Há 100 anos nascia o homem que faria brasileiros de todos os credos acreditar na vida após a morte. Que mudaria a vida de famílias desconsoladas. E que colocaria a ciência atrás de respostas para as vozes do outro mundo. o mito Chico Xavier gerou tudo isso. mas o que gerou o mito Chico Xavier?
Até hoje chegam chegam cartas a Uberaba, Minas Gerais, endereçadas a Chico Xavier. Vêm pelo correio ou são jogadas por cima do muro do centro em que ele trabalhava. Parece que seus autores não se lembram de que Chico não está lá - morreu há 8 anos. Quer dizer, o homem morreu. O mito não. Normal para quem, como ele, teve trajetória de superstar. Nos anos 80, mais de 100 pessoas faziam fila à sua porta todo dia. Nos 90, foi destinatário recordista de cartas no Brasil: 2 mil por mês. Seus mais de 450 livros venderam 25 milhões de cópias. E sua influência ajudou a tornar o Brasil o maior país kardecista do mundo, com 20 milhões de fiéis. Em 2 de abril, Chico completaria 100 anos. Nem após sua morte outro médium despertou tamanho fascínio. O que Chico tinha de diferente? A SUPER investigou. E achou uma fórmula com 3 ingredientes. Comecemos por aquele que foi a origem de toda essa história: as cartas dos mortos.
As cartas
Em 35% das cartas, a assinatura era muito parecida com a do morto, diz um estudo feito com familiares
É numa gaveta do guarda-roupa que Hilda Braga mantém há 30 anos a carta do filho Eurípedes, morto aos 21 anos por um aneurisma. A casa simples da periferia de Uberaba - sem telefone e cheia de eletrônicos quebrados, como a TV preto e branco - também guardou por um tempo 100 cópias da mensagem. Mas todas já foram distribuídas por Hilda a amigos e conhecidos. "Mãezinha Hilda, agradeço as suas preces", diz o texto. "Encontrei na vovó Sinhana a continuação do seu devotamento de mãe." A mensagem foi escrita pelas mãos de Chico Xavier. Mas Hilda, hoje uma senhora de 80 anos, não tem dúvida sobre a autoria das palavras. "Vieram de meu filho."
A declaração é comum no discurso de famílias que receberam alguma mensagem do além por Chico Xavier. Qual o trunfo do médium capaz de gerar essa certeza?
Pioneirismo não é. Nos anos 20, a carioca Yvonne do Amaral Pereira já psicografava receitas do médico Bezerra de Menezes, morto no século 19. Em Minas, Zilda Gama colocava as mãos sobre os olhos e escrevia livros com a assinatura de espíritos. Mas os textos dificilmente continham algum indício que servisse como prova irrefutável da autoria.
Já as psicografadas por Chico tinham indícios: dados familiares aos quais o médium supostamente não teria acesso. Na assinada por Eurípedes, são citados a avó Sinhana, o pai, Ibrahim, e um irmão, Vicente. Além dos amigos, que estavam com ele nos últimos momentos de vida, e da morte pelo aneurisma.
É um padrão nas cartas de Chico. Nomes de parentes aparecem em 93% das mensagens analisadas em um estudo da Associação Médico-Espírita de São Paulo, de 1990. Baseada em entrevistas com 45 famílias para quem Chico psicografou, a pesquisa também mostrou que a assinatura da carta era tida como muito parecida com a de seu suposto autor em 35% dos casos.
"Foi um susto ver nas cartas o nome da babá que trabalhava em casa", diz a mineira Célia Diniz, que recebeu uma mensagem assinada pelo filho, morto em um acidente de bicicleta aos 3 anos de idade. Célia representa o público cativo de Chico: as mães. Atrás de notícias dos filhos mortos, elas compareciam em massa nos dois centros que Chico teve - o primeiro em Pedro Leopoldo, cidade mineira onde o médium nasceu, e o segundo em Uberaba, onde ele virou mito. Chico recebeu até mães famosas, como a atriz Nair Bello. Ela foi 3 vezes a Uberaba antes de receber, em 1977, uma mensagem do filho Manoel, morto dois anos antes em um acidente de carro.
