7 de jun. de 2008

Cartola

Alguma madrugada fria da noite paulistana, agosto de 2007. Entre um copo e outro, tem cavaquinho, pandeiro, surdo. A roda de samba se anima, o bar inteiro canta: “Minha romântica senhora tentação / não deixes que eu venha sucumbir / nesse vendaval de paixão”.

Neste ano de 2008, Angenor ­ e não Agenor, como seria normal, por um erro do escrivão ­ de Oliveira estaria completando 100 anos.

Faleceu em 1980, mas, com sua música, deixou uma herança de obras-primas da poesia em nosso cancioneiro. Cantá-la pela madrugada traz saudade dos versos que falam de amor, amizade, esperança; versos manemolentes que parecem sentir falta de um mundo que deve ter existido um dia, ou que foi inventado pelo canto do sambista. Com vocês, mestre Cartola. Alvorada lá no morro Angenor de Oliveira nasceu no bairro do Catete, no dia 11 de outubro.

Terceiro filho, primeiro homem dos sete irmãos que ainda estavam por vir, fazia parte da pequena burguesia carioca do começo do século passado: morava com a família na vila de operários de uma fábrica de tecidos. O Rio de Janeiro de Angenor não queria ser europeizado; o Rio de Janeiro de Angenor se manifestava, nos momentos de alegria, ou nos momentos menos tristes, durante o Carnaval, nos ranchos que colocavam ­ literalmente ­ os blocos na rua e caíam no samba. Foi lá pelos 11 anos de idade que a vida de Angenor mudou: sua família empobreceu e foi para a favela do morro da Mangueira. Pouco depois morria a mãe, e o pai expulsava o garoto de casa. Angenor arrumou um emprego numa tipografia, sem deixar de lado o violão, que tinha começado a aprender sozinho.

O fato é que o emprego de tipógrafo não durou muito, e ele resolveu ser pedreiro. Ficava nos andaimes mexendo com as mulheres que passavam. “Isso é que é emprego!”, dizia. Como o pó de cimento grudava nos cabelos, arranjou um chapéu-coco para protegê-los. Estava feito: Angenor viraria Cartola.
Verde que te quero rosa
No fim da década de 20, junto com amigos, Cartola fundou um bloco que saía desfilando pelos arredores do morro, ia aos bairros vizinhos, chegava até a praça Onze, no centro, cantando e fazendo a maior bagunça.

Eram os Arengueiros. Foi para esse bloco que Cartola compôs seu primeiro samba, “Chega de Demanda”: “Com este time temos que ganhar / somos da Estação Primeira / salve o morro da Mangueira”. Anos mais tarde, em “Tempos Idos”, cantaria o momento com saudade: “Uma escola na praça Onze, testemunha ocular / perto dela uma balança / onde os malandros iam sambar”. Nessa época, os blocos carnavalescos começaram a se organizar em escolas de samba. O Estácio, com Ismael Silva, Edgard Marcelino dos Passos e Nilton Bastos, tomou a iniciativa e criou a Deixa Falar.

No morro da Mangueira, também prepararam os instrumentos: os Arengueiros afinaram o violão e o cavaquinho, apuraram o tamborim e fundaram sua escola de samba. Cartola escolheu o nome - Estação Primeira de Mangueira -, foi eleito diretor de harmonia e sugeriu as cores, verde e rosa. Se combinam? É ele quem diz: “O verde representa a esperança, o rosa representa o amor, como o amor pode não combinar com a esperança?”.
A bandeira verde e rosa subia cada vez mais alto, e Cartola se tornava um compositor aclamado no morro. Isso, porém, não significava que ele ganhasse com a fama ­ mesmo porque Cartola, ao contrário de muitos contemporâneos que já vendiam seus sambas, não acreditava que pudesse ganhar dinheiro com música.
Em tempos atuais, tal postura parece bizarra. De que forma um típico malandro como ele, cheio da ginga de outros carnavais, não percebia que naquela virada da década de 20 para a de 30, com a formação da indústria fonográfica e a modernização do rádio, o mercado queria compositores de samba para alimentar o consumo? O que não faltava naquele tempo eram cantores subindo e descendo os morros assobiando melodias alheias. Pois é, mas Cartola parecia não perceber. Tanto que, ao ser procurado pelo cantor Mário Reis para vender um samba, se espantou.
Como se comprar uma canção fosse mais ou menos como comprar o vento. Bem, mas ele vendeu: “Infeliz Sorte”, que mais tarde foi gravado pelo próprio Mário Reis em parceria com Francisco Alves.

A partir daí, Cartola deu passos para além da Mangueira: tentou carreira de intérprete com um trio vocal que não foi para a frente; lançou um programa de rádio que durou cerca de três meses; gravou com o maestro Leopold Stokowski, por intermédio de Villa-Lobos; e duas gravações de sambas de sua autoria foram lançadas nos Estados Unidos ­ entre elas, a conhecida “Quem me vê sorrindo / pensa que estou alegre / mas meu sorriso/ é por consolação”. Nada que o fizesse rico, na verdade.

