20 de abr. de 2008

Vergonha

Eu tenho um filho já adulto, engenheiro. É homem feito, mas vai morrer de vergonha ao ler este texto (desculpe, filhão, mas não encontrei história melhor para ilustrar este artigo). Quando ele tinha uns 3 anos de idade, seu pediatra, o doutor Nelson, recomendou que o menino fizesse uma postectomia – uma rápida cirurgia para retirar o excesso de pele que envolve a glande peniana, procedimento que facilita a higiene. E lá foi o pequeno.

Como costuma acontecer com as crianças, sua recuperação foi rapidíssima e, alguns dias depois, ele estava totalmente bem e feliz com seu “novo pipi”. Foi quando encontramos o doutor Nelson numa festa de aniversário. Ao vê-lo, o menino correu em sua direção, abraçou-o e, sem a menor cerimônia, baixou as calças e mostrou seu troféu, todo orgulhoso, provocando espanto e riso entre as pessoas, encantadas com a maravilhosa espontaneidade infantil.



Então – não poderia faltar –, um adulto qualquer, provavelmente uma avó, lhe disse: “Menino, você não tem vergonha?” Não, ele não tinha vergonha. Ele estava feliz com sua conquista, satisfeito com seu corpinho perfeito, alegre com os amiguinhos da festa, seguro com a companhia de sua família. Ele estava vivendo intensamente, e ninguém, ninguém mesmo, deve envergonhar-se de viver e ser feliz.
Mas o mundo que construímos, infelizmente, não é bem assim. Sempre tem alguém nos perguntando se não temos vergonha de alguma coisa, nem que seja de sermos nós mesmos.

A expressão “força de ego” é bastante utilizada em psicologia. Referese a uma noção freudiana clássica em que o bom funcionamento psicológico das pessoas pode ser avaliado de acordo com a maneira como elas lidam com o conjunto de fatores controladores do meio onde vivem – os códigos sociais e culturais, as regras sociais. Controles sempre existem, e é bom que existam, pois o equilíbrio das relações depende, em grande parte, deles. Se cada um fizesse o que lhe dá na telha, viveríamos em anarquia, o que contraria o princípio da civilização.

Até aí, tudo bem. Eu preciso entender meus limites e respeitar os ditames do bom convívio com os demais. Caso contrário, posso ser acusado de ser anti- social, egoísta, desagradável. Um verdadeiro sem-vergonha. Por isso, na educação de uma criança, faz parte ensinar- lhe os limites, até onde se pode avançar sem ferir o espaço dos outros, seja o espaço físico, seja o moral.
A noção da força do ego está atrelada ao equilíbrio entre o primitivismo dos desejos humanos e a sofisticação das regras sociais. Só que esse equilíbrio é o que, em física, poderia ser chamado de equilíbrio instável. Qualquer esforço ligeiramente maior, de um lado ou do outro, gera o desequilíbrio, a ruptura psicológica, o sofrimento emocional.

A espontaneidade de um menino que mostra seu “pipi” para o médico em uma festa pode se transformar em um trauma com repercussões sexuais se ele for severamente repreendido. E, se não o for, pode colaborar para um comportamento irresponsável no futuro. Mas há outra possibilidade.
Um fato como esse também pode ser utilizado como um momento pedagógico sobre normas de conduta, desde que a comunicação usada pela pessoa em que a criança confia seja natural e clara, como a educação em geral deve ser.

O psicólogo alemão Erik Erikson, uma referência quando o tema é infância, adolescência e os reflexos dessas fases na idade adulta, dizia: “Na vida social, a pessoa está completamente exposta e está consciente de que está sendo vista. A vergonha surge quando a pessoa ainda não se sente pronta para ser vista”. Como a cobrança social é cada vez maior – em termos de sucesso, realização, estética e posses –, é muito difícil alguém se considerar totalmente pronto para ser visto. E dálhe vergonha. Por outro lado, se alguém não demonstra vergonha jamais, pode ser acusado de ser alienado.

Não há vergonha em sentir vergonha. A questão central não é essa, pois a vergonha é normal. O importante é a análise da relação entre a vergonha que sentimos e o motivo que a fez aparecer. Às vezes, a vergonha é desproporcional e pode provocar traumas. O menino que mostra o “pipi” e é repreendido ou humilhado não entende o que há de errado em seu ato. E, pior, poderá envergonhar- se de seu corpo para sempre.
Se um garoto sente vergonha de fazer uma pergunta ao professor durante a aula, pois tem medo da violência do controle do meio – no caso, as gozações dos colegas –, pode ser um sinal de que ele se sente inadequado no meio em que está inserido. Ele não se sente pronto para ser visto. Por outro lado, o garoto que desrespeita o professor e os colegas com atitudes de indisciplina constante pode estar no extremo oposto. É arrogante porque nega o controle social e faz questão de explicitar sua revolta com a autoridade. Ele poderia ser chamado, facilmente, de sem-vergonha. Mais uma vez, estamos lidando com o equilíbrio instável da força do ego.