A atração das cartas estava no conforto que traziam. As mães buscavam consolo, explicação para a perda ou um mero alívio para a saudade. E encontravam isso nas mensagens. Além das referências familiares, que davam o ar de autenticidade, as cartas traziam boas notícias sobre o além. E vinham cheias de expressões reconfortantes. Grande parte começava do mesmo jeito: "Querida mãezinha".
"Eu estava prestes a enlouquecer quando a primeira carta chegou. Já havia pedido para ser internada", diz a paulista Sônia Muszkat. Foi em 1979 que Sônia recebeu essa mensagem do filho Roberto, morto aos 19 anos com um choque anafilático após uma cirurgia de desvio de septo. "Na carta, Roberto descrevia sua morte e pedia que eu não me culpasse", afirma Sônia. Ela receberia outros 53 textos psicografados por Chico. Alguns vinham com frases em hebraico - Sônia e o marido são judeus. Roberto não falava o idioma, mas Chico dizia ao casal que ele estava aprendendo em uma colônia judaica no mundo espiritual. David, o pai de Roberto, chegou a desconfiar da história. Mas acabou convencido. "Em uma das sessões de psicografia, um cheiro delicioso de gardênias invadiu a sala. Depois veio uma mensagem assinada por Roberto: mãezinha querida, dedico essas flores a você."
Assim como Roberto, muitos desconfiaram das informações que apareciam nas cartas. E desconfiam até hoje.
A rotina nas sessões de psicografia era assim: Chico se sentava à cabeceira da mesa, todas as sextas e sábados. Psicografava 4 ou 5 cartas de parentes de alguns sortudos entre as dezenas de presentes à sessão. Segundo Chico, ele não podia escolher quem seria atendido - apenas os próprios espíritos. "O telefone só toca de lá para cá", dizia. Quem entrava na fila deixava o nome em uma lista de espera e podia até acompanhar as sessões de psicografia, mas sem garantias. Daí a estupefação das famílias quando Chico lia em voz alta uma mensagem cheia de referências à família e a situações vividas pelo morto.
Mas há quem diga que Chico tinha um jeito de conseguir os dados. "Funcionários do centro espírita iam à fila pegar detalhes dos mortos. Ou aproveitavam as histórias relatadas por parentes nas cartas em que pediam uma audiência. As mensagens de Chico continham essas informações", diz o médico Waldo Vieira, com quem Chico dividiu o trabalho no centro entre 1955 e 1969. A dupla psicografava junto: quando um terminava de escrever as frases no papel, o outro assumia o lápis. "Os dois produziam textos complementares assinados pelo mesmo autor", diz o jornalista Marcel Souto Maior em As Vidas de Chico Xavier. A parceria acabou nos anos 60, quando Vieira continuou seus estudos de medicina no exterior. Hoje ele vive em Foz do Iguaçu, onde fundou um centro de estudos religiosos.
Gente como Célia Diniz e Sônia Muszkat diz não ter fornecido qualquer dado a Chico. Mas a pesquisa da Associação Médico-Espírita de São Paulo indica que Chico fazia uma entrevista - de até 10 minutos - com famílias que participariam das sessões de psicografia. Aconteceu com a do engenheiro paulista Mauricio Lopes, de 38 anos. Nos anos 70, seu irmão de 9 anos foi atropelado e morto. A família foi várias vezes a Uberaba atrás de ajuda. "Chico perguntou a minha mãe detalhes da morte e nomes de parentes. E tudo foi citado na carta depois", diz Maurício.
Mas será que Chico era o líder de um grupo que saía à caça de dados de mortos? O filho adotivo do médium, Eurípedes Higino dos Reis, garante que não: "Chico conversava com cerca de 60 pessoas toda semana, mas sobre vários assuntos. Elas pediam conselhos financeiros, falavam sobre doenças. Nunca vi funcionários questionarem famílias desde que comecei a cuidar do centro em 1975".
