entre blocos, o substrato ideológico foi dado de barato, como consequência natural: quanto mais mercado, mais liberdade. 

Não era bem assim e não foi assim depois da queda do muro. O que a guerra fria tinha de mais forte não era a oposição em torno de ideias, mas o consenso numa dinâmica econômica marcada pela centralização, pela dependência, pela desigualdade regional e pelo peso do armamentismo. Lá como cá. As duas superpotências haviam pervertido a economia mundial em torno de uma corrida armamentista poderosa, em escala nunca vista na história da humanidade, extremamente dispendiosa. E o que é mais significativo, tratava-se de uma guerra desigual. Os EUA dominavam a tecnologia e o comércio na porção mais rica da economia mundial; a URSS, drenada pelos seus satélites, mal sustentava seus projetos bélicos; o restante do planeta, onde possivelmente poderiam surgir tensões e alianças pró-socialismo, não representava quase nada em termos econômicos. 

A Guerra Fria, mesmo antes de acabar, já tinha vencedor. Mas o que fez com que o “superpoder” soviético derretesse não foram apenas as qualidades de seu oponente, mas seus defeitos intrínsecos. Politicamente, o bloco comunista não conseguiu incorporar a demanda real por participação, não foi capaz de modernizar suas relações sociais, se mostrou incompetente para explorar os novos recursos que dinamizavam o mercado internacional. O socialismo realmente existente agonizava em autoritarismo, ineficácia e pobreza. Quando o muro caiu, os alicerces já estavam podres. Querer barrar tudo com concreto era uma possibilidade tão inviável quanto construir castelos no ar. E mesmo nesse tipo de engenharia, a União Soviética se mostrava capenga. O sonho acabava. Sem entrar em minúcias, que obrigariam a acompanhar o processo em muitos países, cada um com suas especificidades, a identidade entre a queda do muro e o fim das ideologias é algo frágil, que não se sustenta nos fatos que se seguiram ao ano de 1989. Na verdade, mais que nunca, esquerda e direita passaram a ter sentido no cenário político. 

O que ficou estabelecido, por obra e engenho dos dois lados da disputa, é que a situação anterior era insustentável para a nova dinâmica política e econômica. No entanto, mesmo aparentemente indiviso, o mundo ainda abrigaria duas grandes perspectivas: de um lado os que acreditam que o fundamento da sociedade é a liberdade; de outro os que apostam na igualdade. 

DISTINÇÃO 
Quem tem como ponto de partida a liberdade pode criar uma economia poderosa, uma sociedade participativa e uma política democrática, ainda que não se coloque como obrigação reduzir afirmativamente as injustiças. Os que se fundam na perspectiva da igualdade submetem a produção e a posse de bens ao uso potencialmente equitativo da riqueza social, em forma de distribuição de poder, serviços e até mesmo dinheiro. Ser de direita ou de esquerda, mais que uma posição partidária ou política, no sentido operacional, é uma distinção ética e filosófica. O que permite que políticas de esquerda possam ser liberais e projetos de direita mais igualitários. Temos que comemorar os 20 anos da queda do muro de Berlim como uma conquista de civilização. Mas é preciso ficar atento para outros muros imaginários que se mantêm edificados, como a pobreza estrutural de um modelo excludente e inviável em termos humanos e ambientais. 

A recente crise financeira internacional foi outro exemplo da desregulagem de um sistema que ser quer perfeito, que fica como alerta para as consciências em festa. Sem falar dos muros reais, como o que Israel edificou para concretizar sua política externa fundada em belicismo e numa concepção muito particular de vingança e retaliação. Enfim, a boa nova da queda é que os homens se tornaram irredutíveis na defesa da liberdade. Agora é chegada a hora do mesmo empenho em relação à igualdade. 
João Paulo

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