26 de set. de 2008

Por que somos seduzidos pelas celebridades?

A obsessão pela vida íntima de estrelas pode refletir o sentimento de pertencer a uma coletividade. A expansão dos meios de comunicação aumentou as formas de se tornar conhecido, trazendo novos estatutos
Elas podem ser controversas, bregas, admiradas como heroínas ou avessas à aparição pública. As celebridades, hoje em dia, compõem uma porção significativa do universo midiático.
As narrativas sobre as estrelas se multiplicam ao longo do dia na televisão, em jornais populares, em revistas especializadas e na internet. À primeira vista, o consumo desse tipo de material parece sem importância, uma leitura rápida sobre assuntos frívolos e de nenhum interesse público. No entanto, essa crescente presença midiática indica que, longe de banal, a relação entre celebridades e seus públicos faz parte da vivência da cultura contemporânea. Ao sermos seduzidos por elas, somos convocados por um conjunto de valores, papéis e lugares que ultrapassam a atuação profissional das estrelas.
As narrativas propõem ao público formatos de papéis sociais. A interlocução dessas narrativas com as posturas dos sujeitos se movimenta para além de fatos específicos, alcançando experiências compartilhadas socialmente. Edgar Morin, referência para os estudos sobre a fama, associa a magia do universo das celebridades à mitologia e aos deuses do Olimpo. Em breve panorama histórico do início do cinema, ele mostra que, até os anos 1930, as estrelas eram inacessíveis. Depois de 1930, elas se aproximam da vida ordinária, estimulando o contato com o público. Atores e atrizes, por exemplo, passam a ser mais familiares e mais próximos de seus admiradores. Essa humanização das estrelas do cinema não extingue seu caráter mágico; elas se transformam em mediadoras entre um mundo fantasioso e a vida cotidiana.
Morin fala em personagens “totais” e “multidimensionais”, ou seja, além de deusas, as celebridades são pessoas comuns. O pensador ressalta que os olimpianos são modelos de conduta, elaborando sua vida privada de maneira ordinária, assumindo e propondo ao público a multiplicidade de papéis. A aproximação torna mais complexa essa relação.
Narrativas e imagens midiáticas atuam na construção das celebridades, que propõem ao sujeito comum tipos de posicionamentos construídos por afetações mútuas, geradas entre as duas esferas. Tanto as narrativas sobre as celebridades agenciam tipos de posicionamentos como a própria dinâmica interativa dos sujeitos comuns possibilita outras articulações. Não está mais em jogo apenas a divindade das estrelas, mas os modelos – a serem reproduzidos – para a atuação dos papéis comuns, dos sujeitos ordinários.
O lugar de destaque e a fala autorizada das celebridades, que geralmente recebe o crédito dos leitores, são elaborados por um desempenho publicizado feito de acordo com o público e com a arena midiática.
A dinâmica da palavra da rua se dá em conjunto com o burburinho da mídia e com suas próprias leituras. Não se trata, portanto, de um único sujeito ou de grupos específicos lendo notícias sobre as celebridades, mas de modalidades de uma ação coletiva que congrega e orienta tipos de atuação prática dos sujeitos comuns na vida social.
O pesquisador americano Leo Braudy, em The frenzy of renown (ainda sem tradução para o português), faz uma das reflexões mais exaustivas sobre a consolidação e o desenvolvimento da idéia de fama ao longo da história ocidental. Passa por Alexandre, o Grande, Júlio César, Jesus Cristo, Dante, Abraão Lincoln e Marilyn Monroe, buscando indicar as configurações do tema em cada época.
O autor assinala a mudança do fenômeno da fama nos últimos 100 anos: a expansão dos meios de comunicação aumentou as formas de se tornar conhecido, trazendo novos estatutos.
Assim como Edgar Morin, Braudy nota a expressiva alteração na configuração das celebridades a partir da consolidação dos meios de comunicação de massa. Soma-se à aproximação das estrelas com seus públicos a questão do poder.
