26 de fev. de 2010

Freud e a mulher


A concepção freudiana de ciência foi impregnada pelo positivismo da época e sua teoria sobre a feminilidade apoiou-se num pensamento conservador e dominante.


A area da sexualidade humana foi fortemente marcada pelas teorias de Freud. A sua psicanálise acabou tendo um papel marcante no ocidente dentro da teia de discursos da modernidade que tentaram definir e conceituar a figura feminina, seu corpo, sua "função" e sua sexualidade. 


Entre outras preocupações, Freud retomou a discussão da natureza do sexo feminino, abrindo para a então nova ciência do inconsciente, possibilidades ainda inexploradas. 


Tentou então desvendar a feminilidade, estudar a sua constituição a partir da estrutura edipiana, que constitui uma das matrizes da psicanálise. Através da estrutura edipiana, Freud distribui as posições do pai, mãe, do filho e da filha e detalha o longo périplo através do qual cada um aprende a assumir a sua realidade sexuada ou, a resignar-se a ela, quando se trata da menina. 


 Para ele a lei do pai, ao proibir a posse da mãe, primeiro objeto de desejo, que deverá transferir-se para outra mulher e, no caso da filha, para outro sexo, inaugura o acesso à maturidade e à capacidade do simbólico, através da prova da castração. A posição de cada sexo está ligada à sua configuração morfológica. A menina é diferente do rapaz, sendo inferior a este, privada como está desse pênis que lhe falta, de que tem "inveja" e de que não encontra senão um pálido sucedâneo no clitóris. O sexo feminino é definido negativamente em relação ao sexo masculino. Tornar-se mulher é aceitar não ser homem, através de um laborioso itinerário cujas peripécias não descreveremos aqui. 


Uma certa bissexualidade vem corrigir esta disposição. Mas o acesso aos benefícios fálicos, à sublimação, custará caro à menina, sempre mais ou menos levada a escolher entre o prazer e o trabalho, enquanto o rapaz pode harmonizá-los. Freud não ignora o papel desempenhado pela cultura na determinação do lugar das mulheres, mas isso não "derruba" a estrutura edipiana, considerada como transcultural. É com nostalgia que ele verifica a evolução que se arrisca a conduzir ao desaparecimento da coisa mais deliciosa que o mundo tem para nos oferecer: o nosso ideal da feminilidade. A este título, Freud critica o feminismo de J. S. Mill, que reclama igualdade. Em linhas gerais, o pensamento freudiano, sublinha o dimorfismo, ou mesmo a dissimetria, dos sexos, mas a partir de um monismo fálico: não há libido senão masculina. Entretanto, o que é revelado pelo inconsciente parece espantosamente próximo do que é produzido pelo social. Encontra-se mesmo aí uma normatividade genital e heterossexual em harmonia com a forma da família tradicional. 


 Perto do final da vida, após um longo silêncio sobre a questão e efetuando uma crítica sobre si próprio, Freud não hesita em afirmar que durante o seu percurso lhe escapou alguma coisa da feminilidade, "esse continente negro". E dirige a Maria Bonaparte a pergunta que se tornou célebre: "Que quer uma mulher?", a qual não será dada resposta. Ao mesmo tempo em que a psicanálise foi capaz de dar conta do desejo das mulheres, ela permaneceu, até então, impotente perante o seu querer, que não coincide com o seu desejo. O que foi compreendido continuou insuficiente para explicar a feminilidade. Para Freud, o que constitui a masculinidade e a feminilidade é um caráter desconhecido que a anatomia não pode captar... "é impossível dar qualquer conteúdo novo às noções de masculino e feminino". 


 O discurso psicanalítico também contribuiu muito para reforçar o papel da mãe como personagem central da família. Mesmo não afirmando ser a mãe a "única" responsável pelo inconsciente do filho, considerou-a a causa imediata e primeira do equilíbrio psíquico deste. Para que uma mulher possa ser considerada "boa mãe" pela psicanálise, é preferível que ela tenha experimentado, em sua infância, uma evolução sexual e psicológica satisfatória, junto de uma mãe também relativamente equilibrada. Se uma mulher foi educada por uma mãe perturbada, terá grande probabilidade de que sinta dificuldade em assumir sua feminilidade e sua maternidade. Quando for mãe reproduzirá atitudes inadequadas que foram as da sua própria mãe. A "mãe má" não é mais, pessoalmente responsável, no sentido moral da palavra, e sim uma mãe "inadequada", uma espécie de "doente". A importância atribuída à figura da mãe foi expandida pela psicanálise de tal maneira que a "mãe má" foi "medicalizada", sem que tenha sido anulada as posições moralizadoras do século anterior. 


Ainda hoje, os modelos criados pela psicanálise estão tão enraizados na cultura ocidental, que a "mãe má" ainda é percebida como uma mulher ao mesmo tempo malvada e doente. E conseqüentemente foram aumentados os sentimentos de angústia e culpa maternas no séc. 20. Ao longo da história, a teoria Freudiana sofreu alterações e ampliações de conceitos. Helène Deutsch, discípula fiel de Freud, publicou La psychologie des femmes, retomando a seu modo os conceitos de Freud no que se refere à psicologia da mulher e da mãe. Uma de suas preocupações deslocava-se para o entendimento da psiquê da "mulher normal" ou "feminina" que é definida por Deutsch, por uma tríade básica que comporia o psiquismo feminino: a passividade, o masoquismo e o narcisismo. 


