Todo mundo tem algum tipo de segredo. Uma mania, uma fantasia, o desejo de vingança, um romance proibido, o passado nebuloso; são tantas as variantes que nem cabe listá-las aqui.
E porque elas existem entende-se que as ocultações permeiam a existência humana, tanto que é difícil imaginar um bom romance, uma boa novela (quem matou Odete Roitman?), um bom filme sem uma pitada de segredo. Um bom exemplo disso pode ser visto no filme As Pontes de Madison, dirigido por Clint Eastwood.
Em menos de dois minutos, o roteiro revela ao espectador que as duas horas seguintes discorrerão sobre as coisas que guardamos para nós. "Talvez vocês descubram que sua mãe tinha milhões de segredos", diz uma personagem ao casal de filhos cuja mãe, encarnada pela impecável Meryl Streep, havia deixado de herança para ambos a revelação de algo muito secreto: o romance que ela viveu com um fotógrafo durante os quatro dias em que o marido e os filhos viajaram. Três diários trancados em um baú continham os detalhes das confidências de Francesca Johnson. De tão íntimas, ela não as contou nem após a morte do marido. Mas ao mesmo tempo era algo tão importante que ela não conseguiu levá-lo para o túmulo sem compartilhá-lo com o filho e a filha.
Segredos são assim. Alguns contados, outros não. Tudo depende de o que eles nos causam e de como convivemos com eles. É normal guardarmos para nós o que não queremos dividir com amigos, parentes, namorado, marido, filhos. "Não se compartilha tudo nas relações", afirma o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, de São Paulo. Porque em uma relação a dois existe o Eu, o Tu e o Nós, e as pessoas têm de ter isso muito bem organizado intimamente e entender que o Eu é fundamental para a vida de cada um, já que nele estão nossos genuínos pensamentos, sentimentos, desejos, sonhos, manias, fantasias, devaneios e, claro, segredos.
Medo de verdade
Uma tia de meu pai bem que tentou guardar uma história por toda a vida, não tivesse o seu próprio segredo batido à porta. Cerca de um ano e meio antes de morrer, ela confidenciou à minha mãe um passado de fazer inveja a Janete Clair, a rainha da teledramaturgia brasileira. A jovem Alzira, então colhedora de café, foi obrigada a casar com o filho de um fazendeiro. Tiveram uma filha, mas de tão infeliz a moça largou tudo e todos e fugiu para São Paulo, onde formou nova família. Alzira viveu na tranquilidade até chegar o seu "momento novela das 8", quando o telefone tocou e do outro lado estava a filha abandonada querendo conhecer a mãe. A essa altura já tinham se passado mais de 50 anos de uma ocultação que só veio à tona porque Alzira não sabia se aceitava o convite para um encontro - que aconteceu - e pediu conselho à minha mãe.
Durante todos esses anos ela não sentiu remorso por ter abandonado a filha, pois tudo aconteceu quando ainda era muito jovem e imatura. Como não queria escarafunchar algo tão antigo, preferiu ficar em silêncio e guardar essa história em seu baú interno de memórias. "Um dos traços do segredo é a solidão e a sensação da manutenção de individualidade que ele carrega", afirma o psicanalista Rubens Marcelo Volich, de São Paulo. Assim, ao conservar algo para si, a pessoa também alimenta a ideia de que mantém sua individualidade distante dos olhares de julgamento que podem acompanhar quem ouve uma revelação. "Todos têm seu Dorian Gray guardado no sótão", afirma Ferreira- Santos, em uma alusão ao livro do escritor Oscar Wilde. O Retrato de Dorian Gray conta a história de um belo jovem que parou de envelhecer depois de ser retratado por um pintor. Os atos escusos cometidos por Dorian vão transformando seu lindo rosto pintado na tela em um monstro repugnante, reproduzindo a feiura interior de Dorian - ou melhor, seu lado mais sombrio -, até o dia em que esse segredo é descoberto e ele destrói o quadro, morrendo em seguida.
Muitas vezes as pessoas escondem as coisas por medo de serem mal interpretadas ou julgadas - até aí, nenhum problema. "O ruim é quando essa história secreta pode atingir os outros de forma nociva", afirma Volich. Paulo foi vítima de uma situação assim - ele e os demais entrevistados, com exceção dos especialistas, tiveram o nome trocado para preservar sua identidade.
