Foi sempre assim. Desde o começo dos tempos, quando as tarefas eram bem definidas: ao homem, caça e pesca, e à mulher, filhos e cozinha. Mesmo com uma vida social cada vez mais complexa, essa relação da mulher com seu fogão permaneceu estável. Resistindo a todas as mudanças. Receitas de família não são passadas de pai para filho, mas de mãe pra filha. E pretas velhas quituteiras, comandando a cozinha, são lembranças que ficarão para sempre. Imagens semelhantes existem por toda parte. Engraçado é que, apesar de tão estreita relação, quase todos os grandes chefes de cozinha são... homens.
Primeiro deles, alguns séculos antes de Cristo, foi provavelmente o grego Arkhestratus - um contemporâneo de Aristóteles, que escreveu "Hedypatheia" (Tratado dos Prazeres), em que ensinava técnicas para preparar peixes. Foi ele quem, pela primeira vez, usou o termo "gastronomia" - ao explicar que o estômago (gaster) era regido por leis (nomos). A palavra, na época, não fez nenhum sucesso. Mas virou moda a partir do século XIX.
Muito tempo depois veio o romano Apicius, que escreveu o primeiro livro de receita propriamente dito - "De re coquinária", único dos tratados latinos sobre o tema que chegou até nós. Aristocrata, e filho de cavaleiro, preferia passar o tempo bem longe dos cavalos do pai, escondido na cozinha. Nela, criava receitas "demasiado indigestas e sofisticadas", segundo críticos da época. A ele devemos, inclusive, a técnica de engordar gansos com figos secos, para depois lhes aproveitar o fígado. Por conta disso "iecur"(fígado), em Roma, passou a ser chamado "ficatum" (de fícus, figo).
Depois vieram outros cozinheiros famosos. Como Guillaume Tirel, mais conhecido como Taillevent (corta vento), em homenagem a seu nariz monumental; La Varenne, o primeiro a escrever livro de culinária ("Le Cuisinier François") fornecendo as quantidades dos ingrediente; Auguste Escoffier, com seu "Guia Culinário", até hoje reverenciado como bíblia pelos grandes chefes. Ou Marc-Antoine Carême, consensualmente considerado o maior cozinheiro de todos os tempos. É assim ainda hoje, com chefes de cozinha (homens) ainda comandando grandes restaurantes. Por toda parte.
Mas esse domínio tem dias contados. Com as mulheres reivindicando aquilo que, por direito, é seu. Aos poucos se impondo, nessa culinária profissional - até então dominada por homens.
A presença de chefes mulheres, nos restaurantes, começou apenas em princípio do século passado, na França. Por aqui, há sinais também dessa mudança, com presença delas já em cerca de 15% dos restaurantes. Destaque em São Paulo, para Bella Masano, Carla Penambuco e Ana Luiza Trajano. Em Brasília, Mara Alcamim. No Rio de Janeiro Ludmilla Soeiro, Flavia Quaresma e Roberta Sudbrack. Em Pernambuco Adriana Didier, Ângela dos Anjos, Beth Itamar, Cecília Vieira, Claudia Freyre, Emília Campos, Fernanda Marino, Isabel Dias, Maria da Paz, Rafaela Suassuna, Sophia Lins, Suzana Meira Lins; sem contar as quituteiras sem nome, em quase toda esquina de nossa cidade, como Tia Lu - que faz a melhor tapioca no Alto da Sé, em Olinda.
Hoje celebramos o Dia Internacional da Mulher. A origem da data remonta a 1857, em Nova York, quando mulheres que trabalhavam em fábricas de vestuário e indústria têxtil foram pela primeira vez às ruas, em protesto contra as desigualdades de trabalho e salário, em relação aos homens.
A celebração inclui também sabores. Por ironia, nas cozinhas das casas, começa a acontecer o contrário. Nesse tradicional feudo feminino, cada vez mais, agora, são homens que vão ao fogão. Bem-vinda seja, pois, a democracia culinária. Valendo, esse texto, como homenagem a grandes cozinheiras anônimas. Entre elas Do Carmo, Maria Lia, Lecticia (tiá), Anamaria, Cristina, Claudia, Mônica, Celina, Fernanda, Isis, Patrícia, Hebe, Luciana, Manuela. E, breve, Luiza também - que tão logo abandone as fraldas vai ser, palpite de avó, a maior de todas. A Carême de saias.
Lectícia Cavalcanti
Picture by Mara Kinsley
Nenhum comentário:
Postar um comentário