O tema da vergonha normalmente é analisando sob a ótica da psicologia ou da sociologia, entretanto ele também pode ser visto por outras lentes, como a da biologia. Em seu livro 'A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais', Charles Darwin afirma: “Enrubescer é a mais especial e a mais humana de todas as emoções”. E conclui dizendo que sua causa, a vergonha, é a peça-chave para a vida em sociedade.


Enquanto as sociedades de animais são regidas pelos instintos, a sociedade humana é regida por regras construídas intencionalmente. Darwin explica que o rubor é uma conseqüência fisiológica causada pela preocupação com o que os outros pensam de nós mesmos. A função do rubor é embaraçar quem ruboresce e constranger quem observa. E, assim, seguimos na vida, dançando a valsa da humanidade em um salão decorado com as regras da sociedade.

Em seu estado natural, o homem não se envergonha de nada, mas ele só está nesse estado na infância. Na própria infância da humanidade, metaforicamente descrita nas escrituras bíblicas, o homem não se envergonhava de andar nu. Foi só quando se viu expulso do paraíso que ele tratou de esconder seus genitais, “suas vergonhas”. Talvez isso seja apenas um símbolo da vergonha de ter traído a confiança do criador e comido o fruto proibido. A partir de então, teve início a humanidade controlada pela vergonha. Hoje, as religiões e o Estado valem-se do sentimento da vergonha para controlar as pessoas e manter o mínimo de equilíbrio social.


Portanto, a vergonha tem lá sua importância. Está ligada ao equilíbrio social e ao convívio humano. Sendo assim, estamos falando de algo humano, tanto do ponto de vista psicológico, quanto social e até biológico, como vimos. O problema está na vergonha desproporcional, tóxica, descabida, paralisante. Esta pode precisar de apoio profissional, mas pode também ser controlada à medida que o ego vai ganhando força, encontrando seus alicerces na maturidade, no autoconhecimento, na auto-aceitação.

Eu, por exemplo, que sou professor, perdi a conta das vezes que senti vergonha diante de meus alunos. Hoje, me parece ridículo, mas, no início da carreira, a insegurança era o precursor de fatos que me envergonhavam. Meu grande medo era que um aluno me fizesse uma pergunta para a qual eu não tivesse resposta. Já pensou na vergonha? Para controlar isso, eu falava sem parar, praticamente eliminando a chance de os alunos se manifestarem. Terminava a aula e saía quase correndo em direção ao porto seguro da sala dos professores.

Com o tempo, veio a segurança. Com ela, desapareceu o temor das perguntas e, mais, o temor de não ter uma resposta. Entendi que dizer que eu não sabia, mas que iria pesquisar e responderia na próxima aula, só aumentava a confiança que meus alunos tinham em mim. A vergonha sumiu. Foi substituída pela auto-suficiência.


Talvez você não acredite, mas devo ao fato de sentir vergonha de uma possível falha a qualidade pedagógica que desenvolvi e que me transformou em bom professor. Se eu não estivesse nem aí para a opinião de meus alunos e colegas, provavelmente não teria buscado o aprimoramento e a superação. A vergonha me salvou. Hoje eu me envergonharia de ter construído uma carreira sem compromisso, sem responsabilidade, sem excelência.

Que bom seria se a vergonha se fizesse mais presente em algumas esferas de nossa sociedade. Teríamos políticos mais responsáveis, profissionais mais ciosos, pais mais cuidadosos, cidadãos mais respeitadores. Quando assisto constrangido a um ato de vandalismo – como lixo jogado na rua, muros pichados, motoristas inconseqüentes e autoridades displicentes –, lembro-me de Rui Barbosa, que alegou, ironicamente, sentir vergonha de ser honesto, por tanto ver triunfar as nulidades, crescer a injustiça e prosperar a desonra.

Vamos concordar que a vida tem de ser vivida intensamente, mas não irresponsavelmente. Tentar ser feliz não é vergonha, a não ser que com sua felicidade você provoque a infelicidade de alguém mais. Mas isso, acredite, não é necessário, absolutamente.

Lembremos nosso grande Gonzaguinha, que cantou “Viver, e não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser um eterno aprendiz/ Ah, meu Deus, eu sei, eu sei/ Que a vida devia ser bem melhor e será/ Mas isso não impede que eu repita/ é bonita, é bonita e é bonita”.
Eugenio Mussak

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