30 de abr. de 2008

Aos que vierem depois de nós


Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura.
Uma fronte sem rugas denota insensibilidade.
Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.
Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!

Esse que cruza tranqüilamente a rua não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda, mas acreditai-me: é pura casualidade.

Nada do que faço justifica que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como, se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria: é quedar-se afastado das lutas do mundo e, sem temores, deixar correr o breve tempo.
Mas evitar a violência, retribuir o mal com o bem, não satisfazer os desejos, antes esquecê-los é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo.
Realmente,vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem, quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamentee não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempoque me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia.
Mas os governantes se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas.
E a meta achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempoque me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré em que perecemos,
lembrai-vos também, quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito, mudando mais freqüentemente de país do que de sapatos,
através das lutas de classes, desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos que também o ódio contra a baixeza endurece a voz.

Ah, os que quisemos preparar terreno para a bondade não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós com indulgência.
Bertolt Brecht
Picture by André Lhote

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