1 de dez. de 2013

A danada da nostalgia

Lucian Freud
Por que será que, por mais que a gente tente, muitas vezes é incapaz de abandonar determinadas memórias afetivas: imagens que construímos de nós mesmos, velhos amores, antigos padrões de comportamento? 

E parece que não adianta mesmo fugir – tais memórias são nossa bagagem, estarão sempre a nos acompanhar. Claro que tudo isso depende do uso que fazemos do nosso passado. Pois uma coisa é ter o tempo pretérito como referência – é por meio do exemplo de pessoas e ações que vieram antes de nós que procuramos não perpetuar os erros de outrora ou que nos espelhamos para construir um presente melhor.

Isso é essencial em todas as culturas, do velho pajé que conta antigas proezas da tribo aos mais jovens até os livros de história que nos ensinam sobre os capítulos sombrios da nossa civilização. Outra coisa bem diferente (e daninha) é a fixação no passado, quando remoemos aquilo que já está longe no tempo e no espaço, ou idealizamos (alguém, uma situação, um estilo de vida) a ponto de não mais conseguirmos olhar para a frente e aproveitarmos o presente – nosso tempo – em todo seu potencial. 

Aí entra a danada da nostalgia. Sim, porque a nostalgia, essa palavra grega que significa algo como “saudade de um lar que não mais existe ou nunca existiu”, pode ser um obstáculo para o nosso crescimento. Repare em como num momento ou outro a gente pensa num tempo bom que não volta nunca mais, numa “era de ouro” (completamente idealizada, uma ficção que mistura memória e desejo) em que tudo tinha cores mais belas. Ah, antigamente... Faz mal? Em The Future of Nostalgia (“O futuro da nostalgia”, sem edição brasileira), Svetlana Boym, professora de literatura comparada na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, explica que o conceito de nostalgia, diferentemente do que muitos pensam, não vem da poesia ou da política, mas da medicina, e data do século 17. 

 Naquela época, alguém que padecesse de nostalgia podia apresentar sintomas tão variados e nefastos como náusea, perda de apetite, febre alta chegando até mesmo a complicações físicas extremas, como inflamações no cérebro e ataques cardíacos. Em suma: nostalgia, naquele tempo, fazia parte de um temível rol de doenças classificadas pela ciência médica do período. “Nos velhos tempos, nostalgia era uma doença curável. Perigosa, mas não letal”, escreve Svetlana Boym. O tratamento mais difundido era feito com emulsões hipnóticas e ópio. No século 19, o escritor e médico brasileiro Joaquim Manuel de Macedo (que entraria para os compêndios como o popular autor do romance A Moreninha) arrolava em sua tese Considerações sobre a Nostalgia, apresentada à Faculdade de Medicina, complicações como disenteria e febres. 

A doença nostalgia era constantemente atribuída aos soldados em guerra e aos imigrantes vindos do interior. A coisa parecia mesmo tão grave, num tempo que ainda não vira o aparecimento da moderna psicologia e de todo o aparato farmacêutico, a ponto de Joaquim Manuel de Macedo tratála como uma espécie de demência. Hoje em dia, no entanto, não se toma a nostalgia como uma condição patológica como se supunha no passado. Ao ser comparada à depressão e à melancolia, por exemplo, a nostalgia pode ser considerada um estado de espírito, quando a depressão e a melancolia são doenças em si. “A nostalgia pode ser vista como algo que desperta para a ideia de que também no presente coisas boas serão possíveis. Somente quem viveu momentos belos e felizes é que é invadido pela nostalgia, diferentemente daquele que passou pela vida e não viveu. Por isso, nostálgicos voltam ao passado no qual amaram e foram amados. 

Na melancolia ou depressão: nunca foram amados ou amparados”, afirma a psicanalista Maria Olympia França. Faz sofrer Você certamente conhece a figura: aquele eterno insatisfeito, o tipo de pessoa de quem mais se ouve que antigamente... – ah! antigamente, como as mulheres eram mais bonitas (a beleza natural), as ruas mais limpas e o ar mais puro. É bem possível mesmo que a vida fosse mais amena. O custo de vida era mais baixo e o trânsito, muito menos estressante. E, lógico, havia menos gente no mundo. Acontece que esse “antigamente” idealizado nunca mais voltará. Fato é que fabricamos muitas das nossas memórias e não temos certeza do passado, por isso mesmo é que o tempo pretérito nos parece ter cores tão mais definidas e ostenta uma cenografia tão impecável. É como um quadro que pintamos em nosso cérebro. Para Maria Olympia, a nostalgia é uma espécie de reaproveitamento da tristeza. 