A maldição do pecado original pregada pelo cristianismo que pesou sobre as mulheres por longos séculos, parece ter recebido um tratamento "moderno" do século 18 em diante, destacando o discurso psicanalítico de Freud e seus discípulos, no final do século 19 e primeira metade do século 20. O que tinha uma conotação moral, passou a ser medicalizado e por último serviu de base para a formulação de conceitos sobre o psiquismo, o simbolismo e o imaginário femininos. A originalidade de Helène Deutsch consiste em mostrar, à sua concepção, que existe prazer na dor das mulheres. Muito do que se desenvolveu da teoria freudiana no que se refere às mulheres, contrariou o próprio Freud, e sua postura um tanto pessimista de que toda educação resultaria num fracasso, o que anularia muito do que foi aconselhado por Deutsch, Mélanie Klein, Winnicott, entre outros. 


Mas não impediu que o discurso psicanalítico de seus sucessores/discípulos se difundisse. Aqui podemos rever a postura comum atual, de que as mulheres sempre foram representadas por homens, nas diversas ciências. Na verdade, as mulheres também foram representadas por mulheres, como as psicanalistas discípulas de Freud, que pensaram como e a partir das representações masculinas. Muitas das que foram consagradas e saíram do anonimato foram justamente aquelas que souberam desenvolver as teorias dominantes da época sem romper com a sua base masculinizante, patriarcalista e repressiva. Na construção das teorias sobre a subjetividade da mulher-mãe a amamentação constitui um foco de destaque. 


O aleitamento, antes recomendado apenas pelos médicos, passou a representar pelos discípulos de Freud, a primeira prova de amor da mãe pelo filho, o despertar de sentimentos de prazer tanto físicos quanto espirituais. Winnicott foi mais longe no sentido de despertar na mãe o sentimento de sacrifício por seu filho quando aconselhou que:enquanto o bebê não encontra um ritmo regular, o método mais rápido para evitar-lhe o sofrimento é que a mãe o alimente quando ele quiser, durante um novo período, voltando a horas regulares que lhe convenham quando o bebê se torna capaz de suportar isso. Mélanie Klein também forneceu sua contribuição para a exaltação do aleitamento natural e o devotamento materno insistindo que: a experiência mostra que as crianças que foram amamentadas no seio se desenvolveram com freqüência muito bem (...) na psicanálise sempre se descobrirá, entre as pessoas que foram criadas assim, um desejo profundo do seio que nunca foi satisfeito. Para ela, de um modo ou de outro, o desenvolvimento de um ser humano teria sido diferente e melhor se tivesse sido beneficiado por um aleitamento bem sucedido. 


Posteriormente Klein concluiu que as crianças cujo desenvolvimento apresenta problemas embora tenham sido amamentadas no seio, estariam ainda pior sem isso. Winnicott responsabiliza exclusivamente as mães pela saúde dos filhos afirmando que: a saúde do adulto forma-se durante toda a infância, mas as funções dessa saúde, são as mães que as estabelecem durante as primeiras semanas e os primeiros meses da existência de seu filho. Desta naturalização das funções do corpo feminino, sobraram poucas alternativas às mulheres. Se o corpo fora feito para gerar filhos, não seria então natural que uma mulher não os tivesse, não os amamentasse, não fosse inteiramente devotada a eles. 


Logo, foram criados apenas dois modelos rígidos como opção para as mulheres, a que seguia a sua "natureza" e era naturalmente submissa, devotada, bondosa, comedida, discreta, boa mãe, boa filha, boa esposa, obediente, entre outros e a que não seguia a "natureza" e não era vista com bons olhos pela sociedade. Com toda a sua inegável contribuição ao campo da sexualidade, iniciada na segunda metade do século 19, a concepção de ciência de Freud estava impregnada pelo positivismo de sua época e suas teorias, construídas historicamente, estando sujeitas a reformulações. Sua teoria sobre a feminilidade apóia-se num tipo de pensamento conservador e dominante do seu tempo. Conservador e dominante porque 26 anos antes do nascimento de Freud, Charles Fourier já esboçava um certo progressismo quando escrevia em seus textos que o progresso e a felicidade de toda a humanidade se fazem em relação ao grau de liberdade das mulheres. 


Karl Marx já afirmava em A Ideologia Alemã, em 1842, que o trabalho assalariado representaria o primeiro passo para uma autonomia das mulheres, sendo então, a economia e não o direito, a base de uma emancipação das mulheres, bem como de uma nova estrutura familiar. E Stuart Mill, 13 anos após o nascimento de Freud, só para mencionar alguns, publicava diversos textos sobre a emancipação feminina onde afirmava que a biologia não poderia ser a verdade última da relação entre os sexos e que as mulheres atuais seriam produtos da educação, educação esta que poderia ser modificada. E Freud foi o jovem tradutor de alguns textos de Stuart Mill, não podendo, portanto, ser acusado de desconhecedor de novas formas de pensar a condição feminina. 
Vanessa Gandra Dutra Martins

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