Apenas por seu currículo musical (foi crooner e baixista de um conjunto que se exibia em cruzeiros marítimos, compôs duas canções napolitanas e o hino oficial de seu clube de futebol, o Milan) Silvio Berlusconi jamais seria capa da revista Rolling Stone.
Nem sequer da Rolling Stone italiana, que só brindou o premiê com uma copertina (a de novembro) e o título de "rock star dell'anno" por conta exclusiva de seu "estilo de vida roqueiro". Admiradores de Alice Cooper, Axl Rose, Jimmy Page, não gostaram da comparação. Libertinos, sexistas, autoindulgentes e arruaceiros, sim; corruptos e mafiosos não protestaram na internet.
"O que Rod Stewart, Brian Jones e Keith Richards aprontaram em seus anos dourados foi pinto comparado com as bacanais de Berlusconi", enfatizou a comentarista Carola King, do jornal inglês The Independent, não se referindo exatamente às orgias que o capo di tutti i capi da política italiana patrocinava em seus há muito longínquos anos dourados, mas àquelas escancaradas por sua mais notória e linguaruda bacante, Patrizia D"Addario.
Toda a redação da Rolling Stone fechou com o primeiro-ministro italiano, desprezando os outros dois finalistas, Barack Obama e Bento XVI, tratados como estrelas do rock pela mídia, mas excessivamente morigerados para o cetro em disputa, sem dúvida em boas mãos com o libertino, sexista, cafona e autoindulgente "Burlesconi", um Paulo Maluf com satiríase.
Os italianos ainda se divertiam com a capa da Rolling Stone e o "Papi Natale" (Papai Noel) em que a revista L'Espresso transformou Berlusconi em sua última edição, quando a signorina D"Addario soltou na praça um livro de memórias de inspiração felliniana, Gradisca Presidente (literalmente, "Obrigado, Presidente"), farto em detalhes sobre os seus encontros amorosos com o roqueiro do ano (mais duas lésbicas) no palácio Grazioli. Patrizia é prostituta assumida e jura que o "sultão" (é assim que se refere a Berlusconi desde que a seu lado jantou, em palácio, cercados por duas dezenas de odaliscas agenciadas pelo grão-vizir e proxeneta Gianpaolo Tarantini) lhe prometeu um terreno na cidade de Bari, em troca de seus favores amorosos, e deu o beiço.
"Tutte invenzioni", chiou o advogado do sultão. Mas como, a exemplo do cacique Juruna, Patrizia tem o hábito de gravar tudo, o advogado, prudentemente, não insistiu.
Sem mais o que dizer sobre o seu impudente duce, os berlusconistas apelaram outra vez para o mais cafajeste dos mantras:
"Meglio un presidente puttaniere che un presidente ferroviere" (mais vale um presidente frascário do que um presidente ferroviário).
Eles se merecem. Com seu voto já deram três mandatos ao sultão, envergonhando o resto da Itália, constrangendo a União Europeia e causando perplexidade na comunidade internacional.
Se Berlusconi fosse apenas um dissoluto, um César temporão, um Augusto aggiornato (o sucessor de Júlio César também gostava de ninfetas e usava um saltinho para disfarçar a baixa estatura), não o mais rico, poderoso e corrupto líder político da Itália moderna, a comunidade internacional não se sentiria tão incomodada com a sua presença. E Umberto Eco não teria sido tão veemente ao alertar para o declínio inexorável, e possivelmente definitivo, do país caso o empresário fosse eleito mais uma vez, em 2001. Mas ele foi reeleito - duas vezes, aliás -, e a Itália não teve como se desviar do destino previsto por Eco.
"Se um homem de negócios, que em outro país ocidental com alguma tradição liberal-democrática se limitaria a construir palacetes em Milão, assume o controle absoluto dos meios de comunicação e domina a cena política por mais de 20 anos, chegando três vezes ao cargo de primeiro-ministro, como aconteceu com Berlusconi na Itália, o mínimo que nos cabe fazer é analisar o fenômeno e dele extrair o máximo de lições possível." A proposta é de Pierfranco Pellizzetti, autor do recém-publicado Fenomenologia di Berlusconi (Manifestolibri), um exame da mutação cultural da sociedade italiana a partir da década passada, quando a "banal mediocridade" representada pelo ídolo televisivo Mike Bongiorno perdeu sua hegemonia para a "mediocridade lobisomem" representada por Berlusconi e empurrou a Itália para "um precipício humano, político e civil".
Pellizzetti trabalha com o mesmo instrumental analítico usado por Eco em sua Fenomenologia di Mike Bongiorno, escrita em 1961 e incluída na coletânea Diário Mínimo. Campeão de audiência na televisão italiana durante quase meio século, Bongiorno, um bobo alegre que vivia de plagiar programas de variedades americanos e foi enterrado como herói nacional em setembro deste ano, encarnava, segundo Eco, a mediocridade absoluta do italiano médio, que se identificava totalmente com o apresentador e sua alvar alegria, sobretudo porque Bongiorno, que muito se gabava de sua ignorância, o fazia sentir-se, por comparação, mais educado, mais inteligente.
O que faz de Berlusconi um lobisomem? Sua monstruosa capacidade para seduzir milhões de italianos e incutir-lhes valores degenerativos, como o egocentrismo, a ostentação, o hiperconsumismo, a superficialidade, o provincianismo, o menefreghismo (a mais genuína indiferença italiana) e o sexismo.
Pasmo com a impunidade dispensada ao premiê e a relativa apatia com que o eleitorado acompanha suas estripulias, Pellizzetti conclui sua fenomenologia sem um prognóstico otimista. Talvez esteja agora mais animado com o surgimento do movimento No-B, deflagrado na semana passada, com repercussão mundial. Como o nome indica, é uma união de forças para dizer "não a Berlusconi". Sua primeira manifestação pública está marcada para o próximo sábado, na Praça da República, em Roma, às 14h, hora local. À mesma hora, em diversas cidades italianas, europeias e até americanas e canadenses, outros sit-ins também dirão não ao sultão milanês. Auguri.
Sérgio Augusto
Nenhum comentário:
Postar um comentário