No Brasil cordial, corruptos e motoristas embriagados acham uma "injustiça" eles próprios estarem sob o poder da lei
Nos Estados Unidos, se o gato do vizinho sobe em sua árvore, você "call the police". Aqui, você dá um tiro nele (gato) que todo mundo entenderá. Brasileiro não gosta de viver “daunbailó”
Esta comparação rasa parece ganhar profundidade sociológica quando vemos os advogados de Salvatore Cacciola entrarem com pedido de habeas corpus para que o seu cliente tenha “respeitados os direitos humanos referentes à dignidade e à integridade (como) em qualquer país civilizado”, isto é, para que não seja algemado, transportado em camburão ou fotografado. Exigiam também prisão especial, visto que o réu possuía curso superior.
Qualquer filme policial norte-americano mostrará o suspeito sendo algemado com as mãos para trás, enquanto o policial repete a catilinária sobre os seus direitos. A partir desse momento ele está "down by law".
As algemas nada mais são do que o símbolo dessa submissão ao poder do Estado, nada tendo a ver com a culpa, possibilidade de fuga ou periculosidade do cidadão, como aqui juízes e advogados parecem crer, ao cogitarem sobre o habeas corpus contra esta expressão comezinha do poder.
Muitos anos atrás, na ficha corrida de Naji Nahas constou uma prisão por um cheque sem fundo de valor elevadíssimo. A operação era conhecida no mercado financeiro como “alavancagem”, mas os bancos não honraram o cheque, e a operação virou “crime”. Da prisão, o próprio Nahas reconhecia o erro e perguntava, sem obter resposta: “Por que não soltam Naji Nahas para ele ganhar dinheiro e pagar o que deve?”.
Na frase de Nahas, tudo aparece como negociável no mundo das finanças. Coisa com que concordaria Daniel Dantas, estendendo-a à política. Os negócios são um fluxo, e nada distorce mais o seu sentido do que essas gravações cujos trechos são publicados e que, como instantâneos fotográficos, expõem os protagonistas, em poses inconvenientes, à incompreensão do sentido geral dos processos que ainda não chegaram ao final.
No fim, tudo dará certo, ficará perfeitamente legal, como atestam os casos rumorosos das privatizações. A diretriz do Estado prevaleceu, ainda que no seu curso muitos tenham enriquecido da noite para o dia. Mas um patrimônio público que vai “para o mercado” tem mesmo que cair em mãos de alguém “competitivo”, não é mesmo? Veja-se, internacionalmente, a megaprodução de milionários russos, chineses etc.
Numa sociedade cordial, tudo é objeto de transação, inclusive a lei. Daí essa idéia de que o “daunbailó” é uma injustiça, uma exposição pública indevida, visto que as transações ainda não chegaram a termo, embora aqueles que vêem o Estado como um Robin Hood queiram, sim, os ricos no daunbailó visível à luz do dia. Ambas as posturas se aferram a uma concepção arcaica do Estado.
A política como “murmuração”, como algo que se faz nos corredores do poder, celebrando acordos que virão à luz sob a forma de normas impessoais (vide caso da fusão Oi-Telemar/Brasil Telecom), é apenas uma faceta dessa sociedade que quer um Estado cordial. Outra pode ser vista nas ruas, atingindo em cheio a classe média motorizada, pega em flagrante alcoolizada ao volante.
Todo mundo é contra a violência no trânsito, inclusive porque teme ser vítima dela. E sabe que boa parte da violência se origina no consumo excessivo do álcool. E sabe também que, pego em flagrante, pode murmurar argumentos irresistíveis ao pé do ouvido do guarda, escapando ao daunbailó.
Por isso, como Cacciola, quer um habeas corpus contra o bafômetro. Nada de ser obrigado a “produzir provas” contra si próprio. Ora, o que está ameaçado não é o direito do indivíduo e, sim, a tolerância, o Estado cordial que viciou a cidadania na transação.
Assim como Daniel Dantas se tornou o homem mais influente da República graças ao abrigo que o Estado ofereceu aos seus negócios, o que torna inconveniente expô-lo daunbailó, aquele cidadão que adquiriu recentemente o hábito civilizado de consumir umas tantas taças de vinho não quer ser subsumido nas estatísticas que mostram 6,6% da população como dependente de álcool.
