25 de jun. de 2014

Qual o sentido da vida?


O sentido da vida é que a vida acaba. Foi a lembrança que me ocorreu numa tarde de inverno, quando, caminhando, olhei para o céu e vi um azul tão azul, mas tão azul, que a única coisa que parecia fazer sentido era ficar ali, à toa, sentindo aquele solzinho. Mas justo naquela quarta-feira azulzíssima eu tinha uma missão: escrever sobre o sentido da vida. Bem que poderia começar e terminar com a primeira frase. Precisa mais? 

Se a vida acaba, nada melhor a fazer do que curtir o céu, o sol, a ausência de nuvens. Por um momento, desejei ser Enriqueta, personagem do cartunista argentino Liniers. Nos quadrinhos, a garotinha cheia de humor e personalidade se dedica às coisas simples da vida, sempre acompanhada de Fellini, seu gato de estimação. Deitar na grama e contar estrelas, ler debaixo de uma árvore e passar horas no balanço, enquanto Fellini persegue borboletas, são algumas das ocupações favoritas de Enriqueta, capaz de observar uma folha rodopiando ao vento e perguntar a ela: "Onde você aprendeu a dançar?".

O pai dessas criaturas delicadas é o argentino Ricardo Siri Liniers. Conhecido pela série Macanudo (bacana, na gíria castelhana), que traz Enriqueta e outros pesonagens, como pinguins e duendes de longas toucas, Liniers, aos 40 anos, é um mestre do gênero cômico que concentra, em quadrinhos, humor, crítica e questionamento existencial. "Prefiro as pessoas que se perguntam sobre o sentido da vida do que as que propõem a resposta", diz ele, ao telefone, de um quarto de hotel em Mendoza, na Argentina, onde passava férias. "Estamos todos nesta mesma bola, girando no Universo. A graça está no mistério. Se soubéssemos as respostas, a vida seria tediosa", acredita Liniers.

O sentido de sua própria existência, ele desenhou aos poucos. "Sempre me pareceu muito difícil que conseguisse viver de `historietas¿. Mas não havia um plano B. Era uma questão passional", conta. Com tiras diárias no jornal La Nación, Liniers se tornou cult e ganhou o mundo: seus quadrinhos são publicados na França, Itália, Espanha, República Tcheca, Peru, México, Canadá. E, claro, no Brasil, onde tem uma coleção de fãs. Como chegou longe assim é algo "misterioso como o mar". A inspiração, muitas vezes, vem das filhas de 3 e 5 anos. "Elas me fazem reviver as dúvidas existenciais", diz. Ou da natureza, como em uma viagem à Antártida, "um planeta gigantesco, assustador", onde se sentiu "chiquito". "É preciso se sentir pequeno para ter a dimensão real dos problemas. A vida é um minuto", reflete. Admite que já se sentiu sem rumo diante da perda de um amigo. Se tivesse de indicar o sentido da vida em uma estrada, o que escreveria na placa? "Ay que ser buena gente", em bom espanhol. "Mas não porque ser bom traga alguma recompensa. Ser bom é a recompensa", sublinha Liniers.


Primeira à direita: desfrute da paisagem

Sigo em frente com a metáfora da estrada. De brincadeira, recorro ao Google Maps. Pronto: o Sentido da Vida fica na avenida dr. Antonio de Barros, 90, Centro, Atalaia, Paraná. Trata-se de uma escola, a 555 quilômetros de São Paulo. Como em uma caça ao tesouro, continuo sem noção de como chegar ao x do mapa. Peço pistas aos passantes: a amiga, a faxineira, o motorista que me leva a uma entrevista. Enquanto ele me leva ao meu destino, faço a pergunta e ele responde surpreso: "O sentido da vida?...". Sua razão de viver são "as crianças", como se refere aos filhos, um rapaz na faculdade e uma menina no colegial. "Mas deve ter algo mais, né?", diz. Desço do carro culpada por botar tamanha minhoca na cabeça daquele homem.

