Para a Psicanálise, este comportamento é uma articulação da mente que não está suficientemente preparada para enfrentar o real e desenvolve recursos de fuga
O título, assim, com essa dupla conotação, é muito atraente para uma discussão que leva em conta essa ambiguidade.
Podemos entender com pulsão como: com vida (com pulsão) com energia e, concomitantemente, entender o oposto, (outro lado,) isto é: sem vida, sem energia.
Dependendo da intensidade, a pulsão pode virar compulsão, algo como excesso de pulsão, a ponto de provocar uma quebra no sistema regula- dor dos afetos. Com esta observação, podemos considerar que pulsão e compulsão são elementos da mente e ocorrem em diferentes intensidades e momentos da vida. Alguns perdem o equilíbrio emocional de forma muito grave, no entanto, não é o que acontece com a maioria, em que os danos não são excessivos.
Todos temos condutas restritivas, fazemos dietas, exercícios, ou bebemos em festas, mas a compulsão é diferente, ela é o excesso de um determinado comportamento que está associado à descarga de tensão, de dor, de compulsão. Como a dor psíquica não pode ser experimentada, ela é canalizada para a ação motora: a compulsão. Significa um agir angustiado, repetitivo, intenso, e que resulta na anestesiação da dor, transformando-a em dor corporal. O que é psíquico é vivido no corpo, como físico. Na verdade, o corpo vem em socorro da mente, entra em cena para protegê-la de uma dor psí- quica insuportável.
Nem sempre temos uma mente sufi cientemen- te forte para suportar uma dor, um sofrimento, ou porque a mente encontra-se frágil, com estafa, ou porque a dor é grande demais, um trauma. Desse ponto de vista já deu para perceber que a Psicanálise não visa à supressão, repressão do com- portamento compulsivo. Seu objetivo é o fortaleci- mento da mente para que esta esteja apta a supor- tar maior intensidade de sofrimento sem precisar recorrer a esse tipo de defesa compulsiva.
Sabemos que a mente é o resultado da intera- ção de recursos internos que são desenvolvidos em decorrência de solicitações internas ou externas. Isso nos remete à ideia de que os distúrbios psí- quicos são recursos mentais altamente sofi sticados e desenvolvidos pela mente como meio de lidar com as exigências do real. Neste sentido, toda a humanidade lança mão desse recurso; o que varia é o grau de intensidade dos estímulos externos e a capacidade psicológica de desenvolver meios, mais ou menos adequados para lidar com tais exigências, e que variem em diferentes momentos da vida. Todos nos utilizamos de mecanismos menos eficientes, no sentido de crescimento e desenvolvimento, em certas situações da vida; são os nossos pontos cegos.
"Diante de uma frustração, o aparelho mental não consegue elaborar uma dor menor" O que ocorre no atendimento psicanalítico é que, no processo de investigação da mente, as funções psíquicas vão se desenvolvendo e, consequentemente, tornam-se mais eficazes para lidar com suas dificuldades.
Teoria Freudiana
Freud fornece esclarecedora informação sobre qual é a área que deve ser abordada pela Psicanálise: uma vez esclarecidos os alicerces da teoria freudiana, no caso das compulsões fica mais claro pensar o que ocorre nos distúrbios alimentares em relação à formação da mente. Os processos psíquicos nessa específica área da mente relacionada ao distúrbio alimentar - algo como um cisto, já que as outras áreas estão preservadas - são muito primitivos em relação ao desenvolvimento global da mente, no sentido de que os recursos para lidar com o real são escassos e pouco elaborados.
Nessa instância, a organização mental se articula por meio de princípios rígidos, leis autoritárias, regras definitivas e fixas. Nessa área a mente funciona de acordo com o princípio do prazer, isto é, evitando desprazer a todo custo. Podemos nos perguntar: o que provoca tanto desprazer nos distúrbios alimentares que faz a pessoa regredir a momentos tão primitivos do desenvolvimento psíquico? De acordo com a teoria freudiana, observa-se que recursos mais evoluídos da mente estão impossibilitados, neste caso, de seguir seu curso natural. Diante de uma frustração, a dor é tão forte que o aparelho mental não consegue elaborar uma alucinação do prazer que vise a elaboração da dor. Esta condição é necessária para a percepção de emoções e de imagens as quais, armazenadas na memória, resultam em formulações disponíveis para a formação de pensamentos, o que implica na possibilidade de lidar com o real de modo a produzir respostas mais eficientes.
