22 de set. de 2009

Consciência corporal

É possível aumentar a consciência sobre o próprio corpo e, com base nisso, conseguir mais harmonia com ele?
No tempo que passou em Milão, Leonardo da Vinci aproveitou para, além de produzir arte e artefatos de engenharia, estudar anatomia. Como era protegido pelo príncipe Sforza, espécie de dono da cidade, tinha alguns privilégios, entre eles o de dissecar cadáveres, para o desespero da Igreja medieval. Seus milhares de desenhos do corpo humano se transformaram no primeiro tratado de anatomia. Leonardo tinha especial atração pelos músculos e sua relação com os ossos e órgãos dos sentidos. Uma de suas observações, genial para a época, é que o cérebro percebe o exterior através de órgãos especiais que permitem a visão, a audição, a olfação, a gustação e o tato, mas também é capaz de perceber o interior, o próprio corpo, através de uma espécie de “sentido para dentro”. O gênio da Renascença tinha razão. Hoje sabemos que os músculos, as articulações e os órgãos internos informam o cérebro sobre suas condições através de corpúsculos e nervos, como se houvesse um sentido especial, só que voltado para o interior do corpo. Graças a isso, somos avisados de alguma dor ou desconforto. Claro, o corpo dá seus alertas, defende-se. E, da mesma forma, nos passa sensações de prazer, de bem-estar. Você nunca sentiu uma sensação de cansaço, como se seu corpo estivesse de mal com você? Claro que sim, mas, em compensação, também experimentou aquele estado de prazer proporcionado por um corpo harmônico e saudável. Coloque a revista no colo um instante, jogue seus braços para cima, agarre o pulso esquerdo com a outra mão e curve seu tronco ligeiramente para a direita. Segure- se nessa posição por apenas um instante e depois repita do outro lado. Pronto. Agora desça seus braços devagar, sentindo a sensação maravilhosa provocada pela circulação sanguínea, que se refaz após o alongamento. A consciência corporal nos dá um controle maior sobre nossas possibilidades e, claro, nossos limites. O corpo humano é uma maravilhosa estrutura em que tudo tem sentido. O complexo sistema de feixes musculares que permitem os movimentos fez Leonardo da Vinci acreditar na perfeição. Ele era tão entusiasta das potencialidades da musculatura humana que chegou a imaginar uma máquina de voar que se compunha simplesmente de asas iguais às das aves, que ele também estudou a esmero, como tudo o que fazia. Ele acreditava que seria suficiente dotar um homem dos apêndices que lhe faltavam para poder decolar, pois os músculos fariam o resto do trabalho. Estava enganado, é claro, e abandonou o projeto quando percebeu a especificidade muscular das aves. Elas evoluíram para poder voar, nós não, simples assim. Leonardo aceitou as limitações quando aumentou a consciência sobre o próprio corpo e disse, depois, que a consciência serve exatamente para isto: dar a conhecer os alcances e os limites. Sem consciência corporal não sabemos nem o que podemos nem o que devemos fazer. Deixamos de aproveitar o potencial do movimento, o prazer do alongamento, a sensação do relaxamento, o poder da força. Como aumentar a sensação agradável que a consciência do corpo pode dar? Não podemos esquecer nossas origens. Somos o resultado de um longo e lento processo de evolução, e ela se baseia no princípio da seleção natural. O que isso significa? Que somos descendentes dos mais aptos, daqueles que, de alguma forma, sobreviveram aos duros tempos da pré-história. E isso, acredite, não se fez apenas com boa intenção, e sim com competência orgânica. Sobreviveram os mais ágeis, rápidos, fortes. Nossos ancestrais foram verdadeiros atletas da modalidade “sobrevivência”. Então, quando negamos a atividade física e adotamos o sedentarismo como uma opção de vida, estamos contrariando nossa genética. O corpo em movimento é natural, assim como o repouso é importante. O coração agradece o exercício aeróbio, dos quais o simples caminhar é o melhor. As articulações precisam da mobilidade, senão começam a travar. Os músculos pedem para fazer força, pois para isso foram criados. Aliás, com relação a estes, há uma regra simples: o que está tenso, relaxe; o que está encurtado, alongue; o que está flácido, fortaleça. Minha amiga Luca é especialista nesse assunto, pois ela é uma osteopata – especialista no estudo dos músculos, dos ossos e da relação entre eles. O que ela faz exatamente? Ora, ela coloca o paciente no prumo. Acerta as equações entre os músculos, os ossos e as articulações, põe uma vértebra em cima da outra, devolvendo à coluna vertebral sua verdadeira função, a de dar equilíbrio e harmonia ao corpo, e dota seu paciente de uma postura elegante e movimentos fáceis e equilibrados. Seus dedos parecem ter pequenos tubos de raios X nas pontas e suas mãos são como pinças e alavancas que levantam, alongam, puxam, repuxam, acertam e harmonizam nosso aparelho locomotor. Ela toca os grandes e os pequenos músculos, mexe nos adutores, abdutores, pronadores, supinadores e tantos outros com nomes engraçados, que ela vai falando às vezes em português, às vezes em inglês e às vezes em latim. “Agora teu latissimus dorsis está descolado”, diz com