Nos anos 1990, terminou um namoro e logo soube que a ex estava doente, internada no hospital. "Fui visitá-la e fiquei perplexo quando li no prontuário médico que a Julia era soropositiva. Namoramos quase um ano e ela não me disse nada. Tive de fazer três exames na época e um deles demorava um mês para ficar pronto, já que era realizado nos Estados Unidos. Minha vida ficou em suspensão até eu ter certeza de que não tinha sido contaminado", conta. Quando perguntou à ex por que ela não contara que tinha o vírus da aids, ela explicou que não teve coragem de dizer a verdade por medo de ser abandonada.
Confiança e catarse
Na mesma proporção que o medo, o preconceito muitas vezes impede as pessoas de serem transparentes. O corretor de seguros Heitor contou apenas para um colega da empresa em que trabalha que é soropositivo. "Só ele e meu chefe sabem. Preferi não dizer a mais ninguém porque ainda existem pessoas que olham feio para o portador do vírus." Essa escolha revela que há um critério de seleção do confi- dente (mesmo que inconsciente), já que as pessoas buscam a cumplicidade de quem ouve.
"O segredo tem ao menos um depositário. Um diário de anotações, um amigo ou um profissional especializado, como o psicólogo, o psicanalista ou o psiquiatra", diz Christina Hajaj Gonzalez, coor- denadora do Ambulatório de Transtornos Obsessivos Compulsivos da Universidade Federal do Estado de São Paulo. A psiquiatra afirma que o risco de escolher um amigo para confiar algo secreto está no fato de ele não conseguir guardar aquilo para si. Não somente porque muitas pessoas não sabem ficar caladas, mas porque a confidência pode ser muito grave e quem a ouve pode não dar conta de guardá-la.
As informações passadas para o site Wikileaks, por exemplo, podem ser encaradas como segredos que os informantes preferem passar adiante, pois sabem o quanto eles são capazes de interferir nos rumos do planeta. "Com certeza o Wikileaks cumpre um grande papel junto à humanidade ao denunciar, entre outras coisas, aquilo que o governo dos Estados Unidos tentou esconder. Os documentos vazados sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque demonstraram que existiam questões que iam muito além do que era selecionado para divulgar", afirma o consultor de relações internacionais Thomas de Toledo, de Campinas (SP).
Na esfera pessoal dos segredos, a certeza de que ele não vazará ao ser confidenciado está garantida quando ele é contado ao terapeuta. "O que se conversa no consultório não sai dele. Quando o paciente demostra a intenção de matar ou agir contra alguém, ou quando ele sabe que um réu está sendo julgado injustamente, nesse caso vai do terapeuta o bom senso de avaliar a quebra de fatos secretos em benefício dos outros", diz Christina Gonzalez.
A figura do padre - ou do pastor e do mentor religioso ou espiritual - também está acima de qualquer suspeita. "Quando uma pessoa procura o sacerdote, ela quer mudar de pensamento, de vida. Ela quer se transformar", afirma o padre Beto Badiani, da Diocese de Santo Amaro, em São Paulo. Segundo ele, a confissão tem poder libertador. "Pode, sim, haver uma catarse quando se conta um segredo", afirma a paulistana Adriana Dorgan, especializada em psico-oncologia e psicologia clínica. Só de ter alguém nos ouvindo, a situação pode não parecer tão ruim ou, melhor ainda, quando nos ouvimos falar, percebemos que aquilo não é grave como imaginávamos. "Quando compartilha, às vezes acontece de a pessoa entender os motivos de uma fobia ou compulsão", explica Adriana.
Miriam tinha um costume diferente: ou ela não jantava ou comia pouquíssimo à noite. Muitas vezes atacava a geladeira de madrugada até saciar a fome. Conviveu com o hábito durante décadas e recentemente segredou- o para duas amigas. "Depois, conversando com a minha mãe, entendi que eu não comia direito porque temia o olhar de reprovação dela diante da minha gulodice nas refeições. Meu segredo escondia o medo de ser pega comendo muito."
Silêncio protetor
Também há momentos em que o segredo pode ser necessário. O executivo Roberto viveu uma situação difícil e teve de cortar um dobrado em benefício do silêncio. "O telefone tocou no domingo e era uma funcionária minha aos prantos, dizendo que o chefe dela, então meu braço direito, a tinha assediado por telefone na casa dela. Descobri que ele estava tomando calmantes indiscriminadamente e tinha dado uma pirada naquele dia. Conversei com a funcionária, expliquei o que estava acontecendo e dei uma semana de folga ao meu assistente. Pedi que ela mantivesse sigilo sobre o que aconteceu, porque ele estava descontrolado e nem sabia o que tinha feito."
