16 de jun. de 2008

O paradoxo do sexo


Alguns acontecimentos recentes permitem apontarmos um paradoxo no modo como se pensa a sexualidade hoje, no Brasil, ou pelo menos nas suas cidades maiores e mais cosmopolitas. Vejamos os dois lados contraditórios da moeda.

De um lado, têm se tornado freqüentes as declarações públicas de celebridades a respeito de sua sexualidade plenamente livre: gosto de homens, gosto de mulheres, sou bi, tri, penta, e o que mais tiver vontade de ser.

Ora, do ponto de vista ético, isso está perfeito: cada um agindo de acordo com seu desejo, desde que esse desejo não interfira na liberdade do de outras pessoas. O problema, entretanto, está nessa concepção de sexualidade e, simultaneamente, na concepção de liberdade de que se faz o elogio, vinculando uma coisa à outra.

Já faz mais de um século que Freud, em seu revolucionário "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", afirmou que entre a pulsão sexual e seu objeto não existe uma relação inata e com uma direção normal, mas sim, para usar a sua precisa metáfora, uma solda. Todo sujeito possui uma quantidade de energia sexual (libido), mas os objetos sexuais sobre os quais o sujeito investirá essa energia são independentes dela mesma. Trocando em miúdos, ninguém nasce heterossexual, homossexual, bissexual, multissexual; no princípio há apenas a libido.

Isso, entretanto, não significa que a pulsão sexual de cada sujeito poderá escolher, em sua vida adulta, qualquer objeto que sua vontade determinar. A "escolha" dos objetos vai sendo determinada pela singularidade da formação do sujeito, por meio de tramas complexas, identificações, alienações constitutivas, marcas, recalques etc. Está claro que escrevi "escolha" assim, entre aspas, porque o que está em jogo tem pouco ou nada de voluntário.

Não quero com isso incorrer num fatalismo da formação da sexualidade, que determinaria para todo sempre o destino da mesma em cada sujeito. Acredito que há acontecimentos na vida que podem mudar as regras do jogo, transformando o sujeito no cerne mesmo de suas fantasias, isto é, efetuando rupturas, abrindo novos caminhos, reconfigurando sua sexualidade.

Mas esses acontecimentos não são propriamente cotidianos, são raros; ou seja, a sexualidade não é um campo plenamente livre, no sentido de uma tabula rasa a se deixar escrever por escolhas conscientes, voluntárias. Mesmo um sujeito com uma sexualidade que permite uma ampla gama de escolhas de objetos é um sujeito marcado pela determinação de seu desejo.

Essa possibilidade é tão singular e marcada por uma história pessoal quanto qualquer outra. Um sujeito bissexual não me parece mais livre, sob essa perspectiva, do que um heterossexual homofóbico, por exemplo.

Mas o que é ainda mais questionável é a própria concepção de liberdade que está em jogo nessa declaração de irrestrita e incondicionada liberdade de escolha objetal. Ao associar a liberdade ao poder de escolher entre uma multiplicidade ilimitada de objetos sexuais, o que parece ocorrer é uma extensão do ditame do hiperconsumo à esfera da sexualidade.

No entanto todos sabemos que não somos necessariamente mais felizes por poder escolher um perfume numa loja que os tem aos milhares. Portanto fica a pergunta: haverá mesmo alguma vantagem existencial em se representar a sexualidade sob a lógica do free shop?

Liberdade sexual
Por outro lado, o episódio envolvendo o jogador Ronaldo e três travestis fez vir à tona o avesso daquela liberdade improvável: a homofobia, a hipocrisia, o machismo, o conservadorismo, em suma, o que há de pior nas representações sociais da sexualidade. Ronaldo está sendo condenado, digo, massacrado, porque pegou travestis para fazer um programa. Não nos confundamos: o massacre nada tem a ver com o possível consumo de drogas pelo jogador, com o fato de ele ter se envolvido com prostituição ou com as implicações éticas que esse ato traz à sua relação amorosa (ele está, ou estava, noivo).

As pessoas que o condenam parecem autorizar o consumo ilegal de drogas, o sexo pago e a "traição" masculina (não vou entrar no mérito desses três pontos), mas se sentem aviltadas por um ídolo ter ido parar num motel com travestis.

Pior, o próprio Ronaldo faz coro aos que o julgam. A entrevista que ele concedeu ao Fantástico, no dia 4 de maio, foi um dos momentos mais deploráveis da televisão brasileira. O jogador disse inúmeras vezes estar "profundamente envergonhado" por ter cometido um "erro gravíssimo" e assegurou todos quanto à sua heterossexualidade convicta. Argumentar que, em o fazendo, Ronaldo estava pensando na manutenção de seus contratos de publicidade apenas reforça o que se deve dizer com todas as letras: Ronaldo comportou-se como um covarde, um hipócrita, e subscreveu a pressão homofóbica. Se houve "erro gravíssimo" de Ronaldo, e houve, foi esse: o de admitir uma culpa que não lhe cabe e, com isso, contribuir para a falta de liberdade sexual de nossa sociedade.

Assim verificamos o paradoxo a que o título dessa coluna se refere. De um lado - entre os "artistas", as celebridades e os "descolados" - apresenta-se uma concepção duvidosa da sexualidade e uma concepção ainda mais duvidosa da liberdade; de outro, apresenta-se uma concepção normatizante da sexualidade, que condena qualquer suposto desvio e, assim, atenta contra a liberdade da sexualidade. Em meio a isso, que idéia mais vantajosa de liberdade podemos oferecer? Já será um grande passo se conseguirmos realizar essa, de tão simples aparência: que cada sujeito possa exercer a sexualidade de acordo com seu desejo, desde que não oprima o desejo do outro.
Francisco Bosco

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