Até hoje poucos estudos tentaram verificar a autenticidade da psicografia de Chico. Um dos que mais avançaram, conduzido hoje pela Federação Espírita Brasileira, aponta que os textos podem ser genuínos. A prova seriam fatos históricos que Chico dificilmente conheceria, mas aparecem em alguns de seus textos (veja no boxe à direita).
O fato é que as cartas ganharam credibilidade, inspiradas por fontes do além ou terrenas. Até serviram como prova em 3 julgamentos - e absolveram um empresário acusado de homicídio. (Chico psicografou uma mensagem da vítima dizendo que a morte havia sido acidental.) As cartas geraram mais fé do que desconfiança. A verdadeira polêmica surgiria no outro filão do médium: os romances.
AS VOZES
Algumas das mensagens que Chico disse ouvir. E os dados que as tornam tão impressionantes.
"Tenho procurado melhorar, a fim de auxiliar ao papai Ibrahim e aos irmãos Vicente e os outros dois, que perfazem um trio de bênçãos para a nossa casa."
Carta de Eurípedes Braga, psicografada em fevereiro de 1981.
"Rogo a Ricardo preparar-se com atenção para colocar o tefiliN com o êxito necessário e habilitar-se para recitar com clareza o Sidur."
Carta de Roberto Muszkat, setembro de 1980. O texto cita as caixas de couro e um livro usados nas rezas judaicas.
"Mamãe Elvira, você se lembrará de quantas faixas precisei para suportar as queimaduras."
Carta de Ericson Fábio Diniz de Oliveira, abril de 1985. Ericson morreu por causa de queimaduras sofridas em um acidente com tíner.
"Sou eu, o Tetéo.Vovô me auxilia a escrever, porque estou aprendendo."
Carta de Rangel Diniz Rodrigues, novembro de 1984. Rangel morreu antes de ser alfabetizado, aos 3 anos de idade.
"O carro deslizou sem que eu pudesse controlá-lo. A manobra infeliz veio fatal e com tamanha violência que a idEia de suicídio não devia vir à baila."
Carta de Manoel Francisco Neto, psicografada em junho de 1977. Manoel era filho da atriz Nair Bello e morreu em um acidente de carro.
A polêmica
Show de materialização de espíritos e truques para incrementar as sessões de psicografia. O lado pirotécnico de Chico Xavier provocou desconfiança. E atraiu de vez a atenção da mídia.
A carreira literária de Chico começou cedo. Aos 22 anos, ele publicava Parnaso de Além-Túmulo, um livro com poesias psicografadas de nada menos do que 14 poetas célebres, do Brasil e de Portugal. Uma estreia inspirada por um conselho vindo da mãe de Chico. Da finada mãe de Chico.
Chico tinha acabado de entrar em contato com o espiritismo. Aos 17 anos, Francisco Cândido Xavier - seu nome completo, pelo qual ainda era conhecido - acompanhou uma irmã doente a um tratamento espírita em Pedro Leopoldo (cidade em que morava com os pais e os 15 irmãos). Lá, conheceu a obra de Allan Kardec. E foi incentivado por líderes espíritas a psicografar. Logo nas primeiras cartas psicografadas, veio a carta de sua mãe, morta quando o médium tinha apenas 5 anos de idade. Ela pedia que Chico se aprofundasse no espiritismo.
Chico seguiu o conselho. Em grande estilo. Ele dizia que não escolhia os espíritos a quem atenderia, só via fantasmas e ouvia vozes. Mas parecia ser o escolhido pelas celebridades do céu. Cruz e Sousa, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos e Castro Alves lhe ditaram versos e prosa. O material viraria o Parnaso.
