15 de ago. de 2009

Guerreira invisível

A solidão é feminina? Ela crê que sim, que só o feminino deixa o vazio acontecer, independentemente de estar casada, ter filhos, namorados, amigos e de todas as outras funções sociais de uma mulher. Solidão não tem nada a ver com tristeza ou depressão, mas com traçar um novo caminho. Uma mulher de 30 anos, com certeza, pode sentir solidão pela falta de um parceiro. Afinal, nessa idade ela ainda precisa se definir como mulher, mãe, profissional e companheira. Quando uma mulher de 50 anos sente solidão, ela está querendo dizer outras coisas: que tem de encarar o vazio, tem de seguir, apesar das perdas afetivas, das separações conjugais, do envelhecimento e morte dos pais, do voo dos filhos para o próprio ninho deles, o vazio continua se abrindo à sua frente. E você tem que se interrogar sobre o sentido da vida. Fica um espaço aberto, um buraco que só ela pode preencher. A solidão é primordialmente feminina. Aos 50, ela não é mais uma fogueira que incendeia os olhares à sua volta, mas a sua presença aquece, dá colo, protege. De repente, ela tem outro jeito de estar presente, sem o turbilhão de emoções, sem a usina geradora de filhos, mas tem a força criadora do sentimento, da intuição, do requinte, da sensibilidade. Ela não é mais o fast food, mas o banquete servido com toalhas bordadas, taças de cristal e um cardápio de mexer com as sensações, os sabores, o gosto, os perfumes que embriagam a alma. Ela não toma mais porres homéricos, mas degusta o vinho. Depois de muitas perdas pelo caminho, ela tem de rever a estrada, que com certeza ainda terá seus desvios, mas a sua bússola interna indica uma posição mais confortável diante dos obstáculos. Apesar de ter ficado algum tempo à deriva, ela agora abre os braços e mergulha nos seus oceanos mais profundos. Sabe que pode vir à tona sem se afogar num mar de sentimentos contraditórios. Mesmo à deriva, ela consegue se questionar sobre o sentido da vida e sente o vento nas quatro direções, festeja a maresia e se desenferruja de amores antigos e assombrados. A solidão é outra. Ela não precisa mais estar no bar da esquina sorvendo a dor alheia. Ela sabe dos seus limites físicos e emocionais, apesar da turbulência que, às vezes, se desprende de suas asas. Não há mais lugar para a tormenta, a enxurrada que leva o melhor de si. É hora de deixar o Sol entrar pelos ambientes mais íntimos, abrir as janelas da alma, fazer a faxina das decisões negativas. Se ela vai errar? Com certeza, mas os erros não terão mais o mesmo peso. Pelo menos, ela tenta acertar mais, para não ficar repetindo padrões antigos, forrados e cimentados com mágoa e dor. Não há mais lugar para as falsas tochas da competição. Ela se apropria da própria história. Ela é mais uma guerreira invisível do que uma fêmea poderosa. No seu ventre renasce, a cada dia, a força da criatividade, a usina das palavras, a chama do presente. Ela não tem mais tempo de ficar remoendo o passado nem programando o futuro. Nem sabe se terá tempo. Não quer deixar mais nada para lá. Ela gosta do doce convívio consigo mesma, com os próprios ruídos que hoje sussurram mais do que gritam. Ela põe flores nos vasos da casa e se identifica sobretudo com as do campo, apesar de seu jeito urbano de ser. Gosta de incenso, que purifica a casa e o espírito. Gosta de música cigana, de Zeca Baleiro, de Adriana Calcanhoto, mas também das músicas que fizeram a sua história, como Mercedes Sosa, Chico Buarque, Caetano, Gil, Elis e toda a tropicália, que, durante muito tempo, a fez andar sem lenço e sem documento. Hoje, ela tem identidade, profissão, filho, formou e desfez a família, se exauriu, se recriou, virou órfã adulta, escolheu outros irmãos que não os biológicos e, às vezes, se sente só neste barco da existência, em busca das próprias velas, do prumo de si mesma. Então, ela prefere trancar-se dentro de si mesma, espanar os fantasmas que sempre voltam, mas agora de cabelos brancos e óculos para ler de perto. Eles veem, olham, analisam e não gostam do resultado, porque você está ficando cada vez mais invisível, mais translúcida. É por isso que é fácil encontrá-la em casa em silêncio, dentro do seu universo particular. Déa Januzzi
Picture by Pierre-Auguste Renoir

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