O que ocorre, ao contrário, é uma tentativa última de evitar o aniquilamento psíquico diante da dor. A pessoa desenvolve uma série de recursos intrinsecamente relacionados, que lhe garante não o conforto, mas a sobrevivência. Não uma boa solução, mas a acomodação possível. Sabemos que, nos casos graves, a fragilidade da mente é tal que o simples existir é motivo de sofrimento, de desprazer. A frase de Guimarães Rosa em Grandes sertões: veredas: "viver é perigoso", nesta situação, é levada às últimas consequências. As complexas nuances da existência, sutis e microscópicas, que ocorrem quase despercebidamente para a maioria das pessoas, são experimentadas, nesses distúrbios, como a grande dificuldade. E a solução mágica e hipomaníaca encontrada é anestesiar-se na conduta compulsiva ou na desafetação.
Em Trânsito
Há fases em que o distúrbio, geralmente enquistado, parece romper a membrana do cisto e tomar a pessoa inteira; a matéria do cisto impregna- a totalmente. Neste caso, é como se não houvesse um ego capaz de fazer filtragem dos estímulos da vida, um ego que deseje, que selecione. E a consequência é a compulsão, para o comer, por exemplo, em que a pessoa come indiscriminadamente. Parece que só existe aparelho digestório. Melhor dizendo, só existe comida que entra e sai, sem ser digerida e transformada em alimento. O que conta é o tubo digestório e, mesmo assim, na sua função mais simples que é a de dar passagem. O alimento, tanto real quanto psíquico, está sempre em trânsito. Nada fica. Nada é retido. Nada é selecionado. Não há o que memorizar. Não há sofrimento e dor; ficam eliminados porque não existem.
As relações de conflito do cotidiano, então, são vividas não com o outro, com o meio social, mas com o próprio corpo, com seu organismo, na sua fisicalidade. A competição é vivida entre a pessoa e seu estômago, suas vísceras e sua necessidade de alimento. Nesta área, a pessoa sempre ganha a competição, porque é autoridade absoluta. Como o afeto é basicamente persecutório, o tratamento que vai dar a seu corpo em suas relações afetivas será da ordem da violência. Em relação ao seu corpo, tenta superá-lo, dominá-lo, subjugá-lo à sua vontade autoritária, isto é, à satisfação básica de realizar-se para si própria. Se os afetos persecutórios não forem realizados na fisicalidade do seu organismo, o que acontecerá com sua mente? Se ela está esvaziada da estimulação externa e da vida interior de ser, se não é capaz de habitar mentalmente o próprio corpo, e se só lhe resta um mínimo de vida mental que é o viver na relação física e concreta com o corpo, nós podemos tirar essa sua única chance e possibilidade de ser?
Não temos antes de possibilitar o desenvolvimento da interioridade, do ser psíquico, do estar no mundo?
Em decorrência, esse tipo de recurso não se faria menos necessário?
Para que se possa dar conta da violência do cotidiano, não é necessário um ego integrado, estruturado? E não dizemos que o ego se estrutura na relação com o outro? A questão é que esse outro, gerador de ego, precisa, por sua vez, estar estruturado. No caso das anoréxicas, geralmente o afeto é vivido na mãe, e não é percebido como sendo dela própria, mas como sendo da mãe.
Contrariamente, também pode ocorrer que a mãe viva o afeto na filha, que é vista como sendo parte da própria mãe, ou uma parte importante de si e não como uma filha, um outro com existência própria. Neste caso, ocorre uma invasão total da interioridade da filha. Observa-se que a vida de relação segue o modelo simbiótico entre mãe e filha, com uma despersonalização de ambas, que tentam preencher um vazio com elementos concretos e não com interioridade.
Cabe à Psicanálise desenvolver interioridade ali, onde só há concretude. Colaborar para o desenvolvimento de elementos psíquicos que se estruturem em forma de uma mente mais organizada, mais potente, com capacidade de sonhar, de encontrar soluções mais sofisticadas mentalmente para as dificuldades próprias da vida.
Cássia A. Barreto Bruno - psicanalista
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