No mundo de poesias espíritas, ninguém havia publicado um livro invocando tantos nomes importantes do além. O lançamento colocou Chico Xavier sob os holofotes. Não só porque ele dizia que gente da Academia Brasileira de Letras estava agora escrevendo por uma via pouco ortodoxa. Mas porque o rapaz de 22 anos tinha produzido obras razoavelmente fiéis ao estilo dos autores que as assinavam. E sem ter tido uma educação formal. Chico havia estudado até a 4ª série do primário. Deixou o colégio aos 13 anos, porque havia começado a trabalhar - primeiro em uma fábrica de tecidos, depois como caixa de um armazém.
A história dividiu o mundo da literatura. Alguns desconfiavam de que tudo não passava de uma fraude. A viúva de Humberto de Campos até tentou na Justiça, sem sucesso, levar os direitos autorais sobre as obras psicografadas do marido. Mas outros o defendiam. "Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, merece quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras", declarou Monteiro Lobato.
A desconfiança dos críticos tinha motivo. Apesar de não ter ido longe na escola, Chico foi autodidata e leitor voraz durante toda a vida. Colecionou cadernos com recortes de textos e poesias. Comprou livros de sebos em São Paulo. Em sua biblioteca, preservada até hoje em Uberaba, há mais de 500 livros e revistas, com obras em inglês, francês e até hebraico. A lista inclui volumes de autores cujo espírito o teria procurado para escrever suas obras póstumas, como Castro Alves e Humberto de Campos.
O debate em torno dos romances colocou Chico na mídia. "Foi aí que ele ficou conhecido", diz Nestor João Masotti, presidente da Federação Espírita Brasileira. Pesquisadores começaram a bater à porta do médium. Em 1939, até cientistas russos tentaram estudar seus poderes. "Mas Chico recusou, dizendo que seu guia espiritual Emmanuel não autorizava", diz Souto Maior em seu livro.
Das investidas da imprensa ele não escaparia. Eles queriam explicações não só para a linha direta que Chico dizia ter com as celebridades do outro lado, mas também para alguns shows que o médium andava fazendo por aí.
A pirotecnia
O que você veria se estivesse na plateia de Chico Xavier na década de 1940? Pra começar, um médium sentado em frente a uma cortina, a cerca de 10 metros dos espectadores. Luzes coloridas surgiriam detrás do pano. Um cheiro de éter encheria a sala. Lentamente, vultos brancos apareceriam - os médiuns explicavam que eram espíritos que haviam se materializado. "Muitas vezes a plateia podia até tocá-los e tirar fotos", afirma o médico espírita Eurípedes Tahan, que por mais de 30 anos acompanhou Chico em Uberaba e participou de várias dessas reuniões. Em alguns casos, o médium expelia uma pasta branca da boca, do nariz e dos ouvidos. Seria o ectoplasma, um produto da energia dos espíritos, considerado prova material da existência do além.
Os personagens principais da noite eram médiuns de outras cidades, acostumados a rodar o país com seus shows. Mas, em algumas delas, o próprio Chico emprestava seus poderes para a materialização. Ficava sentado em concentração enquanto os espíritos surgiam por detrás do pano. Registre-se: materializar uma pessoa, ou fazer surgir massa do nada equivalente a um homem de 70 quilos, não seria tarefa fácil. Seria necessário produzir um total de energia duas vezes maior do que é hoje produzido pela hidrelétrica de Itaipu por ano, segundo os cálculos feitos por especialistas e exibidos por reportagens sobre Chico nos anos 70.
Com shows como esses, Chico foi ficando famoso, graças a reportagens como uma publicada em 1944 por O Cruzeiro, então a revista mais importante do país. Mas ele ganharia manchetes mais bombásticas uma década depois. No fim dos anos 50, Amauri Pena Xavier, sobrinho do médium que também psicografa, deu uma entrevista ao jornal Diário de Minas - dizendo-se uma farsa. "Aquilo que tenho escrito foi criado pela minha própria imaginação", declarou. Só que o rapaz, de 25 anos à época, também insinuou que as cartas produzidas por Chico Xavier poderiam ser uma fraude. "Assim como tio Chico, tenho enorme facilidade para fazer versos, imitando qualquer estilo de grandes autores. Com ou sem auxílio do outro mundo, ele vai continuar escrevendo seus versos e seus livros."
