No Rio de Janeiro, o hábito de tomar banho de mar sem fins terapêuticos surgiu nos anos 80 do século 19. Era necessária toda uma produção. Uma tenda era erguida na praia do Flamengo ou na de Botafogo — Copacabana era então considerado um lugar remoto.
Os homens usavam um maiô largo, no estilo aqualouco. As mulheres, trajes que não marcassem a silhueta — e eram orientadas a voltar para casa antes de o sol ficar forte, para evitar os olhares curiosos dos pescadores. No conto A Chave, publicado no livro Páginas Esquecidas: Uma Antologia Diferente de Contos Machadianos, organizado por Álvaro Martins, que chega às livrarias neste mês, Machado de Assis leva para a literatura esse hábito recém-incorporado ao cenário carioca.
No texto, o autor conversa com o leitor a respeito dos personagens. Quando o assunto é a moça que protagoniza a história, Machado usa uma linguagem direta. Quando é o pai dela, se vale do tom empolado que dominava as letras brasileiras na época do romantismo — e que, no tempo em que se passa o conto, soava tão antiquado quanto um maiô de aqualouco nos dias de hoje. A Chave é uma obra menor na produção do maior escritor brasileiro, mas no pequeno trecho descrito acima (veja texto na página 36) estão presentes dois dos temas pelos quais Machado se tornou conhecido: o hábito de dialogar com o leitor e a zombaria da fala empolada, em nome de um estilo mais direto — a linguagem que, mais tarde, se tornaria típica do realismo.
A leitura de Páginas Esquecidas provoca uma reflexão. Durante muito tempo, os manuais de literatura apresentavam o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas como um personagem dividido em dois — justamente antes e depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Antes estaria o Machado romântico, emulando um estilo do passado e, nele, forjando as características de uma prosa própria. Depois da revolução de Memórias Póstumas, teria surgido o Machado realista, com pleno domínio de seu ofício. Os estudos mais recentes sobre o escritor carioca mostram que a realidade é bem mais complexa. Machado experimenta, efetivamente, a evolução pela qual passa todo escritor em busca de um estilo.
Ao longo dessa trajetória, no entanto, ele retorna obsessivamente aos mesmos temas, que aparecem nas obras de juventude e nas de maturidade, nos textos despretensiosos como o conto A Chave e nas obras-primas como Dom Casmurro. Pode-se dizer, assim, que esses temas seriam suas "obsessões". Além do diálogo com o leitor e da sátira ao pedantismo, o ciúme, o dinheiro e o parasitismo da elite estariam entre elas.
A continuidade da obra e os temas recorrentes aparecem em vários estudos recentes sobre Machado. Um deles é Os Leitores de Machado de Assis, de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo, que trata justamente do diálogo constante do autor com o leitor e mostra as mudanças nessa relação ao longo do tempo. A postura didática e pedagógica do início é substituída por uma atitude mais provocativa, tentando causar desconforto e exigindo do leitor um esforço maior. Desafiando sistematicamente a expectativa de seus interlocutores, os narradores de Machado apontam para a necessidade de um novo tipo de literatura e para um novo tipo de leitor, menos acomodado.
Esse leitor existia? O recenseamento feito pelo imperador dom Pedro 2o, em 1872, desnudou a dramática situação do analfabetismo no Brasil. "Há só 30% neste país que podem ler; 70% jazem em profunda ignorância", escreveu Machado na crônica de 15 de agosto de 1876, quando os resultados do censo foram divulgados em jornais de norte a sul do país. Os leitores eram poucos, e os que existiam haviam sido moldados pelo gosto romântico. Machado queria formar um novo leitor, e com esse intuito se dirigia a ele. Outro tema presente na obra de Machado que só agora começa a ser mais estudado é o dinheiro. Ele aparece em seus livros de uma maneira original, como a quantificar, ironicamente, o valor de afetos e atos humanos.
No capítulo O Almocreve, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o protagonista fica preso no estribo de um jumento que dispara pela estrada e é salvo por um almocreve (rapaz que cuida dos animais). Agradecido, Brás Cubas resolve dar a ele três moedas de ouro. "(...) não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou." Refletindo melhor, resolve reduzir a recompensa a uma moeda de ouro. Ao final, o pobre-diabo acaba ganhando apenas um cruzado de prata (veja quadro na página 37). Em Marcela, capítulo do mesmo livro, o protagonista conta que, para cativar a moça, teve de gastar o dinheiro do pai e da mãe e, ao final, recorrer a agiotas. É aí que aparece a famosa frase — a quantificação do afeto: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis".
O economista e historiador Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, escreveu no ano passado um belíssimo livro sobre o assunto. Em A Economia em Machado de Assis: O Olhar Oblíquo do Acionista, Franco compila crônicas sobre economia e diz que, nelas, Machado adota a mesma ironia presente em seus principais contos e romances e o mesmo olhar tortuoso que caracterizava Capitu. Um tema recorrentemente estudado na obra de Machado é o parasitismo da elite. O crítico literário Roberto Schwarz alude ao assunto no artigo A Viravolta Machadiana (2004). Para Schwarz, em algum momento entre Iaiá Garcia (1878) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Machado teria concluído que o processo social brasileiro não transformaria escravos em cidadãos e que seria difícil superar as iniqüidades sociais.