As respostas, a essa altura, soam tão díspares como "salvar o planeta" ou "preparar o purê de batatas perfeito". Numa noite, conversando com Anita, minha filha de 9 anos, insisto na pergunta. "Nossa, mamãe, que assunto dramático!", exclama ela, sem saber o que significa a palavra sentido. Traduzo: "Por que a gente está aqui nessa vida?". "Ah, para viver a vida, né?", diz ela, puxando as cobertas. No dia seguinte, recebo o link para um estudo que investiga o sentido da vida, publicado na revista britânica Journal of Humanistic Psychology. Dirigida por Richard Kinnier, da Universidade do Arizona (eua), a pesquisa partiu da análise de frases e escritos de 200 pensadores - do escritor Oscar Wilde ao imperador Napoleão. Conforme o estudo, para uma minoria de pessimistas como Freud, o criador da psicanálise, e o escritor Franz Kafka, a vida não tem sentido. Para outro grupo, formado por gente como Napoleão e o físico britânico Stephen Hawking, a vida é um mistério. Poucos e bons, como o cantor Bob Dylan, acreditavam que a existência não passava de "uma piada". Já os idealistas diziam que o que vale é "amar, ajudar os demais". Caso do indiano Mahatma Gandhi, que afirmou: "Encontro minha felicidade me colocando a serviço de todas as vidas". Por fim, o resultado: "A vida é para ser desfrutada". Ao menos era essa a crença de 17% das personalidades, algumas tão opostas como o ex-presidente norte-americano Thomas Jefferson e a cantora Janis Joplin, que morreu aos 27 anos e cantava "aproveite enquanto puder". Ou seja, depois de analisar os escritos de 200 pensadores, a conclusão do estudo acadêmico foi a mesma de minha filha de 9 anos (!).


Curva suave à esquerda: não pense, sinta

O enigma que atormenta a humanidade guarda em si uma segunda questão: se a viagem importa mais do que o destino, como fazê-la valer a pena? As respostas estão quase sempre ligadas a crenças religiosas ou filosóficas. Na Antiguidade, a felicidade era a meta, em diversas correntes de pensamento. Para Platão, a alma só ficaria feliz se equilibrasse razão, coragem e instinto. Aristóteles, por sua vez, não julgava a felicidade como uma condição estática. Ele pregava que ela só poderia ser encontrada na contemplação da vida. Na Idade Média, quando o Cristianismo dominou a Europa, a religião transferiu o sentido existencial do individual para o coletivo. A vida terrena entrou em segundo plano, diante da incrível possibilidade de vida eterna. Nesse ponto, o assunto rende tanto que não caberia aqui.

No século 19, foi a vez do existencialismo. Nesta vertente filosófica, o dinamarquês Kierkegaard pôs nos ombros do homem a responsabilidade por seu destino. Na visão dos existencialistas, cada ser humano tem o livre-arbítrio e deve dar à própria existência um sentido. Com auge nos anos 50, a filosofia seduziu pensadores como Sartre e líderes espirituais como o indiano Osho, um cultuado místico contemporâneos, que afirmou: "A vida nem tem sentido nem é sem sentido. A questão é irrelevante. A vida é simplesmente uma oportunidade, uma abertura. Depende do que você faz dela. Depende de que sentido, que cor, que canção, que poesia, que dança você dá à vida".

O autodesenvolvimento é um atalho precioso nessa busca. Conta-se que, no portal do Oráculo de Delfos, na Grécia antiga, havia dois escritos: "Nada em excesso" e "Conhece-te a ti mesmo". Equilibrar os anseios da alma com as cobranças do mundo moderno é o desafio. "Temos um mundo interno, subjetivo, marcado pelo desejo. Mas há o mundo externo, com suas demandas. Se a vida ficar à mercê de apenas um deles, será prejudicada, ou pelo narcisismo ou pela submissão aos outros", pondera o psicanalista Roberto Girola. Ele compara o sentido da vida a um alinhamento desses mundos, em torno de um eixo. "É o eixo onde organizamos nossa ética e estética, ou seja, os valores e a maneira de ver a vida. Esse alinhamento confere uma dimensão sagrada à existência".

