Dante Alighieri, explicando o título de sua obra-prima, afirma que comédia é uma história que começa mal e termina bem, enquanto tragédia é uma história que principia bem e acaba mal.
Essa deve ter sido a dúvida que passou pela cabeça de todos os que assistiram à coletiva de despedida do Ronaldo: sua trajetória é de comédia ou de tragédia? Optando pela primeira resposta, muitos vão argumentar com a extraordinária guinada de vida que o futebol lhe permitiu dar.
Da origem humilde que parecia destinar aquele garoto a uma vida dura, obscura, quem sabe flertando com a criminalidade como tantos outros, ele passou à condição de famoso, admirado, milionário. Vieram muitos prêmios individuais, títulos em grandes clubes e na seleção, contratos polpudos para jogar e para fazer publicidade. Um fenômeno. Outros, porém, lembram que o sucesso foi intercalado por uma misteriosa convulsão, sérias cirurgias no joelho, escândalos na vida pessoal, dois fracassos inesperados nas Copas de 98 e 2006.
Alegam que o período de Corinthians foi uma síntese dessa trajetória: chegada badaladíssima, uma boa primeira temporada, fracasso nas duas Libertadores tão sonhadas pelo clube e aparentemente por ele próprio, novos problemas físicos. Os balanços e diagnósticos que interessam a torcedores e jornalistas são cruéis, qualquer que seja a resposta escolhida. Não existe mais o jogador, é preciso atenção para que esse fantasma não paralise o homem Ronaldo. Morreu o R9, viva o Ronaldo 2011.
Mas a questão é complexa: o jogador ajudou a forjar o homem, o homem se conhece em grande parte como jogador. O talento de um existe também no outro? E a força de vontade? É fundamental que ele faça o luto do jogador para alcançar autonomia enquanto homem. A maior dificuldade talvez esteja no fato de a torcida e a mídia, pelo menos por enquanto, recusarem-se a aceitar esse luto. Homenagens, reportagens encomiásticas, entrevistas, convites recusam a passagem para a outra vida. Mesmo porque os brasileiros pouco viram o jogador Ronaldo ao vivo. Algum tempo no Cruzeiro, magrinho e desconhecido, algum tempo no Corinthians, inchado e famoso. Pelé, Garrincha e Romário não tiveram um fim de carreira tão impactante emocionalmente talvez porque estiveram mais perto do público brasileiro. Para este, eles foram jogadores reais, enquanto Ronaldo a maior parte do tempo foi virtual. Só se viam suas maravilhosas jogadas pela TV.
Daí o entusiasmo quando apareceu em carne e osso para trabalhar no Brasil, daí a decepção e revolta quando o que se viu não correspondeu totalmente ao que se conhecia através da telinha. Esse caráter irreal leva muitos a qualificar Ronaldo de mito. O termo não é despropositado, embora por outras razões. Aplicado ao futebol, mito é narrativa coletiva (torcida, imprensa) que sob forma alegórica (clubes, bandeiras, heróis) exprime valores (dedicação, coragem, talento), comportamentos (rituais, tabus) e sentimentos (atração, rejeição, medo, prazer) da comunidade que o cria ou adota (a torcida de um clube ou do país). No contexto mítico, herói é aquele que sofre, supera provas, antes de alcançar uma condição acima do comum dos mortais. Nesse sentido, Ronaldo é mais herói que Romário. Cada um foi fundamental na conquista de uma Copa.
Nos clubes em que jogaram (PSV, Barcelona), Romário ganhou títulos mais importantes, no conjunto da carreira marcou mais gols. Mas o problema físico que tirou Romário da Copa de 98 aconteceu antes de ela começar, o do Ronaldo foi na final. O brilhante desempenho de Romário em 94 pareceu ocorrer com naturalidade, o de Ronaldo em 2002 teve a marca da superação após as cirurgias de 1999 e 2000. A agitada vida sentimental do Baixinho ocorreu mais ou menos na esfera privada, não teve a publicidade consciente do segundo casamento do Ronaldo, em castelo francês, com convidados famosos e uma separação relâmpago. No campo de jogo Ronaldo será lembrado por cenas opostas. De um lado, pela habilidade e velocidade com que, jogando pelo Barcelona, superou vários adversários desde o meio-campo para concluir na área do Compostela.
De outro, quem esquece a cena de sua rótula pulando para a frente quando conduzia a bola numa partida da Inter de Milão? Como numa partida imaginária pelo campeonato italiano, o milanês Ronaldo confunde o florentino Dante Alighieri, que deve pensar em outra forma literária para descrevê-lo: até aqui ele foi ao mesmo tempo comédia e tragédia.
