17 de out. de 2008

Lições de Amor

Vamos repetir: nenhum animal pode ser comparado ao homem em matéria de versatilidade motora; por isso - de novo - somos livres e eles não!
Considere, enfim, que qualquer um de nós pode fazer, de leve, milhares de movimentos; é só olhar para alguém que esteja fazendo e daí a pouco você consegue imitá-lo - ainda que precariamente.
Está vendo como e por que você é muito superior a um tigre em matéria de movimentos? Você pode imitar todos os outros animais, inclusive os tigres, e assim sentir como eles são.
E na História, podemos ver alguma coisa dessa criatividade ilimitada? É evidente que sim! Na verdade, um exame mesmo ligeiro dessa História nos mostra claramente nossa criatividade sem limites.
Para começar, inventamos mais de 2 mil línguas! Depois, se você folhear um livro de História dos de hoje, grandes e cheios de lindíssimas ilustrações dos muitos aspectos de várias civilizações; se você conseguir superar a sensação do "isso é velho, já sei o que é"; se você ainda tem um resto que seja da chama da curiosidade e da sensação de milagres, então ficará espantado e encantado com a variedade infinita de trajes, arquitetura, costumes, conhecimentos, organização política, religião, técnicas e armas de guerra, pintura, música, dança, teatro...
Se você fizer isso e assim, poderá ver no ato, como se fosse no cinema, a infinita variedade de realizações humanas. E então se tornará mais do que evidente nossa criatividade diante de toda e qualquer outra espécie animal.
Também se faz clara esta noção: cada sociedade ou cultura aproveitou apenas parte de nossas aptidões, de regra parte pequena; uma vez constituída a cultura - como sistema autoproduzido e auto-sustentado -, ela organiza esse pouco em formas rígidas e persistentes, duradouras. Os inovadores se fazem, tempos depois, os carcereiros dos seus descendentes!
Por que dizemos "pequena parte"?
Como se pode medir coisas tão complexas, inclusive indeterminadas e desconhecidas? Dizemos parte pequena comparando as características de cada cultura com o somatório de aptidões criadas, exigidas ou cultivadas por todas as sociedades conhecidas - justamente essa inundação de variedades que estamos enumerando.
Não é impressionante essa relação entre variação ilimitada de movimentos e variação ilimitada de criação? Guarde o fato. O homem ocidental insiste em ignorar seu corpo, sua animalidade e sobretudo sua motricidade (sua "carne"!) mais do que complexa, e com isso vive perdido na confusão das palavras.
Ele não percebe que nasceu para agir/transformar o mundo e a si mesmo, e não para conhecer "desinteressadamente" o universo ou para descobrir e formular a Verdade Última e Única...
O mesmo acontece nas brigas de casal, nas quais quase todos acreditam que os fatos, as razões, os argumentos, as justificativas e acusações são importantes - e quase ninguém se dá conta dos dois bichos que se agridem por estar presos na mesma jaula. Também por isso as brigas de casal são intermináveis, machucam demais e pouco resolvem. Elas também se repetem, se repetem - como a vida do carrapato! Mas, retomando o argumento, a natureza não gosta muito de variações - nem as mamães, nem os professores, nem as regras sociais.
Na verdade, ninguém aprecia muito "novidades" em matéria de comportamento quando se trata de pessoas próximas - muito menos se elas aparecerem nos meus filhos ou em minha mulher! Conservador você, hein?
Dá para começar a perceber as ligações entre essa filosofia do movimento, nossa História e a briga de casal? Por isso educar consiste em dizer não milhares de vezes, lembra-se? É para restringir os movimentos da criança até que ela caiba em nossos moldes restritos e restritivos, para fazer dela uma pessoa "normal", tão presa, medrosa e frustrada quanto quase todos nós, os "adultos", "maduros" e "normais".
No entanto, ao longo de toda a História, os adultos de cada época sempre se consideraram o supra-sumo da perfeição, e a essa "luz" (!) a crianças e os outros povos sempre foram tidos como infantis, exóticos, engraçados, terríveis ou ridículos. Os seres vivos dispõem de gigantescas antenas sensoriais, capazes de captar uma enorme variedade de energias do universo, de sentir mil e uma sensações - calor, frio, maciez, peso, força, aspereza, dor, prazer, contato, cores, formas, gostos, cheiros e muito mais. Mas nossos esquemas motores, pedagogicamente limitados e limitantes, só nos permitem perceber, reconhecer, aceitar e responder a um número mínimo dessas sensações. Perceber "tudo" - como nos aconselha Teilhard de Chardin - apenas geraria muita confusão e comprometeria a sobrevivência.
Pelo menos assim se diz, e talvez esse seja um dos mais enraizados preconceitos de toda a humanidade! Segurança acima de tudo! A qualquer preço! Acima de tudo e a qualquer preço - esse o mal, porque com isso se vão o amor e toda a possibilidade de transformação real dos costumes pessoais e sociais, de transformação de uma humanidade implacavelmente predadora de si mesma em uma humanidade não apenas orgulhosa mas - enfim! - amorosa de si mesma.
