1 de ago. de 2009

Genealogia da Malandragem

Picture by José Clemente Orozco
Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política.  

É curioso, no entanto, que boa parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem. Claro que a desonestidade não é uma exclusividade nacional. 

Mas é interessante ressaltar a peculiaridade brasileira na admissão das "categorias" jeitinho e malandragem como elementos paradigmáticos à ação "moral". No nosso país, curiosamente, exaltam-se, ao mesmo tempo, dois tipos aparentemente incompatíveis: o honesto e o malandro. Nesse sentido, como bem observou o antropólogo Renato da Silva Queiroz, a cultura brasileira é permeada por uma ambiguidade ética em que termos como "honesto", "corrupto", "esperto", "otário", "malandro" e "mané" se misturam num confuso caldeirão moral. Esse caráter peculiar de nossa sociedade exige-nos alguns questionamentos: o que levou a cultura brasileira a essa ambiguidade moral? O que fez que nossa sociedade cultivasse certa glorificação da malandragem? E mais: será que essa exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para o Brasil? Ela tem contribuído para o engrandecimento de nossa cultura ou para sua degeneração? 

No final do século XIX, o filósofo Friedrich Nietzsche se propõe a realizar uma crítica dos valores morais e, com isso, inaugura o seu procedimento genealógico. Rompendo com a tradição metafísico-religiosa que considera os valores como sendo eternos, universais e imutáveis, o pensador alemão passa a pensá-los por um viés histórico. Ou seja, no entender de Nietzsche, os juízos de valor, antes concebidos como absolutos, teriam sido, na verdade, criados numa determinada época e a partir de uma cultura específica. Tomando como ponto de partida essa perspectiva, o pensador alemão enxergou a necessidade de realizar um exame acerca das condições históricas por meio das quais os valores foram engendrados. E coloca as seguintes questões: de que forma esses paradigmas morais teriam sido gerados? Por quais povos e em que época? Em que condições se desenvolveram e se modificaram? Para efetivar essa investigação, Nietzsche põe a seu serviço os recursos da História, da Filologia, e da Fisiologia. Apesar disso, ao recorrer a essas disciplinas, o filósofo não assume o papel de um cientista positivista, que busca fatos históricos, fisiológicos ou antropológicos. Nietzsche está longe de ser um pensador, que se pretende isento e "objetivo". Para ele, a investigação genealógica já é um procedimento que se realiza a partir de uma determinada perspectiva valorativa. 

Sua análise deve ser entendida como uma hipótese interpretativa que tem como pano de fundo o referencial das ciências, mas não como um método científico que se embasa em fatos. O procedimento genealógico, no entanto, não se restringe apenas a essa pesquisa das origens dos valores, pois, com o seu "método", o filósofo propõe, simultaneamente, uma avaliação desses mesmos juízos de valores. Assim, ele nos interroga, também, acerca do "valor desses valores". Em Para a genealogia da moral, livro publicado em 1887, Nietzsche usa seu procedimento, por exemplo, para examinar a dicotomia ocidental entre os valores "bem x mal". Considerando esses referenciais como fruto da criação humana, o filósofo questiona até que ponto eles têm sido benéficos à nossa civilização: "Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor 'bom' e 'mau'? Que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida? (...) O próprio valor destes valores deverá ser colocado em questão" a partir do critério vida. Se, por um lado, Nietzsche considera que os referenciais éticos são sempre relativos a uma cultura específica e, por essa razão, não podem constituir um critério absoluto de avaliação, por outro lado, ele necessitou de um novo critério pelo qual pudesse avaliar os valores. 

Nietzsche precisava de um valor que estivesse além de toda perspectiva moral e que servisse, ao mesmo tempo, como referência para julgar qualquer moral. No entender de Nietzsche, esse paradigma seria a vida. Vejamos como argumenta o pensador em Crepúsculo dos ídolos: "É preciso estender ao máximo as mãos e fazer uma tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo um objeto da disputa, e não juiz; e não por um morto, por outro motivo". Nesse sentido, a vida seria um critério de avaliação impossível de ser avaliado, pois qualquer avaliação sempre se dá por meio de uma determinada perspectiva inserida na vida. Ao examinar o desenvolvimento histórico da civilização ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que os fundamentos morais que têm norteado o Ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva negadora da vida e do mundo terreno. Isso porque a Ética ocidental - fundada nos pilares do cristianismo e platonismo - teria como referência moral os valores concebidos a partir de um além. Em ambas as perspectivas fundadoras existiria uma predileção a um mundo extraterreno em detrimento do mundo terreno. No caso do cristianismo, a esperança de redenção no reino de deus teria provocado a negação da vida e do mundo terreno. 

