22 de mar. de 2008

A ética dos encontros descartáveis


Falar de amor e sexo no século XXI implica refletir sobre a "sociedade do espetáculo" descrita pelo polêmico pensador francês Guy Debord. O autor analisa uma forma de estar no mundo em que a vida real é, inexoravelmente, pobre e fragmentada - e as pessoas são obrigadas a assistir e a consumir passivamente as imagens de tudo que lhes falta em sua existência subjetiva.
Essa perspectiva me remete ao termo "ficar" - rótulo informal para os encontros efêmeros e descartáveis, nos quais ver, ser visto e aparecer reduzem os casais a machos e fêmeas no cio. Os pares são transitórios, os arranjos duram apenas algumas horas, talvez dias. Ou minutos.
É o tempo do desejo saciado.A disposição para a entrega, para o "outro" e para o amor vive (ou sobrevive) sob o impacto do exagero, da aceleração e da competitividade. A sexualidade é experimentada como mais um produto de consumo, fica disponível num mercado de troca que não vai além da dimensão ilusória.

"Ficar" denuncia uma nova ordem das coisas e o inevitável entrelaçamento entre indivíduo e mundo. Uma espécie de voyeurismo, que ao mesmo tempo exibe e excita, restringe o potencial criativo dos verdadeiros encontros à mera satisfação carnal. "Ficar" torna-se o absolutismo literal, comprometendo a fusão com os outros sentidos. Impede a elaboração das fantasias indispensáveis à compreensão do que está por trás da banal conexão entre os pares e do que poderia ser apreciado, sentido e vivido como metáfora para novos e mais criativos estilos de relacionamento.

O "ficar", então, se legitima. Homens e mulheres experimentam, por meio da projeção, aquilo que não são e desenvolvem a fobia da entrega, do compromisso e da rejeição, autorizando a ética do provisório - uma lógica que interpreta um conjunto de valores passageiros e tenta estabelecer entre eles alguma ordem que os justifique.


O não-envolvimento, efeito dessa projeção, funciona como vacina que os imuniza contra prováveis desencontros, que invariavelmente ocorrem quando as exigências de suas verdadeiras imagens anímicas projetadas não são mais atendidas. Inconscientes da própria essência, muitos optam por relacionamentos compulsivos e superficiais, que alternam a necessidade de amar e abandonar. Em sua não-existência vazia, na qual um pode ser todas as coisas para o outro, vivem como verdadeiros camaleões, que se defendem dos predadores assumindo as características que o meio lhes impõe.

E passam a reproduzir infinitamente tal comportamento até que uma pálida e sutil inquietação interna os desarme para um primeiro contato com suas demandas da alma. Buscar na mitologia o pano de fundo que dá sentido às várias formas de estar no mundo é premissa básica da psicologia arquetípica. Associar histórias pessoais a mitos revela muito de nós, em várias etapas da vida. O mito de Ísis-Osíris, por exemplo, nos oferece informações e possibilidades de reflexão a respeito do "ficar".

Quando Osíris foi assassinado e desmembrado pelo irmão Seth, Ísis saiu à procura dos pedaços desse corpo amado, esquartejado e disperso pelo Egito, juntando todas as partes, exceto o órgão sexual, que foi substituído por um falo de ouro. Osíris renasceu reconstituído em Amenti - o mundo subterrâneo análogo ao Hades grego, o lugar onde está a psique, a morada da alma. E com o falo artesanalmente construído gerou Hórus - a possibilidade de germinar o novo não-efêmero, que facilita a cada ser viver de forma inteira uma relação harmoniosa de amor e cumplicidade.

Ísis é atribuído o "poder" do renascimento, que psicologicamente significa o reconhecimento de que a possibilidade de discriminação no mundo visível está intimamente relacionada ao contato com os mistérios do universo inconsciente. Esse mito fala de mulheres que buscam nos encontros provisórios partes do Osíris despedaçado em cada homem com quem se relacionam; e de homens acreditando que o grande mistério de sua vida se restringe à potência do falo de ouro, por meio do qual são estabelecidas relações de poder e submissão. Quanto maior a anestesia provocada por imagens coletivas estereotipadas e superficiais, menor a possibilidade do contato com o mundo interior e com a realidade multifacetada do "outro".

Nos dois últimos versos do "Soneto da fidelidade", Vinicius de Moraes propõe uma saída criativa para o misterioso prazer dos verdadeiros encontros: "que não seja imortal, posto que é chama, mas seja infinito enquanto dure".

Silvia Graubart, analista junguiana

Um comentário:

Donna Chic disse...

Poxaaa... muito bom este post!!!

xerooo *-*

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