Aliás, você sabe, basta alguém perceber um pouco mais do que o carrapato e os outros começam a estranhar. Quem percebeu quase sempre aproveita o fato e explora a cegueira dos próximos se antes não tiver sido queimado na fogueira! Em terra de cegos quem tem um olho é rei - ou marginal! Por isso todos repetem os mesmos preconceitos (uma enorme simplificação intelectual), assumem ou são assumidos pelos papéis sociais (de mãe, de filho, de irmão, de professor e mais) e continuam a acreditar que são muito originais quando estão repetindo, repetindo, repetindo... nossas sagradas tradições.
Jeans - originalíssimos no mundo todo! E o famoso "sistemão", autoritário de alto a baixo, continua aí, firme! O não menos famoso Ego se apropria de tudo o que acontece, como se estivesse no comando, quando, quase sempre, está sendo movido pelos preconceitos e papéis sociais - e talvez não seja nada além disso.
O ego (ou o eu) talvez não seja mais do que o somatório de minhas repetições verbais e de meus comportamentos socialmente condicionados - na verdade, de tudo o que em mim não sou eu... As pessoas vivem dizendo e fazendo sempre as mesmas coisas, quase sempre muito prevenidas - ou assustadas - diante de qualquer ocorrência diferente do usual. De outra parte, não diga para ninguém que ele é chato porque repete sempre as mesmas histórias. Ele - ou ela - vai ficar muito bravo!
Será que a pessoa está tomada pela ofensa a seu eu autêntico, como acredita, ou estará tomada pela ofensa a sua aliança implícita com a coletividade da qual faz parte? Nossas sagradas tradições são exatamente isso: repetições de comportamentos impermeáveis aos fatos, à persuasão, à crítica, à contradição. Elas são a própria estrutura da sociedade e da personalidade. Mestre Freud já deixou bem claro: a maior parte do que fazemos, nós o fazemos automaticamente, e o comportamento dos adultos é bem pouco criativo e por demais repetitivo. É a famosa
Transferência. Quem ainda não ouviu falar dela? Transferência - desdobrando - é a repetição na certa inconsciente de comportamentos e opiniões desenvolvidos e fixados nos primeiros anos da vida. A natureza, como a maior parte das pessoas, prefere de longe a segurança à felicidade, a repetição à variação, a prisão à liberdade - mesmo quando vivemos dizendo o contrário. Hoje, um dos preconceitos mais espalhados entre as pessoas, filho da propaganda e da fúria de "novidades", é este: importante é a cabeça feita, a coragem de transgredir, o desejo de aventura, a adrenalina, o protesto e a rebeldia contra o estabelecido, contra os velhos preconceitos... A ilusão é reforçada pelas novidades do noticiário e dos produtos de consumo - a cada ano novos "aperfeiçoamentos", dando aos incautos a mais perfeita ilusão de liberdade - de variação ilimitada.
O que Freud não parece ter percebido - nem os cientistas - é que a inteligência (e a ciência) atua exatamente do mesmo modo: buscando semelhanças. Classicamente, um conceito (ou uma idéia) é uma palavra que caracteriza elementos comuns, iguais ou semelhantes, presentes em vários objetos ou situações. A idéia de "branco" aplica-se ao leite, a uma parede caiada, a uma raça humana, à neve, ao giz, ao cálcio, à garça, ao urso polar e, depois, à inocência, à pureza e mais. Mas não se esqueça do essencial: "o branco" não existe.
Se você conseguir abandonar o pensamento conceitual - sempre genérico e abstrato - mergulhará em um mar de incertezas. Por que essa forma de inteligência se desenvolveu nos seres humanos afinal? A fim de encontrar alguma espécie de ordem quando cada momento é diferente do outro, e outro o sujeito a vivê-lo. Variação demais. Caos. Porque só o que se repete pode ser previsto e, se necessário, eventualmente controlado - claro, não é? Só com essa ilusão podemos dormir em paz, sentir segurança. Só com ela podemos... pensar!
A maioria prefere a regularidade, a pobreza de vida, a limitação da personalidade, o tédio e as doenças psicossomáticas a fim de não correr os riscos de fazer, sentir ou pensar de modo diferente do pensamento denominado "racional" ou "normal" - o pensamento da maioria que não pensa.
Ou, mais clara e modestamente, diferente do que a maioria vive falando (se fazem o que dizem, é bem outra coisa. Fidelidade conjugal, por exemplo). Por que as doenças psicossomáticas nesse contexto? Porque a vida é movimento, e se você a torna circular e "sempre a mesma" já está "não vivendo"; logo, está morrendo. O que parece uma analogia feliz na verdade é um processo concreto: quanto mais baixo o nível de interesse pela vida, pior o funcionamento do sistema imunológico, maior a predisposição a doenças. J. A. Gaiarsa
Picture by Leila Proença

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