O platonismo, por sua vez, ao conceber o mundo das ideias como o âmbito da verdade e da eternidade, teria considerado o mundo terreno como aparente e transitório e, por essa razão, inferior. O procedimento genealógico nos propõe uma forma de investigação filosófica que, além de indagar pela procedência histórica dos valores morais, realiza também um julgamento desses valores. Colocando a vida como o critério avaliador, a "genealogia" pergunta: qual o papel dos paradigmas morais vigentes? Eles servem para conservar e engrandecer a vida? Ou promovem sua decadência? Nesse sentido, se adotarmos o procedimento genealógico como referência metodológica, teremos que pensar o fenômeno da malandragem como resultado de processos histórico-culturais. Indo além, poderíamos questionar até que ponto ele tem sido favorável ao engrandecimento e conservação da vida. Nas Ciências Sociais há quem entenda o surgimento do jeitinho e da malandragem como consequência da imposição de uma cultura legal e formalista proveniente da monarquia portuguesa e da igreja católica. Não sendo um resultado legítimo da construção popular, as instituições ético-legais abririam espaço à transgressão. Por outro lado, há também quem enxergue a raiz da "malemolência" brasileira no nosso caráter cultural mestiço. 

HERANÇA DE TRADIÇÕES 
Por sermos um amálgama de diversas tradições, não teríamos conseguido fixar uma ética coesa. Além dessas teses, diversas outras são apontadas como causa da malandragem tupiniquim: a colonização voltada à exploração, a imposição do formalismo legal como herança do direito latino e, até mesmo, a miscigenação biológica. Apesar dessa heterogeneidade de hipóteses, um elemento comum permeia boa parte dos estudos: a noção de que o jeitinho, a malandragem e congêneres surgem como uma espécie de "mecanismo de adaptação às situações perversas da sociedade brasileira", como ressaltou a antropóloga Lívia Barbosa, em seu livro O jeitinho brasileiro. Seguindo essa pista fornecida pelas Ciências Sociais, podemos arriscar uma hipótese genealógica para essas "atitudes desviantes": produto de uma combinação entre a árdua condição social e o histórico desamparo do poder público, o jeitinho e a malandragem constituiriam um instrumento de sobrevivência. 

Assim, essas transgressões seriam uma espécie de infração aceitável socialmente que, na maioria das vezes, justificar-se-ia, ou por uma facilidade em relação aos trâmites burocráticos das instituições oficiais, ou por uma necessidade resultante da dura realidade socioeconômica brasileira. Em ambos os casos, essas violações ético-legais seriam uma espécie de "drible" nas adversidades da vida num país, historicamente, repleto de desigualdades. Tomando esse raciocínio como premissa, podemos dizer que, no Brasil, burlar as regras morais e legais foi algo que se impôs como forma de adaptação ao "ambiente hostil". O brasileiro precisou ser malandro para sobreviver numa sociedade cruel e de enorme abandono do poder público. 

A origem e fundamento mais remoto da malandragem foi a conservação da vida: a vida se impôs perante as leis e os costumes éticos formalizados, fazendo as circunstâncias efetivas se sobreporem à moral vigente. Fazer uma fotocópia "clandestina" de um livro - do ponto de vista da Ética formalizada - seria algo reprovável e até mesmo ilegal, porém esta prática é uma das mais comuns em muitas universidades brasileiras. Apesar de se tratar de algo desviante de uma Ética tradicionalmente instituída, essa atitude não é difícil de ser justificada. No Brasil, onde o investimento em Educação é ainda escasso, e acesso aos livros de qualidade é muito limitado, os estudantes - em sua grande maioria com restrições econômicas - são obrigados a recorrer a meios extraoficiais. 

Além desse exemplo, poderíamos citar diversas outras situações em que as condições efetivas da vida no Brasil se impõem ao "formalismo" ético. A mãe que fura a fila do atendimento médico de um sistema de saúde saturado para salvar o filho; o morador de uma comunidade carente que faz uma "gambiarra" (ligação clandestina com a rede elétrica) por não ter acesso econômico aos meios legais de distribuição de energia elétrica; o motorista que avança o sinal vermelho à noite para não ser assaltado; ou mesmo um saque de alimentos a um caminhão tombado na estrada. Mas não se trata de justificar,aqui, uma transgressão generalizada. Como foi dito anteriormente, essa posição assume a "conservação da vida" como fundamento originário desse tipo de burla, mas - é necessário ressaltar - isso não significa dizer que, ainda hoje, a "vida" continue sendo o único referencial criador para toda atitude de infração à legalidade e ao costume ético tradicional. 