Ser uma delas significa ocupar lugar privilegiado que possibilita, de maneira exponencial na cultura contemporânea, inspirar e influenciar, autorizar e desautorizar modelos de papéis sociais. Um trabalho importante publicado no Brasil veio dos professores Micael Herschmann e Carlos Messeder Pereira, Mídia, memória e celebridades.
Os autores observam no boom das narrativas biográficas novas maneiras para a ordenação dos sentidos para os modos de viver dos atores sociais. As narrativas sobre a trajetória da vida íntima de atores, atrizes e “personalidades” engendrariam o sentimento de pertencer a uma coletividade. Nesse contexto, a questão não é a crítica ao espetáculo construído por esses produtos, mas, sim, às referências disponibilizadas para a construção das identidades dos sujeitos comuns e da constituição de laços coletivos. A redução do fenômeno da fama na vida social contemporânea ao espetáculo de imagens não permite a compreensão do porquê somos seduzidos por elas.
Sem perder de vista as relações de poder, a fala autorizada e a proliferação dos famosos na mídia, é mais proveitoso discutir como se configura a publicização das celebridades e as leituras do público.
Somos seduzidos por celebridades específicas, em performances situadas que, ao longo do processo comunicativo, podem se alterar, propor diferentes papéis ou engendrar novos sentidos. A trajetória de Carmen Miranda, por exemplo, analisada por Tânia Garcia em canções, filmes e revistas, é marcada pela variedade de eventos de diferentes significados.
Essa ambigüidade que acompanha a figura de Carmen Miranda é refletida pela própria construção da identidade brasileira entre os anos 1930 e 1940, quando diferentes segmentos sociais buscavam forjar o símbolo nacional de um Brasil mítico e imaginado.
Os papéis públicos desempenhados pela cantora e as contradições que envolveram a construção da identidade nacional estabelecem interfaces e paralelos. Outro estudo interessante é o clássico A noite da madrinha, de Sérgio Miceli, que propunha a análise do sucesso dos programas de televisão do início dos anos 1970 a partir de Hebe Camargo.
A atuação da apresentadora e aspectos relevantes da elaboração de seus papéis revelaram que ela se comportaria como “madrinha”, espécie de mãe postiça. Nesse sentido, construiria a imagem de mulher muito semelhante e próxima à cidadã comum, valendo-se de diferentes tipologias do feminino: mãe, filha, esposa, dona-de-casa.
Em síntese, madrinha. Esses dois estudos confirmam que é inevitável encarar a performance efetiva e situada das celebridades. A redução do fenômeno da fama ao espetáculo de suas imagens não explica a complexa relação entre as celebridades, seus públicos e a vida social.
Carmen Miranda e Hebe Camargo são vistas a partir do papel que propõem, dos agenciamentos que suas atuações requerem do público e de reflexos culturais mais amplos. Mais que propor sentimentos comuns, as celebridades exigem do público posicionamentos ativos em experiências concretas.
O processo comunicativo entre as duas partes deve ser tomado, assim, pelo viés do pragmatismo. Ao ser tocado por essas imagens, próximas da vida cotidiana de qualquer um e motivadas pelas relações de poder, o público é levado pelo processo de contextualização, que promove sentidos e subleva regras de usos e comportamentos. Dessa maneira, os sujeitos comuns atuam de modo coletivo no curso das experiências, em um agir e um padecer conjunto. As narrativas sobre as celebridades nas revistas de fofoca e nos programas de TV não estão descoladas das falas de pessoas comuns.
Essas ações, tanto da mídia como da rua, são caracterizadas por modalidades específicas que impulsionam a configuração das experiências entre sujeitos e celebridades.
Lígia Campos de Cerqueira Lana
ligialana@gmail.com
Doutoranda em Comunicação pela UFMG, pesquisadora do GRIS (www.fafich.ufmg.br/gris)
Caderno Pensar, jornal Estado de Minas, p.3

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