naturalidade. Pode ser que você nem sempre entenda o que ela diz, mas sai de sua maca sentindo-se mais reto, mais alto e com uma amplitude de movimentos que não se lembrava que tinha. Luca é uma entusiasta da consciência corporal. Sua consulta é cheia de conselhos. “Sinta o giro de sua cabeça”, diz ela. “Perceba como seus ombros se projetam para a frente”, continua. “Diga- me o que você sente ao tentar alcançar seu pé”, ordena. Em uma hora de sessão, você migra da gratidão pela sensação de ter um corpo vivo ao ódio pela dor quase insuportável provocada por suas manobras firmes. Ela é uma profissional que acredita que seu trabalho é uma missão e faz mais do que devolver ao paciente equilíbrio e movimentos. Aumenta a consciência corporal, a autoestima e a alegria de viver. Sobre essa missão complementar, certa vez ela me disse: “Como pode alguém ignorar seu próprio corpo? Viver sem se sentir é comer sem saber o sabor da comida”. A ideia de cuidar do corpo não pode se transformar em uma ditadura da perfeição? Muito cuidado nessa hora para não confundir o compromisso com a saúde com a obsessão com o corpo perfeito. Os veículos de comunicação, como as revistas de moda e de esporte, são frequentemente acusados de criar estereótipos e modelos inalcançáveis, mas eles são, na visão da professora Maria Teresa Santoro, da Universidade São Judas Tadeu e conhecedora da relação entre mídia e corpo, uma extensão do ser humano, no sentido em que recolhem informações do mundo social e as remodelam para transformar em linguagem de comunicação. Em outras palavras, se, por um lado, as revistas criam modelos, por outro são “tradutores sociais” responsáveis por fazer uma releitura de conceitos, emoções e aspirações que estão implícitos na sociedade. Assim, não é a mídia a responsável pelos padrões estéticos, mas o próprio público, que acata com agrado consumir esses conceitos que circulam em mão dupla. Mais um motivo para se investir de consciência corporal. Para não ser uma presa fácil de modismos e estereótipos, mas usá-los como base no que deve e no que não deve ser feito. Mas, mesmo com a diversidade de estudos e estudiosos sobre o caso, a problemática do corpo está longe de acabar – essa é só a ponta do mindinho. Também é importante lembrar que grande parte desse conflito se dá pelo próprio ambiente em que vivemos, portanto temos que cuidar dele. O lugar pode não ter estímulos para a livre vazão de energia criada pela tensão e, com base nisso, gerar uma série de reações adversas: músculos crispados, respiração acelerada e uma paciência prestes a “furar o saco”. Esses são sintomas comuns de nosso organismo querendo nos alertar. Desenvolver a consciência corporal ajudaria então a desenvolver as relações humanas? Sem dúvida. Essa é a área de trabalho escolhida pelo médico ucraniano Wilhelm Reich, conhecido como o grande pai das terapias corporais no Ocidente. Reich teve uma vida conturbadíssima e polêmica. Foi fazendeiro, estudou direito antes de se formar em medicina, era judeu, negava o judaísmo e, mesmo assim, foi perseguido pelo nazismo. Foi discípulo de Freud, mas se afastou dele. Mudou para os Estados Unidos, onde divulgou suas idéias e acabou morrendo na prisão. Vida conturbada à parte, Reich teve o mérito de colocar o corpo nas discussões sobre a psicologia humana. Ele acreditava que o homem teria costurado para si uma “capa invisível” e inconsciente para se proteger dos males externos, tornando o corpo um refletor direto da mente. Os músculos tensos, a boca retraída, a postura inclinada, o queixo projetado e os movimentos rijos, todo esse conjunto de aparências presumia o que ele chamou de “couraça muscular” e serviria para proteger o indivíduo portador de uma personalidade fragilizada. Reich supôs que o ser humano tinha uma série de camadas, como as da Terra, que serviam para proteger seu “núcleo” de possíveis ameaças. Segundo ele, o indivíduo sedimentava crostas de vivências que se sobrepunham umas às outras com o decorrer do tempo. Esse envoltório ia se enrijecendo à medida que era necessário experienciar sensações desagradáveis, servindo também para acobertar sentimentos prazerosos que poderiam torná-lo presa fácil dentro do mato urbano. Ele ainda considerava que toda a energia circulante do corpo passava obrigatoriamente por certos segmentos chamados de “anéis”, concentrados em sete regiões: pelve, abdômen, diafragma, tórax, pescoço, boca e olhos. Aliás, essas bolinhas cristalinas são os maiores receptores e irradiadores de energia do organismo – e não é à toa que os olhos são vistos até hoje como o grande reflexo da alma. É, sim, possível se livrar das couraças reichianas e um dos caminhos é, como vimos, a ampliação da “consciência corporal”. Pode levar algum tempo, mas é muito bom fazer as pazes com o corpo e usá-lo como um belo caminho para a alma. Enquanto isso, use como inspiração estas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano: “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”. Eugenio Mussak

Um comentário:

Julimar Murat disse...

Oi Léo
recebi um selinho no meu blog e estou repassando prara voces
Um abraço
Julimar

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