“Ainda que difusa, ela sinaliza algo que foi bom. Eu era feliz e não sabia”, afirma a psicanalista. Isso denota o estado fantasioso da nostalgia em relação ao presente. Claro que é impossível voltar ao passado, mas trazer seus elementos agradáveis de volta ao presente é algo bastante concreto. Se você gostava, por exemplo, de tocar violão, mas não pratica há anos, que tal treinar de vez em quando? Se sente muita falta da casa da mãe, comer um arroz com feijão no fim de semana pode dar um gostinho do lar para sempre desaparecido. Não é que vá matar a saudade. Até porque nostalgia e saudade são coisas diversas. “A nostalgia é um estado mais amplo, mais difuso que um sentimento de saudades. Enquanto este diminui quando reencontramos o objeto faltante, a nostalgia pode permanecer mesmo quando reencontramos aquilo de cuja falta nos demos conta”, diz a psicanalista. Mas ajuda a acalmar o sofrimento. 

 Pois nostalgia e perda são sentimentos tão parecidos que muitas vezes podem se confundir. A dor imensa que representa a perda de um filho é um exemplo de situação-limite que instaura uma condição nostálgica – e que pode desencadear uma baita depressão, já que as lembranças do passado se convertem em um fardo insuportável. “Nesses casos, a tristeza levará à impotência, ao sentimento de fracasso e de culpa. Nada mais é recuperável”, diz a psicanalista. Aí o recomendável é que se trate a depressão advinda desse processo. Quando a perda é coletiva, como no caso dos fluxos migratórios (os imigrantes europeus na virada do século 20 que desembarcaram no Brasil e em outras nações das Américas, os migrantes do Nordeste que vieram ajudar a construir a riqueza de São Paulo), há a criação daquilo que se chama uma “memória cultural”. 

No caso de imigrantes, segundo estudos, é notada a criação de nichos específicos e a apreciação de locais determinados, o que a gente pode facilmente reparar em nosso dia a dia. Quem mora em São Paulo ou em outra grande metrópole, por exemplo, e não conhece uma “turma” muito unida que veio de outra cidade? Ou restaurantes típicos – cantinas italianas, churrascarias, casas de sushi – frequentados por grupos específicos? Isso é muito comum. O pessoal elege alguns lugares, como bares ou casas de amigos, para frequentar e manter o contato com as próprias raízes. Pois Svetlana Boym explica essa manutenção da memória cultural através de um “estranhamento e sentimento de solidariedade entre os membros do grupo estrangeiro, que geram afeto e reflexão”, além de uma “vulnerabilidade ao lugar”. 

É universal Falando assim, até parece que a nostalgia é um estado psicológico exclusivo de determinados casos: na verdade, a maioria das pessoas a vive sem sequer se dar conta dela, mesmo que seja de uma vida que não é a sua. Nostalgia do que não viveu parece complexo demais? Então basta observar o mercado de consumo. O design, a arquitetura, a moda, o cinema, as telenovelas, tudo está preparado para atender a demandas por artefatos vindos diretamente do passado. São festas “anos 80” com sucessos da Blitz e da Xuxa, remakes de filmes clássicos, o Fusca renascido no neoretrô New Beetle, a volta dos discos de vinil ao mercado. 

De onde vem esse desejo de eterno retorno? Das memórias afetivas, das contingências do mercado, é um traço geracional? De tudo isso um pouco. Cíntia Teixeira, professora de filosofia e coordenadora do IPPEX (Instituto de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da Faced), de Minas Gerais, afirma que a necessidade de trazer elementos de outras épocas para o presente é uma alternativa ao inevitável progresso do esquecimento. E além disso é um traço geracional, marca daqueles que estão entre os 20 e poucos e 30 anos. “Em larga escala, a geração Y participa de grandes eventos culturais com o intuito de rememorar o passado, sem ter a clareza do que foi e qual a real importância daquela geração e de reviver essa situação”, diz. 