Dependentes ou não, pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psiscoterápicas (Cebrid) mostra que 40% dos homens que bebem tomam cinco doses ou mais de bebida, sendo que a maioria das mulheres toma duas doses, e só 17% estão na faixa de consumo masculina.
A grande maioria dos internados em instituições psiquiátricas é composta por dependentes de álcool, e o cálculo do consumo per capita brasileiro é historicamente alto, independentemente de resultar em internação ou tratamento.
Todas as estatísticas são discutíveis, inclusive as da OMC, que estima em 280 milhões o número de alcoólatras no mundo (10% da população), sendo que anualmente morrem em conseqüência do alcoolismo 18 milhões de dependentes.
O que é difícil de contestar é que, tempos atrás, quando se proibiu a venda de bebidas alcoólicas após determinada hora, os BOs (boletins de ocorrência) nas delegacias da cidade caíram 40%, principalmente em brigas conjugais e de vizinhos, além da significativa baixa de acidentes automobilísticos e atendimentos nos hospitais da cidade. Agora, com a “lei seca”, o movimento nos ambulatórios hospitalares repetiu a queda vertiginosa.
É compreensível que os donos de bares façam lobbies contra a lei, que atinge frontalmente os seus negócios, mas o seu verdadeiro espaço de manobra encontra-se aninhado na cultura transacional da classe média urbana. O “bafo” tornou-se uma medida objetiva, dificultando qualquer transação com o guarda. Daí o clamor por se “relaxar” a quantidade de miligramas de álcool no sangue.
A discussão técnica sobre níveis admissíveis de álcool é a cortina de fumaça. Na verdade, o que está em causa é se o Estado deve ou não ter poder de imposição geral, independente das exceções.
A ideologia neoliberal se forma e se desenvolve justamente discutindo as diferenças entre os aspectos gerais da vida social e a limitação à liberdade dos excepcionais, sejam eles banqueiros algemados ou afiliados a clubes de degustação de vinhos, pacatamente indo para casa após uma sessão de prazeres inocentes. Em público, o mal-estar neoliberal se traduz na máxima: “É necessário discutir mais detalhadamente com a sociedade”.
Todos sabemos que a “discussão com a sociedade” resulta em atenuação da norma, mas o seu rigor atual a torna ilegítima? Certamente não, portanto a discussão extra-parlamentar não é obrigatória quando a norma é definida de modo republicano.
A novidade é que, assim como há os saudosos do Estado cordial, transacional, a classe média também abriga boa parcela da opinião pública que prega a “tolerância zero”: cadeia para corruptos, banqueiros aninhados no poder, bêbados e equilibristas de todo tipo. A “tolerância zero” é a intolerância com a transação da norma, uma espécie de conforto que surge quando todos estão claramente, sem exceção, daunbailó.
Ladrões são algemados, assassinos são algemados, por que banqueiros e potenciais assassinos no trânsito não seriam limitados em seus antigos “direitos”? O espetáculo da requisição dos habeas corpus de bebedores inocentes e banqueiros nem tanto expressa a luta do velho contra o novo, da acomodação contra a “tolerância zero”.
A ação aparentemente errática do Estado, afetando a vida do cidadão, acaba conformando um sentido. Intervenções na paisagem urbana (“cidade limpa”), no trânsito (proibição de circulação de automóveis e, agora, de caminhões), na violência urbana (proibição de conduzir tendo consumido álcool, busca de regulamentação dos motoqueiros), na economia informal (combate aos camelôs, aos crimes financeiros), controle da poluição, são indícios suficientes de que o modo de vida urbano atingiu um nível de caos que exige normas mais rígidas e impositivas.
Talvez o que se desenha não seja a sociedade dos sonhos, mas impõe-se como preço da modernidade livre e desenfreada nas suas conseqüências. O maior incômodo de tudo isso talvez derive não da ação do Estado, mas da auto-demissão da sociedade em discutir, afinal, onde quer chegar. No passado, isso se chamava utopia, palavra que hoje arrepia os homens de espírito prático de todas as colorações políticas.
Carlos Alberto Dória
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