17 de mar. de 2008

Agruras de ser doutor


Obter um diploma universitário no Brasil nunca foi tarefa muito fácil. Ao contrário da América espanhola, que conheceu o ensino universitário no século XVI, por aqui, este luxo só deu as caras em pleno século XIX, e de maneira tímida.

Nos “obscuros” três séculos de colônia, “ser doutor” era uma missão quase impossível. Em uma terra rude, selvagem, de cotidiano pobre, desprovida de livros, bibliotecas, e mesmo de escolas, quem quisesse e pudesse obter um diploma universitário tinha de ir para a distante Europa. E poucos, bem poucos, podiam e queriam se deslocar tanto somente para se instruir, coisa de diminuta utilidade no dia a dia dos trópicos.

Uma política articulada da metrópole, interessada em evitar que as “luzes” entrassem na colônia e o “espírito de revolta” contaminasse os oprimidos colonos? Ora, nem os colonos viviam num calabouço, nem a dita metrópole era tão precavida e vigilante.

Deixemos de lado está visão maniqueísta e melodramática da história do Brasil. Portugal foi, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, um país pouquíssimo letrado e, o que é pior, com uma população que sempre demonstrou um interesse muito pequeno pela cultura e pela educação formal -as estatísticas da União Européia, até hoje, demonstram isso. O que esperar de gente dotada de tal bagagem cultural? Uma “Atenas dos trópicos”? Além do mais, sobreviver na colônia, para a imensa maioria da população, não constituía tarefa simples e ser cultivado era um fausto absolutamente dispensável.

É verdade que um nobre, mesmo da colônia -e há muitos-, deveria parecer nobre e portar-se como tal. Nesse sentido, ostentar um título de doutor, manter uns poucos livros em casa e até mesmo cultivar as belas letras ajudava, mas, por aqui, tais dotes estavam longe de ser imprescindíveis para as pessoas de qualidade. Trocando em miúdos, a formação escolar e os bens de cultura não eram prioridades na escala de valores da sociedade colonial brasileira, nem para a sua parcela pobre, nem para a rica. O prestígio da educação era tão diminuto que mesmo a sua ostentação como traço de distinção de classe não significava grande coisa nestas terras quentes.

É verdade que um nobre, mesmo da colônia -e há muitos-, deveria parecer nobre e portar-se como tal. Nesse sentido, ostentar um título de doutor, manter uns poucos livros em casa e até mesmo cultivar as belas letras ajudava, mas, por aqui, tais dotes estavam longe de ser imprescindíveis para as pessoas de qualidade. Trocando em miúdos, a formação escolar e os bens de cultura não eram prioridades na escala de valores da sociedade colonial brasileira, nem para a sua parcela pobre, nem para a rica.
O prestígio da educação era tão diminuto que mesmo a sua ostentação como traço de distinção de classe não significava grande coisa nestas terras quentes. Os colonos, pois, se não tinham muitos meios de obter um título de doutor, também não davam lá muita importância para isso. Ao contrário, ainda que a valorização de “sinais de cultura” não estivesse ausente da sociedade colonial, para o prestígio de um homem branco e bem nascido contavam muito mais a vestimenta dos seus escravos e a beleza dos seus cavalos, do que a sua seleta biblioteca, a sua variada cultura ou o seu belo diploma de doutor escrito em latim.

Em 1827, porém, depois de banhar-se nas “tímidas luzes” trazidas por D. João VI, o Brasil independente abriu as suas primeiras fábricas de produção de doutores, “fabriquetas” ainda: duas faculdades de Direito, uma em São Paulo -berço, entre outras coisas, daquela chusma de imitadores de Byron que cantavam o “mal do século”-, e outra em Recife -de onde também saíram suas pérolas, como o exótico Tobias Barreto, que editava, em 1870, um jornal na culta língua alemã em, pasmem, Escada, uma cidadezinha de Pernambuco, que hoje, no alvorecer do século XXI, conta com modestos 45.000 habitantes.
Meia década mais tarde, as duas unidades de Direito ganharam companhia. Depois de “incansáveis esforços” de um punhado de profissionais agrupados na Sociedade de Medicina da Corte, surgiram, em 1832, mais dois cursos universitários, ambos de Medicina, um em Salvador, outro no Rio de Janeiro. Essas quatro fabriquetas de “homens de rara inteligência”, como se costumava dizer, foi tudo que construímos ao longo do século XIX, frustrando aqueles que, como Joaquim Norberto de Sousa e Silva, sonhavam com uma fábrica bem maior, sonhavam com a instalação, depois de 1822, de uma portentosa Universidade do Brasil -coisa que, como sabemos, só viria a ocorrer na década de 30 do século XX, com a fundação da USP.
Mas, se o avanço do ensino universitário não foi nada exuberante, o mesmo não se pode dizer do prestígio daqueles que podiam trilhá-lo: os doutores. É só abrirmos os romances ou passarmos os olhos pelos jornais do século XIX para nos apercebermos disso. Há centenas de doutores nestes mundos, a maior parte deles ocupando posições sociais desejáveis e a esmagadora maioria egressa das quatro instituições que tínhamos então à mão -afora, é claro, os muitíssimo afortunados, formados na Europa. Eram modelos a serem seguidos: orgulho das famílias, objeto do desejo das boas moças casadoiras, peças indispensáveis para o andamento do Estado, enfim, exemplares acabados do que se entendia por “homens civilizados”.

O prestígio era tanto que o título virou sinônimo de “rico e poderoso” e desenvolveu-se o estranho hábito de atribuí-lo a todo e qualquer indivíduo que demonstrasse ter algum “berço”, ainda tal que indivíduo jamais tivesse passado pelos bancos de uma universidade. Ficou-nos, também, desses tempos de penúria dos meios para obtê-lo mas de sobrevalorização simbólica do título, uma série de outros “vícios”, entre os quais: o gosto pela ostentação de saber, não propriamente pelo seu cultivo, a crença de que o falar difícil é mostra de inteligência e berço -coisas inseparáveis na cabeça de muitos- e, sobretudo, o hábito elitista e pouco democrático de encarar o conhecimento formal como coisa de gente rica e bem nascida. Isso, no entanto, são histórias de um passado distante.
O Brasil coetâneo tem uma outra cara. É verdade que não ampliamos enormemente o ensino universitário de qualidade, nem criamos meios mais democráticos de acesso à academia, nem, tampouco, fomentamos uma visão menos elitista do ensino e do “cultivar-se. Todavia, promovemos um movimento mais sutil, menos trabalhoso e, a seu modo, muitíssimo eficiente: invertemos os termos da equação e transmutamos aqueles tão invejados doutores de outrora em “esnobes” que -como disse há tempos um político local, dando voz a um sentimento do senso comum brasileiro- “têm a bunda virada para o Brasil e a cara para Paris”.

Nesta terra de gente vaidosa e exibida, mas com poucas oportunidades para o “cultivar-se”, a inversão prosperou a tal ponto que não é incomum ouvir da boca de intelectuais e acadêmicos posições radicalmente antiintelectuais e juízos que indicam pouquíssima estima pelo saber que deveriam transmitir.

Daí, por certo, terem soado tão mal as considerações do sociólogo Fernando Henrique Cardoso acerca da ignorância do presidente e do seu ruidoso desapreço pela educação formal. Ainda mais FHC, um homem que se tem na conta de uma mistura de Descartes com o candomblé, mas que é visto por uma parcela expressiva da gente obreira e singela deste iletrado país como o “tipo ideal” do doutor de “bunda virada para o Brasil”.
Jean Marcel Carvalho França
Picture by Hans Hofmann

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