Hilário Franco Júnior
Essa deve ter sido a dúvida que passou pela cabeça de todos os que assistiram à coletiva de despedida do Ronaldo: sua trajetória é de comédia ou de tragédia? Optando pela primeira resposta, muitos vão argumentar com a extraordinária guinada de vida que o futebol lhe permitiu dar.
Da origem humilde que parecia destinar aquele garoto a uma vida dura, obscura, quem sabe flertando com a criminalidade como tantos outros, ele passou à condição de famoso, admirado, milionário. Vieram muitos prêmios individuais, títulos em grandes clubes e na seleção, contratos polpudos para jogar e para fazer publicidade. Um fenômeno. Outros, porém, lembram que o sucesso foi intercalado por uma misteriosa convulsão, sérias cirurgias no joelho, escândalos na vida pessoal, dois fracassos inesperados nas Copas de 98 e 2006.
Alegam que o período de Corinthians foi uma síntese dessa trajetória: chegada badaladíssima, uma boa primeira temporada, fracasso nas duas Libertadores tão sonhadas pelo clube e aparentemente por ele próprio, novos problemas físicos. Os balanços e diagnósticos que interessam a torcedores e jornalistas são cruéis, qualquer que seja a resposta escolhida. Não existe mais o jogador, é preciso atenção para que esse fantasma não paralise o homem Ronaldo. Morreu o R9, viva o Ronaldo 2011.
Mas a questão é complexa: o jogador ajudou a forjar o homem, o homem se conhece em grande parte como jogador. O talento de um existe também no outro? E a força de vontade? É fundamental que ele faça o luto do jogador para alcançar autonomia enquanto homem. A maior dificuldade talvez esteja no fato de a torcida e a mídia, pelo menos por enquanto, recusarem-se a aceitar esse luto. Homenagens, reportagens encomiásticas, entrevistas, convites recusam a passagem para a outra vida. Mesmo porque os brasileiros pouco viram o jogador Ronaldo ao vivo. Algum tempo no Cruzeiro, magrinho e desconhecido, algum tempo no Corinthians, inchado e famoso. Pelé, Garrincha e Romário não tiveram um fim de carreira tão impactante emocionalmente talvez porque estiveram mais perto do público brasileiro. Para este, eles foram jogadores reais, enquanto Ronaldo a maior parte do tempo foi virtual. Só se viam suas maravilhosas jogadas pela TV.
Daí o entusiasmo quando apareceu em carne e osso para trabalhar no Brasil, daí a decepção e revolta quando o que se viu não correspondeu totalmente ao que se conhecia através da telinha. Esse caráter irreal leva muitos a qualificar Ronaldo de mito. O termo não é despropositado, embora por outras razões. Aplicado ao futebol, mito é narrativa coletiva (torcida, imprensa) que sob forma alegórica (clubes, bandeiras, heróis) exprime valores (dedicação, coragem, talento), comportamentos (rituais, tabus) e sentimentos (atração, rejeição, medo, prazer) da comunidade que o cria ou adota (a torcida de um clube ou do país). No contexto mítico, herói é aquele que sofre, supera provas, antes de alcançar uma condição acima do comum dos mortais. Nesse sentido, Ronaldo é mais herói que Romário. Cada um foi fundamental na conquista de uma Copa.
Nos clubes em que jogaram (PSV, Barcelona), Romário ganhou títulos mais importantes, no conjunto da carreira marcou mais gols. Mas o problema físico que tirou Romário da Copa de 98 aconteceu antes de ela começar, o do Ronaldo foi na final. O brilhante desempenho de Romário em 94 pareceu ocorrer com naturalidade, o de Ronaldo em 2002 teve a marca da superação após as cirurgias de 1999 e 2000. A agitada vida sentimental do Baixinho ocorreu mais ou menos na esfera privada, não teve a publicidade consciente do segundo casamento do Ronaldo, em castelo francês, com convidados famosos e uma separação relâmpago. No campo de jogo Ronaldo será lembrado por cenas opostas. De um lado, pela habilidade e velocidade com que, jogando pelo Barcelona, superou vários adversários desde o meio-campo para concluir na área do Compostela.
De outro, quem esquece a cena de sua rótula pulando para a frente quando conduzia a bola numa partida da Inter de Milão? Como numa partida imaginária pelo campeonato italiano, o milanês Ronaldo confunde o florentino Dante Alighieri, que deve pensar em outra forma literária para descrevê-lo: até aqui ele foi ao mesmo tempo comédia e tragédia.
Hilário Franco Júnior
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