E tem mais: o passado trazido de volta tem um bocado de presente. “Os eventos do passado são manipulados e reconstituídos perante uma audiência do presente, estabelecendo-se dessa forma uma conexão dinâmica entre ambos os tempos”, afirma. “Essa onda de nostalgia do passado é muito mais vivida por pessoas que sequer existiam naquele tempo homenageado que pelas pessoas que de fato estavam lá.” Svetlana Boym observa que nostálgicos são geralmente pessoas de sentidos mais apurados. Ora, são os sentidos (audição, olfato, paladar...) que nos arrastam com mais força para as memórias afetivas. Talvez estejam nos sentidos as memórias afetivas que movem tais vontades e sensibilidades. Já é folclórica a história do escritor francês Marcel Proust que, provando um biscoitinho chamado madeleine, foi acometido por um verdadeiro ataque de nostalgia – o que gerou um dos maiores monumentos da história da literatura, o romance Em Busca do Tempo Perdido. 

Outro escritor, o jovem brasileiro Daniel Galera, autor dos romances Mãos de Cavalo e Cordilheira, entre outros, diz que, embora não considere a nostalgia característica predominante em seus personagens, assume vivê-la em seu personagem da vida real. “Eu tenho nostalgia de uma vida mais solitária, às vezes. Parece que em algum momento vivi no interior ou numa praia quando era criança, e que tenho saudade disso. Mas sempre morei em cidades grandes e fui a lugares isolados apenas como visitante ocasional. Esse tipo de nostalgia quase sempre é uma armadilha, porque é mera construção mental. Você sente que já viveu aquilo e sente falta, mas não é verdade. É uma narrativa ilusória da memória”, diz Galera. Criação e memória, eis os pilares da nostalgia. Julia Valle é estilista e costuma desenvolver, no mínimo, três coleções por ano. 

Para cada uma delas precisa buscar inspirações totalmente novas. Acontece que o totalmente novo demonstra sinais de esgotamento, dando lugar à repetição, por isso ocorre uma tendência de retorno a épocas anteriores: “Soa fresco de uma forma, mas ao mesmo tempo já tem aquela garantia de que foi amplamente aceito em algum momento da história”, diz a jovem estilista, que confessa que gostaria de ter vivido nos anos 1920. É particular Márcia e Sílvio (os nomes foram trocados para manter a privacidade das fontes) se apaixonaram no trabalho: o processo de produção de um curta- metragem. Ele, o diretor, bem mais velho, tinha uma postura jovem para a idade. Ela, atriz na ocasião, se sentia compreendida em sua pretensa maturidade. Márcia lembra que a experiência do filme foi poderosa emocionalmente e a lua de mel durou cerca de um ano. 

“Foi quando algo se rompeu e começaram a se abrir feridas, traições descobertas e muita dor”, diz, afirmando que a partir daí o caso começou a ser tão intenso quanto avassalador. “Perdi as contas de quantas vezes terminamos e voltamos. Já não sabia mais para o que queria voltar. Queria um resgate, não conseguia deixar as boas lembranças.” Márcia chegou a se mudar de cidade para abandonar a memória, em vão. Ela afirma que ainda acreditava ser mais feliz com Sílvio. “Retomamos inclusive a distância, o que quase me levou à depressão. Estava prestes a largar tudo diante da doença que nossa vida em casal se tornou”, admite. Márcia diz que hoje Sílvio a procura de tempos em tempos e ela tem de se esforçar para não fantasiar um passado que ficou enterrado. “Guardo nossas memórias com carinho, mas hoje sei que é impossível resgatá- las”, afirma. 

Casos como o de Márcia são mais comuns do que pensamos e servem como lembrança (sem trocadilhos) de que é muito importante ter cuidado com as fantasias. Elas podem literalmente nos prender a uma realidade inexistente e impedir um desenvolvimento no presente, além de uma possibilidade de vislumbrar o futuro. Uma saudade dos velhos tempos ou uma fantasia sobre certo fato do qual você adoraria ter participado podem alimentá-lo, mas, quando essas sensações se tornam obsessivas, é melhor ficar atento: finque o pé no presente e bola pra frente. 
Deborah Couto e Silva

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