Para Roberto, o mais complicado nesse episódio foi ele ter de convencer a funcionária a guardar o acontecido e também a si próprio, para não contar a verdade ao protagonista da confusão. "Por muito tempo me questionei se agi certo, se eu não pequei pela bíblia empresarial. Pelo lado corporativista, não sei. Mas pelo lado pessoal acho que fiz certo, pois ninguém foi prejudicado", conta.
Manter um segredo sob certa aura de silêncio e confraria é comum na Polícia Civil. Quem me garante é o delegado T.F.A., de São Paulo. Ele explica que há um código de ética entre os policiais. "Quando participamos de uma ação, o que acontece fica entre todos os que estiveram nela. Se alguma coisa vazar, sabemos que foi dita por alguém do grupo. E, se for um vazamento de informação muito grave, o responsável por isso sabe que ‘caguetas’ não têm vez na Polícia."
E como voltar para casa leve quando se trabalha em um universo como esse? Segundo o delegado, ele aprendeu a ser dois-em-um. "Na delegacia sou sisudo. É o oposto do meu lado social, quando sou brincalhão. Aprendi com meu pai, que também era policial, que um segredo não se conta para ninguém. Uma vez dito, já não é mais secreto."
O advogado criminalista Alexandre Khuri Miguel, de São Paulo, partilha do mesmo princípio de que segredo não se fala. Por força do seu trabalho - muitos de seus clientes são traficantes e criminosos -, guardar esses fatos garante a confiança do cliente. "É importante que ele acredite em mim para me contar o que aconteceu e eu montar a defesa", explica. Nem mesmo com a mulher Miguel comenta sobre os casos nos quais está trabalhando.
Respeito à individualidade
Preservar segredos nas relações a dois mantém a individualidade. "É importante isso estar presente no namoro, no casamento. Eu acho que há coisas que não devem ser ditas, como uma ficada em uma festa, um caso passageiro", diz a terapeuta familiar Flávia Stockler, de São Paulo. A psicanalista defende que se as coisas estão bem entre as pessoas não há necessidade de levantar poeira, bagunçar a vida. "Também não acho justo com o outro xeretar a pasta de trabalho, o celular, o e-mail. Isso é invasão de privacidade gerada pelo medo e pela insegurança. E uma relação sem confiança não é válida."
Durante os 12 anos em que ficou casada, Ana Beatriz tinha uma relação aberta com o marido. "Sabíamos a senha de e-mail um do outro até por questão profissional. Como ainda não havia smartphone com internet e eu trabalho na rua, vez ou outra eu ligava para o Fernando pedindo para ele ver se tinha algum e-mail importante. Durante esses anos eu nunca vasculhei as mensagens dele." Mas depois da separação, ao descobrir que Fernando não mudou sua senha, Ana Beatriz xeretou a caixa postal do ex para saber com quem ele vinha saindo. "Eu queria saber se ele estava com alguém que conhecíamos enquanto fomos casados ou se eram novas amigas", revela.
De fato as pessoas guardam tantas coisas (e de naturezas tão diversas) que em 2004 o norte-americano Frank Warren criou o blog www. postsecret.com, onde publica mensagens de cartões-postais enviados por anônimos contando o que guardam somente para si. Entre as revelações postadas a cada domingo há algumas surpreendentes, como esta: "Querido marido, acredite em mim quando eu digo que você não deve ter ciúmes dos homens que eu conheço, mas sim das mulheres gays". "Todos nós temos segredos e eu acho que é isso o que nos torna interessantes", diz Warren, que já publicou quatro livros com o título Post Secret, contendo uma compilação dos melhores segredos que chegaram até sua caixa de correio.
Ao abrir espaço para as pessoas destrancarem seu baú interno, Frank Warren cria um ambiente de vazão do que elas não conseguem manter para si, mas que também não querem compartilhar com quem conhecem. Desde que foi criado, o blog já recebeu mais de 500 mil mensagens, em uma prova incontestável de que todo mundo tem algo a revelar - até mesmo Frank Warren, que me contou que em cada livro Post Secret há pelo menos um segredo seu publicado.
Roberta De Lucca
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