Sobre a densidade psicológica de sua obra, Schwarz diz: "Machado é um autor que, em 1880, está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois".As relações entre Machado e outros autores constituem outro tema muito estudado atualmente. No recém-lançado Machado de Assis: O Romance com Pessoas, José Luiz Passos, professor da Universidade Berkeley, na Califórnia, diz que os romances de Machado não contam histórias. São, sobretudo, reflexões sobre o modo como as pessoas tomam suas decisões e sobre como, com freqüência, agem no sentido de camuflar aquilo que as motiva. Passos também enfatiza a presença constante de Shakespeare nos livros de Machado e afirma que o autor inglês funcionava como uma espécie de oráculo para responder às suas inquietações.
Entre os temas recorrentes na obra de Machado está, claro, o ciúme, fato, aliás, notado pela crítica norte-americana Helen Caldwell, a mesma que a certa altura questionou a interpretação até então assentada sobre a história de Bento Santiago e Capitu. Durante muito tempo, Dom Casmurro foi visto como um romance de adultério, a exemplo de Madame Bovary, O Primo Basílio e Ana Karenina. Helen foi a primeira a chamar a atenção para o fato de que o livro de Machado não era sobre o adultério, mas sobre o ciúme. Afinal, diferentemente dos livros realistas de Flaubert, Eça de Queirós e Tolstói, em Dom Casmurro não se sabe se o adultério ocorre de fato ou não. "Os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro", escreve o estudioso Silviano Santiago.
O tema é permanente na obra do chamado "Bruxo do Cosme Velho". Helen Caldwell observa que essa paixão vil tem papel central em nada menos do que sete dos nove romances escritos por Machado de Assis, marcando posição importante também em uma boa dezena de contos. O leitor que tiver a curiosidade de ler o romance de estréia de Machado, Ressurreição, facilmente perceberá as mórbidas semelhanças entre o Félix do romance de 1872 e o Bento Santiago do romance de 1899. Os dois protagonistas são atormentados pelo "monstro de olhos verdes", expressão usada por Shakespeare para se referir ao ciúme em Otelo. Ambos enxergam em tudo razões para duvidar de suas tão amadas quanto odiadas Lívia e Capitu e se dizem mais dispostos a acreditar no verossímil do que no verdadeiro.
Em Ressurreição, Félix, apesar de todos os argumentos em contrário, prefere se apegar a uma carta anônima para pôr em dúvida a fidelidade de Lívia. Já o casmurro Bento Santiago, em um gesto extremo, hesita entre suicidar-se com veneno, colocado numa xícara de café, ou dá-lo para Ezequiel, o filho que é a cara de seu amigo Escobar. No último instante, ele recua, mas diz a Ezequiel que não é seu pai.Houve tempo em que esse retorno freqüente às mesmas obsessões foi explicado com base em supostos distúrbios psíquicos do homem Joaquim Maria. A grande biógrafa e intérprete de Machado de Assis, Lúcia Miguel-Pereira, relacionava a insistência em retomar os mesmos temas com um comportamento que, na década de 1930, se acreditava típico daqueles que, como Machado, sofriam de epilepsia. "Essa recorrência em retomar os mesmos temas pode ser um traço de gliscróide", observou a biógrafa, usando um termo em voga na época para epilepsia.
Em seu livro Machado de Assis: Estudo Crítico e Biográfico, de 1939, ela também descobre um Machado tímido e perturbado. "Tinha uma atitude de tímido, desses tímidos que se tornam afetados para esconderem o embaraço. Certo de ter, ao lado de indiscutíveis superioridades, taras de que se vexava, e quisera esconder, Machado penetrou na celebridade como num salão cheio de gente pronta a criticar-lhe o traje modesto."Mais contemporaneamente, a recorrência dos temas vem sendo entendida como uma busca muito consciente e lúcida do escritor para encontrar formas capazes de condensar e expressar a complexidade da sua visão de mundo — daí tantos estudos recentes se debruçarem sobre suas obsessões.
No lugar do gênio, do autor que a certa altura irrompe como um milagre, as leituras das últimas décadas enfatizam a relação estreita e fecunda que Machado estabeleceu não só com a tradição literária, mas também consigo mesmo, ou melhor, com a obra da sua juventude. Chamando a atenção para a economia interna da obra, o crítico Silviano Santiago constatou que o processo criativo de Machado de Assis está profundamente baseado na reelaboração incessante de certas estruturas estabelecidas desde seus escritos iniciais. Um homem é a soma de suas obsessões, disse muito mais tarde o dramaturgo Nelson Rodrigues. Quando, além disso, ele tem o talento artístico de um Machado de Assis, o resultado é uma soma elevadíssima de obras-primas.
Ariel Kostman
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