Há quem acredite que "largar tudo" e morar nas montanhas é a trilha ideal para chegar lá. Para outros, a vida urbana, a rotina profissional, a dedicação a uma causa humanitária, podem fazer tanto sentido quanto. Até porque o sentido da vida também é mutante. Para o estudante, é passar no vestibular. Para o formando, encontrar trabalho. O segredo está em identificar o que dá significado à sua vida. A bióloga Fernanda Yokoyama de Carvalho, 35, se encaixa no primeiro grupo. Mãe de quatro filhos, ela e o marido, Ricardo, iniciaram a vida juntos num vilarejo sem luz elétrica, em Lençóis Maranhenses (ma). Seis anos depois, sentiram falta de estrutura e seguiram para São Paulo. Os banhos de lagoa deram lugar a dias diante do computador. "Ricardo chegava em casa, as crianças já estavam dormindo. Fui entristecendo", lembra Fernanda. Grávida do caçula, a bióloga, que sempre gostou de cozinhar, decidiu apostar na gastronomia natural. Assim surgiu a Cozinha da Flor, uma empresa de congelados orgânicos, instalada em um sítio em Santo Antônio do Pinhal (SP). "Foi como plugar a vida de volta na tomada", diz ela. Para quem ensaia uma mudança similar, Fernanda recomenda: "Não pense, sinta. Procure resgatar seu sonho mais antigo, mesmo que pareça utópico. Esse sonho é sagrado".


A saída é por dentro: a porta é o silêncio

O resgate do sonho de ser astronauta, emblemático entre as crianças, é o ponto de partida do livro Sonhar é a Magia da Vida (ed. Ônix). Na ficção, um advogado abandona sua carreira e vai atrás do sonho de infância. O autor, o advogado Daniel Kaltenbach, ao contrário do personagem, não "largou tudo". Aos 41, é vice-presidente de um grupo financeiro. "A maioria das pessoas não vive, deixa-se viver. Aquelas que têm prazer no que fazem são as que cumpriram seus sonhos", acredita. "Quando desenterramos esses sonhos, o Universo conspira a favor. Caso contrário, é como andar na contramão", diz.

"Todos os caminhos levam a lugar nenhum, mas alguns caminhos têm coração", sugere o índio Dom Juan, no best-seller dos anos 70 A Erva do Diabo, de Carlos Castaneda. "Mas como saber se o caminho tem um coração?", questiona o aprendiz. "Qualquer pessoa sabe disto. O problema é que ninguém faz a pergunta. Um caminho sem coração nunca é agradável. Tem-se de trabalhar muito para segui-lo. Por outro lado, um caminho com coração é fácil", responde Dom Juan. "Na cultura indígena, o que dá sentido a vida é o espírito", emenda o ambientalista Kaká Werá, índio de origem tapuia, idealizador do Instituto Arapoty, que difunde os valores indígenas. "A vida é esse espírito manifestado em diversas formas. Em algumas tribos, ela é como um sopro divino que se corporifica. O desafio é vivê-la de acordo com a harmonia que nos inspira este mistério", diz. A natureza, em que tudo se conecta, revela o sentido da vida. "A natureza nos ensina a lei da interdependência que existe em cada coisa vivente. Ensina que a diversidade gera mais abundância. Isso é lição de amor e de unidade, na prática", diz. E deixa a dica: "A saída é por dentro. A porta é o silêncio".


Ponto final: bem-vindo ao ponto de partida

Aos 43 anos, a escritora americana Cheryl Strayed é sinônimo de best-seller. Ela é autora de Livre -A jornada de uma mulher em busca do recomeço (ed. Objetiva), em que narra sua saga de 1.700 quilômetros por uma árdua trilha, e que vai ganhar as telas de cinema em breve, com roteiro de Nick Hornby. Seu segundo livro lançado no Brasil, Pequenas Delicadezas, reúne o melhor de sua coluna Cara Doçura, em um site de literatura, onde ela atua como conselheira para desorientados de todos os tipos. O maior volume de cartas recebidas tem a ver com o amor romântico. "Queremos ser amados e aceitos. Cada carta me lembra quão fortes e resilientes somos capazes de ser, e ao mesmo tempo tão frágeis", acredita Cheryl. O sentido da vida, finaliza, é o amor. "Estou aqui para amar. O amor é a força mais poderosa que existe na terra - o amor romântico, o amor familiar, o amor de amigos e de filhos. Se formos bem no amor, estamos bem em todo o resto", diz a autora.

Recebo as respostas de Cheryl por e-mail, em mais uma quarta-feira azul. Olho para trás e percebo que, sem a menor ideia do que dizer sobre "o sentido davida", o texto se fez na busca. Não há um sentido só. Não existe ponto final. É no caminho que encontramos a escuridão e também a luz. Nada melhor, então, do que dar uma volta e conferir mais uma das máximas de Liniers, em uma tirinha de Enriqueta e Fellini: se o planeta está dando voltas no espaço, todos os dias são uma viagem.
Rosane Queiroz
Tirinhas: Liniers

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