As gravações norteamericanas, por exemplo, renderam a quantia de 7 mil-réis (na época, o preço de dois chapéus-coco). O sol que a todos cobreO Carnaval de 1948 trouxe a Mangueira orgulhosa na avenida, sagrada campeã com um samba de Cartola. Só que a alegria morreu com o Carnaval: pouco depois, o compositor adoeceu e não conseguiu mais trabalhar como pedreiro. Sem ter como ganhar dinheiro, mudou-se do morro e por muitos anos ninguém soube por onde andava. Foi encontrado pelo jornalista Sérgio Porto lavando carros em Ipanema.

Ele resolveu ajudar Cartola: arrumou-lhe um emprego de contínuo em uma repartição pública. Cartola voltou para o samba. Viúvo da primeira mulher, passou a viver com Euzébia Silva do Nascimento, a Zica, que mais tarde seria intérprete de algumas de suas canções, como “Ensaboa”, e dona de uma das mais românticas homenagens cantadas por Cartola: “Nada mais nos interessa / sejamos indiferentes / só nós dois / apenas dois / eternamente”.

Nesse tempo, Cartola e Zica trabalhavam com tudo e mais um pouco: ela cozinhava marmitas para vender na rua, ele era zelador. Mas não havia função que desmarcasse a alegria: o sol baixava e uma turma enorme se reunia na casa de Cartola e de Zica. Entre eles, Zé Kéti, Elton Medeiros, Nelson Sargento e Nelson Cavaquinho. Um time de ouro.

Certa noite, entre um samba e outro, uma inspiração: por que não montar um botequim? Nascia o Zicartola, que se concretizaria em 1963. O número 53 da rua da Carioca ficaria imortalizado como o lugar onde se comia bem ­ o cardápio era formado por iguarias como “filé à Clementina de Jesus” e “feijão à Nelson Cavaquinho” ­, e cantava-se, tocava-se e ouvia-se melhor ainda, exatamente os sambistas que cediam seus nomes às receitas de Zica.

Gente da velha guarda misturada com gente que começava. Todos no compasso do mesmo samba. “Foi por meio de Cartola que deixei de ser bancário e me tornei músico profissional. No Zicartola”, conta Paulinho da Viola. Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Armando Costa também freqüentavam o restaurante.

Lá, em 1964, tiveram a idéia de juntar Nara Leão, a menina da zona sul, Zé Kéti, o malandro carioca, e João do Valle, o imigrante nordestino, num show. Deu certo. Nascia o Opinião. Porém, tão logo viera o sucesso, chegava o declínio. O Zicartola era administrado mais como casa para amigos que como estabelecimento comercial. Em pouco tempo saiu de moda e, no fim, Nelson Cavaquinho cantava até de madrugada para mesas vazias. Sem dinheiro, o casal passou um tempo morando na casa do pai de Cartola ­ até que o estado lhe doou um terreno na Mangueira, onde Cartola, com um ajudante, construiu a própria casa.

O mundo é um moinho
Em 1974, Cartola está com 65 anos. Sai então seu primeiro LP pela gravadora Marcus Pereira. O compositor que não acreditava que alguém pudesse comprar sambas também quase não acreditou quando conseguiu realizar o maior sonho de sua vida. “Mesmo depois da gravação eu não acreditava. Precisei ter o disco na mão. Precisei ver ele sendo vendido, nas lojas, para acreditar. E me senti muito emocionado quando ouvi minha voz no disco. Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar”, disse.

Em 1977, Cartola faria outro, com composições inesquecíveis como “O Mundo É um Moinho” e “As rosas não falam”, cujo mote viera da pergunta de Zica, questionando por que nasciam tantas rosas em seu quintal: “Não sei, Zica. As rosas não falam...” Infelizmente, Cartola teve pouco tempo para curtir o sucesso e o reconhecimento do grande público. Fez diversos shows Brasil afora, teve canções como trilha sonora de telenovelas, era parado nas ruas do centro do Rio de Janeiro para dar autógrafos. O mestre descia o morro e fazia soar na cidade a sua melodia. Mas, com 72 anos, Cartola faleceu, vítima de um câncer fulminante. Cartola tirou do cotidiano a reserva escondida de poesia, que ressoa na força e na inventividade de seus versos. Haveria imagem mais certeira do que “o mundo é um moinho”?

Ou mais estranhamente visual do que “é verde o corpo das mulatas / quando vestem verde e rosa”? A tristeza do poeta, já dizia Nelson Cavaquinho, se chora através de um pandeiro ou de um tamborim, num pranto sem lenço que alegra a gente. E os sambas de Cartola assim vão ressoando pelos dias, noites e madrugadas, revelando que, nas frestas da vida, o que resta é poesia.
Malu Rangel

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