Os argentinos, quem diria! Últimos representantes daquela escola para homens (que aqui no Brasil já fechou) elegeram uma presidente - Cristina Kirchner. Ponto para eles.
Não tanto pelo aspecto político da escolha, mas pelo antimachismo. Temos também Michelle Bachelet no Chile, Angela Merkel na Alemanha. Tínhamos Benazir Bhutto, assassinada por ter sacudido a ditadura no Paquistão, o que só aumenta a força simbólica de sua herança. Ainda temos a somali Ayaan Ali, refugiada na Holanda para escapar da lei islâmica. As mulheres estão tomando o poder? O mundo vai virar de cabeça para baixo? Não nos precipitemos. Mulheres no poder não constituem uma novidade assim tão espantosa.
Pensem na rainha Vitória, em Catarina de Médici e Isabel de Castela. No século 20 tivemos Margareth Tatcher, Indira Ghandi, Golda Meir. O poder é um lugar que tolera excentricidades, desde que não alterem seu funcionamento e os compromissos que o sustentam. Mulheres no poder não garantem, como sonhamos nos anos 60, políticas mais justas, mais humanitárias.
Podem ser tão truculentas e injustas quanto os homens. Condoleezza Rice não pratica a política dos sonhos dos movimentos feministas. Nem dos movimentos negros. Se o feminismo lutou pelo reconhecimento de que a diferença entre os sexos não implica diferenças de talento e competência, temos de admitir que também não garante diferenças éticas. As poucas mulheres que se destacam em altos cargos políticos interessam menos que a trajetória de milhões de anônimas para as quais o verbo poder importa mais que o substantivo. Hoje se diz que as mulheres “estão podendo”. O início desse deslocamento empreendido em direção ao território ocupado pelos homens foi registrado por Virginia Woolf em seu diário: ela escreveu que na Inglaterra da década de 20 a humanidade estava se transformando, ou pelo menos 50% dela - as mulheres.
Ocorre que os 50% de mulheres não se moveram de seus lugares tradicionais sem abalar a suposta identidade da outra metade. Masculino e feminino são campos escorregadios que só se definem por oposição, sempre incompleta, um ao outro. São formações imaginárias que buscam produzir uma diferença radical e complementar onde só existem, de fato, mínimas diferenças. O resto é questão de estilo.Até pelo menos a segunda metade do século 19 o divisor de águas era claro: os homens ocupavam o espaço público. As mulheres tratavam da vida privada. Privada de quê? De visibilidade, diria Hanna Arendt. De visibilidade pública. O termo é impreciso, pois nunca faltou visibilidade ao corpo feminino. Nem sob os véus islâmicos. Nem sob o jugo torturante de anquinhas e espartilhos. Do que as mulheres estiveram privadas até o século 20 foi de presença pública manifesta não em imagem, mas em palavra. A palavra feminina, reservada ao espaço doméstico, não produzia diferença na vida social. Ouvi do filósofo Bento Prado, em 1988, uma brilhante interpretação para a provocação lacaniana que diz “não existe a mulher”. Bento sugeriu que a inexistência de um significante que represente, no inconsciente, o conjunto das mulheres deve-se ao fato de as mulheres, durante séculos, não terem inscrito sua experiência no campo da cultura. Foram objetos do discurso dos homens, não sujeitos de um discurso próprio.
No último século, o avanço das mulheres sobre todos os espaços da vida pública abalou a sustentação imaginária da diferença, dita “natural”, entre os sexos. Isso produziu nos homens o efeito de uma perda. Ou de uma feminização. A masculinidade, construção discursiva tão cultural como a feminilidade, vem sendo profundamente abalada. A pergunta freudiana, “o que quer uma mulher?” foi substituída, em nossos dias, por: o que é um homem? O que um homem precisa fazer para provar que é realmente um homem?
Se na vida pública os campos já se embaralharam de maneira irreversível, na vida privada a resposta parece banal: um homem “se garante” ao satisfazer sua mulher. Isso torna o poder sexual das mulheres quase intolerável, com efeitos terríveis de aumento da violência doméstica. Se a satisfação da mulher é a prova dos nove da masculinidade do homem, pode-se dizer que esta é hoje uma fortaleza sitiada. Ou uma “identidade” (aspas necessárias) acuada. Os acuados, como se sabe, costumam ficar violentos - mas a brutalidade não pode ser o último avatar da masculinidade.Desde a popularização dos métodos anticoncepcionais, nada mais obriga uma mulher a permanecer casada, nem fiel, ao homem que não a satisfaz - supondo, como é provável que ela pense, que o problema seja apenas dele. Supondo que, no sexo, alguém possa satisfazer o outro por completo.
Outro aforismo provocativo de Lacan, “não existe a relação sexual”, refere-se à impossibilidade de complementariedade perfeita entre os sexos. Até mesmo o casamento, que na modernidade se inspirou na idéia de que homem e mulher poderiam formar dois-em-um, já não é o que prometia ser. Resta a histeria, essa forma de sofrimento neurótico que muitos psicanalistas (homens) consideram como o paradigma da feminilidade. A histérica acredita no Homem como detentor do falo - o que a torna irresistível para os que ainda esperam manter os territórios masculino e feminino rigorosamente diferenciados. Só que a demanda histérica é impossível de satisfazer, o que acaba por desmoralizar o poder masculino. A histeria seria uma espécie de “feminismo espontâneo”, na expressão de Emilce Dio Bleichmar: uma recusa do lugar estereotipado de castradas aliada à ignorância sobre o caráter simbólico do falo e da castração.
A alternativa seria a invenção de uma nova arte erótica, mais de acordo com as possibilidades de troca que já estão abertas, embora mal aproveitadas, a partir das novas configurações do masculino e do feminino.
A relativa feminização dos homens e a recém conquistada “masculinidade” nas mulheres podem contribuir para romper os automatismos sexuais que sempre empobreceram a experiência erótica de uns e de outras.
Se a delicadeza não precisa estar toda do lado das mulheres, os homens já não precisam se garantir pela força. Nem pela brutalidade.
Alguns meninos e meninas das novas gerações pós-feminismo sabem disso. Mas é preciso coragem e um pouco de imaginação para ultrapassar a miragem fálica que estereotipa a diferença sexual. As mulheres, que já nasceram “sem nada a perder”, poderiam ensaiar a mestria nas artes eróticas que a imaginação literária há muito lhes havia reservado.
Maria Rita Kehl, psicanalista
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