Adaptação de conto da década de 20 enfoca o inexorável: a impossibilidade de escapar da castração da finitude
Agosto de 2005. A alguns minutos da chegada do furacão Katrina, uma senhora no leito de morte, em Nova Orleans, Estados Unidos, abre seu diário e seu coração para a filha, num relato que recupera mais de oitenta anos de amor e segredos.
Este é o fio condutor da trama apresentada em O curioso caso de Benjamin Button, adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), lançado na década de 20. Com direção de David Fincher, em 2008, o filme parte da Primeira Guerra Mundial, nos idos de 1918, e chega ao início do século XXI.
Em seu depoimento, Daisy (Cate Blanchett) confessa seu amor por alguém incomum: um homem que nasce velho e rejuvenesce ao longo do tempo. Este é Benjamin Button. Abandonado recém-nascido e, por ironia do destino, criado num asilo, conhece-a ainda menina. Embora distantes por algum tempo, comunicam-se por cartas; Benjamin torna-se navegador e Daisy, bailarina de sucesso. Apesar dos universos e destinos diferentes, o tempo permite o encontro e os dois vivem uma história de amor, no ambiente cheio de esperanças dos anos 60.
Sob este prisma, o filme parece tratar de mais uma história comum, com amor, sofrimento e descobertas. Mas é nas sutilezas que mostra singularidade e poesia. Nesta tonalidade, a primeira lembrança confessada diz respeito a um relojoeiro quase cego, recomendado para fazer uma instalação na estação de trens. O inesperado ocorre na inauguração,quando todos vêem o relógio correr ao contrário. Para seu criador, era uma tentativa de fazer o tempo voltar e recuperar seu filho morto na guerra.
Benjamin é encantado pelo mar e pela força de seu Capitão Mike (Jared Harris). Apaixona-se por Daisy, mas vive passivamente este sentimento, enquanto a jovem vive intensamente. Envolve-se com a esposa de um diplomata que sonha (e realiza na velhice) atravessar a nado o canal da Mancha. A atitude do personagem sugere o ditado da sabedoria oriental, de placidez e complacência diante dos limites e circunstâncias. Suas restrições físicas, decepções amorosas e desafios não o levam à revolta. Nas diferentes situações, parece contemplativo, embora o mundo à sua volta fervilhe. Neste trecho da história, determinada pelo pós-guerra, pela revolução sexual e pela explosão de jovens atuantes, Button rejuvenesce a cada dia, embora seu olhar lembre resignação.
O contraste talvez repouse numa questão importante: embora os limites do tempo sejam intransponíveis, a vida é movimento e surpresa. Freud, em Além do princípio do prazer (1920), fala da luta entre as forças pulsionais de vida e de morte, movimento gerador de uma tensão inerente à condição humana. Como interagem a cada momento de prazer e relaxamento, uma nova força propulsora surge, gerando nova excitação, fruto da impossibilidade de satisfação ou do repouso absoluto, que seriam a morte. Quando se está vivo não caberá o definitivo, no campo das experiências e da vida psíquica. O desejo, então, depende da falta e de um sentimento de incompletude que, para a psicanálise, promove laços, desencontros, embates, paixões, a arte e, enfim, a cultura. De forma bem articulada, o enredo apresenta os momentos em que esperanças e frustrações seriam inevitáveis.
Como se perdoasse os altos e baixos dessa condição, Button é, ao mesmo tempo, protagonista e espectador, cercado por este mundo vibrante. Se não nos é possível escapar dos limites do tempo e da finitude, resta saborear as oportunidades oferecidas e contar com
a força vital. Essa configuração de vida, morte e transformação ganha sentido especial com a chegada do furacão Katrina, que invade com águas violentas a cidade – e a fábrica de relógios. Vale lembrar Mario Quintana “...porque o tempo é uma invenção da morte, não o conhece a vida verdadeira, em que basta um momento de poesia, para nos dar a eternidade inteira”.
Erane Paladino
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