APOLOGIA À MALANDRAGEM 
Com o desenrolar histórico, a própria transgressão teria se transformado em uma espécie de modelo "ético". A antropóloga Lívia Barbosa vai nessa mesma direção: "de drama social do cotidiano [o jeitinho brasileiro] passou a elemento da identidade social. (...) de simples mecanismo adaptativo, reflexo de nossas condições de subdesenvolvimento, o jeitinho se transformou em elemento paradigmático de nossa identidade (...)". Se até o momento defendemos que a conservação da vida foi o ponto de partida para o surgimento do jeitinho e da malandragem, agora, além desse fundamento, um fator derivado - também impulsionador e potencializador da transgressão - teria surgido no desenrolar histórico-cultural do Brasil: a apologia da malandragem. O que queremos dizer é que a exaltação do tipo esperto - aquele que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo - ou a glorificação do malandro seria resultado de processos culturais. O tipo esperto teria passado a ser admirado como um vitorioso na luta pela vida. 

A partir disso, o malandro passa a ser visto como exemplo a ser seguido, torna-se um referencial para o "dever ser" e se transforma em um "paradigma ético paralelo". Assim, a malandragem - que, de início, foi impulsionada pelas imposições de conservação da vida - se converteu em referência para si mesma. Tornando-se uma espécie de categoria ético-metafísica, ela se transformou em valor moral e passou a ser norteada por si mesma. A malandragem se transfigurou em modelo ético para a própria malandragem. E ao tornar-se um valor, a malandragem passou a ser compreendida como uma espécie de essência biológica. Ou seja, se transformou em caráter inerente e distintivo de certos indivíduos. De um lado, teríamos a "espécie" dos malandros e, do outro, a dos "manés" - lembremos da clássica tautologia, tantas vezes cantada pelo sambista Bezerra da Silva: "malandro é malandro e mané é mané". 

 Conforme esse raciocínio, a "Filosofia ética da malandragem", por incrível que pareça, teria suas raízes fincadas numa forma de pensar essencialista, já que, na maioria das vezes, o senso comum concebe o "tipo malandro" como sendo esperto de nascença, como por exemplo, Macunaíma, personagem de Mário de Andrade e um dos símbolos da malandragem na literatura brasileira. Há, inclusive, no imaginário cultural do Brasil, a ideia de que o "jogo de cintura", a "malemolência" e a "ginga" são componentes essenciais do caráter do povo brasileiro. O agir malandramente já seria fruto do modo de ser do "esperto brasileiro". Nessa direção, recordemos a "lei de Gerson" - jogador da seleção de 1970 - que proclamava que todo brasileiro - incluindo ele - gostava de sempre levar vantagem em tudo. Diante disso tudo se pode questionar: qual o valor da "ética da malandragem"? 

Ela tem servido para conservar e engrandecer a vida? Tudo leva a crer que, ao promovermos essa a apologia da malandragem, perdemos o referencial originário, a saber, a vida. A malandragem gratuita, a da "lei de Gerson", a malandragem pela malandragem está conduzindo ao caminho contrário da conservação e engrandecimento da vida. Ao se conceber como um povo essencialmente malandro, um povo pacífico e cordial - para usar o termo de Sérgio Buarque de Holanda -, um povo que "resolve" seus problemas na base do jeitinho, o brasileiro estaria se desviando de transformações sociais mais significativas. "Ao funcionar como válvula de escape, ela [a transgressão pelo jeitinho] impede o surgimento de uma pressão social efetiva que leve a mudanças tão necessárias no nosso aparato legal e administrativo" (Lívia Barbosa). 

Ou seja, por ser constituída de técnicas individuais de sobrevivência, a malandragem impediria estratégias mais amplas de insurreição popular. Além disso, apologia da malandragem e a compreensão do povo brasileiro como essencialmente malandro traz à tona o perigo da justificação de uma corrupção generalizada e, por tabela, o efeito colateral de todo um encadeamento de chagas sociais. Concebida como característica natural, a corrupção passa a ser entendida como algo inevitável no Brasil. Isso nos leva a uma licenciosidade ético-legal justificada por uma espécie de determinação biológica. Essa banalização e justificação da corrupção trazem como consequência uma desestruturação social que torna as condições de vida ainda mais precárias. Temos uma espécie de movimento circular, em que os problemas sociais que engendraram a malandragem são realimentados pelo "modelo ético" da própria malandragem. Será que a necessidade de tanta malandragem não levará todos nós a assumirmos o papel de "manés"? 
João E. Neto

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...