Pegou mal para o tio. Mesmo depois que o sobrinho, denunciado como alcoólatra pelo próprio pai, pediu desculpas publicamente pelo que disse. Chico respondeu: "Não recebi as palavras dele como acusação nem desafio. Tenho a felicidade de possuir amigos que, em matéria religiosa, não possuem a mesma convicção que eu". Acuado pelas críticas na Pedro Leopoldo de 15 mil habitantes, Chico resolveu fazer as malas e partir para Uberaba, um polo do espiritismo onde contaria com o apoio de amigos. Mas não adiantou muito.
A imprensa seguiu na cola. Em 1971, um repórter da revista Realidade, José Hamilton Ribeiro, visitou as sessões de psicografia. E denunciou: tinha truque ali. "Meu fotógrafo viu um dos assessores de Chico levantar o paletó discretamente e borrifar perfume no ar. As pessoas pensavam que o perfume vinha dos espíritos", diz Ribeiro. Os questionamentos colocavam Chico cada vez mais em evidência no país. E o prepararam para aquela que seria sua prova final na mídia, também em 1971: o programa Pinga-Fogo, da TV Tupi.
Por quase 3 horas, o médium foi bombardeado por perguntas. Mas se safou. "Não me constam que obras complexas como a de Platão e Aristóteles tenham sido psicografadas. Não seria por causa da dificuldade?", questionou João de Scantimburgo, respeitado escritor da Academia Brasileira de Letras e homem católico. Chico respondeu: "Com todo respeito ao senhor, eu me permitiria perguntar se eles também não seriam médiuns". Assim Chico driblou os ataques. Disse estar sendo ajudado pelo guia Emmanuel. Foi um recorde de audiência: 75% dos televisores paulistas ficaram ligados no programa até as 3 horas da manhã. A entrevista rendeu retransmissão para 4 emissoras em rede nacional. Estava pronto o mito Chico Xavier.
A POLÊMICA HOJE
Ainda tem gente tentando entender os fenômenos de Chico, vasculhando as referências históricas e literárias que ele deixou em seus livros.
Literárias
Chico poderia ter plagiado obras. É o que investiga o espírita Vitor Moura, criador do site Obras Psicografadas. A tese é baseada na comparação entre textos. Como esta:
• "Ao norte, os barrancos cobertos de neve do Hermon se recortam em linhas brancas no céu; a oeste, os planaltos ondulados da Gaulonítida e da Pereia." Vida de Jesus, do filósofo Ernest Renan.
• "Ao norte, as eminências nevosas do Hermon figuravam-se em linhas alegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies da Gaulanítida e da Pereia." Há Dois Mil Anos, de Chico Xavier.
Históricas
A Federação Espírita Brasileira está avaliando citações históricas que aparecem nos romances de Chico. Pelo que já foi apurado, os pesquisadores defendem que as cartas podem mesmo ter vindo do além. "Alguns relatos são tão detalhados que Chico não os faria nem com a ajuda das melhores bibliotecas", afirma Gilberto Trivelato, coordenador do estudo. "Um deles diz que a Catedral de Notre-Dame, em Paris, tinha escadas. Hoje ela não tem. Mas, se você pesquisar a fundo, descobre que no século 19 tinha, por causa de enchentes."
A CIÊNCIA E CHICO XAVIER
Palavras do outro mundo? Fraude? Nem um nem outro. Para cientistas, a explicação pode estar num meio-termo.
Psicose
Nada de espíritos - por essa tese, as cartas seriam produzidas pelo próprio Chico. Só que ele não se lembraria disso. É como se fosse uma ação do inconsciente, ou de uma outra personalidade que ele assumiria. "A mente deixaria de ser única e vários pedaços assumiriam vida autônoma", afirma o psiquiatra Alexander Moreira de Almeida. "Mas fizemos testes com 115 médiuns, e eles têm uma sanidade mental acima da média da população", diz.
Epilepsia
Nos anos 70, a revista Realidade publicou a cópia de um eletroencefalograma do cérebro de Chico Xavier. Sem saber o nome do paciente, um médico analisou o exame e concluiu: havia ali uma descarga elétrica anormal, capaz de provocar uma convulsão. "Poderia causar alheamento, sensação de ausência, automatismo psicomotor", afirmava o médico Juvenal Guedes.
Criptomnésia
Um distúrbio de memória que faz com que as pessoas se esqueçam de que conhecem uma determinada informação. Os dados que Chico colocava nas cartas seriam apenas lembranças escondidas em seu próprio subconsciente. "Mas não há exame que detecte memórias falsas. Para evocá-las, o cérebro usa exatamente o mesmo mecanismo das verdadeiras", explica o neurologista Ivan Izquierdo, especialista em memória da PUC do Rio Grande do Sul.
Telepatia
Tem cientista que acredita que Chico poderia captar, inconscientemente, as memórias do morto - só de conversar com um parente dele. "O médium poderia usar poderes considerados paranormais para captar informações direto da cabeça das pessoas", afirma o psiquiatra Almeida. Até hoje, no entanto, a telepatia ainda não foi provada pela ciência.
O carisma
Órfão Maltratado na infância, um piadista quando adulto, vítima de UMA SÉRIE DE doenças na velhice. Não foi à toa que Chico Xavier conquistou a compaixão de todo o país.
"Em 1931, o espírito do poeta Augusto dos Anjos sentia muita dificuldade em escrever por meu intermédio. Na época eu trabalhava em um armazém e cuidava de uma plantação de alho. Os espíritos começavam a conversar comigo. E então ele ditou uma poesia, chamada Vozes de uma Sombra. Começou a falar com aquelas palavras maravilhosas, muito técnicas. Eu com o regador na mão e custava a compreender. Quem era eu pra entender aquilo, que estava aguando canteiro de alho?", contava com jeitinho mineiro, fazendo a plateia do Pinga-Fogo gargalhar. Chico era um piadista. Mas não só o humor deu o carisma que o acompanharia até o fim da vida. Chico Xavier era visto como um mártir, acima de tudo.
A começar por sua história antes de virar o médium que o país conheceu. Mineiro de família pobre, Chico dizia ouvir espíritos aos 5 anos de idade. Afirmava conversar com a mãe, recém-falecida. Da madrinha, com quem morava, ouviu um diagnóstico: estaria louco. E ganhou uns corretivos: garfadas (isso, golpes com garfo mesmo) no abdome. Rita de Cassia, a madrinha, ainda o obrigava a lamber as feridas de um primo, pra não falar mais daquelas maluquices de além. Órfão, mal-tratado e obrigado a trocar a escola pelo trabalho: assim era o pequeno Chico Xavier. Pelo menos na visão que Clementino de Alencar, jornalista de O Globo, passou em uma das primeiras reportagens sobre o médium, de 1935. Ela serviria como base para muitas das biografias já lançadas sobre Chico, e ajudaria a perpetuar a imagem de sofredor atribuída ao médium. Mesmo que detalhes da história tenham sido mais tarde desmentidos, como a versão de que Chico não era letrado.
Contribuiu para essa imagem uma política adotada por Chico desde sua primeira obra: doar todo o dinheiro conseguido com os direitos autorais de seus livros às editoras espíritas que os publicavam - e que costumavam manter instituições assistenciais. Ele nem assinava as obras. A autoria ficava em nome do espírito que teria ditado as palavras, como André Luiz e Emmanuel, os mais frequentes. "Os livros não me pertencem. Não escrevi nada. Eles escreveram", dizia. Se tivesse ficado com os direitos autorais, Chico teria levado uma bolada: 2,1 milhões de cruzeiros por ano, o suficiente para comprar 160 fuscas na época e equivalente a R$ 670 mil hoje. O cálculo foi feito nos anos 70 por especialistas, considerando uma venda de 300 mil livros por ano. Com a doação, Chico ajudou mais de 2 mil instituições do país, segundo seus assessores.
Desde 1960, quando se aposentou, Chico vivia com uma pensão de funcionário público (trabalhou como escrivão e datilógrafo no Ministério da Agricultura). Sua casa em Uberaba, preservada pelo filho Eurípedes, tinha um portão de quase 3 metros de altura para impedir que os mais fanáticos a invadissem. Por dentro era simples: tinha móveis baratos de madeira corroídos e decoração feita com presentes dos amigos (bordados, mantas, placas, quadros). Está lá também a coleção com mais de 40 boinas, que Chico usava para esconder a careca (e que substituiriam as perucas).
O médium também aparecia sob os olhos do país como um homem de saúde frágil. Ainda em seus 20 anos, quando já passava horas em sessões de psicografia à luz de velas, Chico descobriu uma catarata no olho direito. Depois dos 60, sofreu com pressão alta, uma hérnia e um tumor na próstata, que ele se recusou a operar com Zé Arigó, o amigo médium que dizia receber o médico Dr. Fritz. Em junho de 2001, quando se acreditava que estaria à beira da morte por causa de uma pneumonia nos dois pulmões, Chico conseguiu se salvar. E o Brasil inteiro comentou o que parecia um milagre.
Uma imagem captada pela TV Globo mostrou um raio de sol entrando no quarto do medium exatamente no dia em que Chico teve uma melhora repentina. "Ele já vinha tomando antibióticos havia 4 dias quando, de repente, começou a se recuperar", diz Eurípedes Tahan, o médico então responsável por Chico, e também amigo do médium. Dois dias depois, Chico recebia alta do hospital. Providência divina ou resultado dos remédios? Ninguém cravou a resposta. Mas o vídeo do episódio continua sendo visto até hoje pelos brasileiros no YouTube - tem mais de 100 mil visualizações.
Chico morreu em 2002, aos 92 anos, cumprindo uma profecia sua. "Só vou morrer no dia em que o Brasil todo estiver feliz", dizia Chico. E morreu mesmo. O médium teve uma parada cardíaca no dia 30 de junho, horas antes de o Brasil ganhar a Copa do Mundo de Futebol. Cerca de 120 mil pessoas foram a seu enterro, formando uma fila de 4 quilômetros e 3 horas de espera. O então presidente Fernando Henrique Cardoso emitiu uma nota lamentando a ida daquele que era "um grande líder espiritual e uma figura querida e admirada pelo Brasil inteiro".
Assim que Chico morreu, vários documentos que ele guardava - em geral cartas de pessoas que escreviam para ele - foram queimados por seu filho adotivo, Eurípedes Higino. Foi um pedido do pai em testamento. "Ele achava que era necessário para não dar nenhuma confusão para ninguém no futuro", diz. O filho também cuida da marca que se criou em torno de Chico Xavier. Graças ao registro da patente da assinatura do pai, ele hoje recebe 10% do lucro de tudo o que é lançado com ela (inclusive de filmes, como As Vidas de Chico Xavier, nos cinemas brasileiros a partir de abril).
O trabalho de Chico continua hoje nas mãos de outros médiuns, como seu colega e seguidor Carlos Bacelli, que atrai centenas de fiéis por semana a suas sessões de psicografia em Uberaba (há excursões toda semana saindo de São Paulo e do Rio de Janeiro). Bacelli inclusive diz receber mensagens do próprio Chico Xavier. E não é o único. "Mais de 20 médiuns já disseram ter psicografado textos de Chico", diz Higino. "Tudo mentira. Chico disse que não voltaria tão cedo." Como ele tem tanta certeza? O pai teria deixado um código, conhecido apenas por Higino e por Tahan, para ser identificado caso resolvesse mandar um alô para o mundo dos vivos. "Continuaremos esperando", diz o filho.
Gisela Blanco
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