16 de jan. de 2009

Morte: experiência de vida

Nada queremos saber sobre a morte, ela é o inominável e o inapreensível da experiência humana. É um tema que sempre suscita embaraços e desconfortos
No inconsciente o homem se crê imortal. A morte é a etapa final do transcurso do tempo de uma vida. E o inconsciente não conhece o tempo nem a morte.
Mas Freud nos adverte ao final de seu texto Reflexões para os tempos de guerra e morte ( 1915 vol XIV), “se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.” A morte está indissociada da vida e “a vida empobrece, perde em interesse, quando a mais alta aposta no jogo da vida, a própria vida, não pode ser arriscada” continua nos lembrando Freud em seu texto.
Em seu livro A negação da morte, Ernest Becker escreveu “a idéia de morte, o temor a ela, persegue o homem como nenhuma outra coisa: ela é um dos maiores incentivos da atividade humana”. Impulsionado pelo desejo de evitar a fatalidade da morte, de vencê-la, de dar maior significado para sua vida o homem projeta e realiza inúmeras coisas que o ultrapassam. Os feitos do homem são a sua condição de imortalidade, é pela sua obra que o homem supera a realidade da morte.
O homem vive sob o jugo de um paradoxo: possui uma identidade simbólica que o destaca nitidamente na natureza. Ele tem consciência de sua existência e de sua finitude. Está fora da natureza e ao mesmo tempo irremediavelmente dentro dela. Coloca a cabeça nas estrelas e, contudo está alojado em um corpo que arqueja para respirar, que lhe é estranho de muitas maneiras: que doe, sangra, definha e morre, que traz a morte como parte de sua biologia.
A ciência nos ensina que o temor da morte é uma expressão do instinto de autopreservação, que funciona como um impulso constante para conservar a vida e sobrepujar os perigos que a ameaçam. O medo da morte tem de estar presente por trás do funcionamento normal, com o fim do organismo proteger a própria existência. Por outro lado, esse medo tem de ser adequadamente suprimido para permitir que se viva com um pouco de conforto. Percebemos assim o paradoxo: o onipresente medo da morte bem como o esquecimento desse temor na vida consciente.
Seguindo Freud em seu dito “se queres suportar a vida, prepara-te para a morte”, somos orientados a nos desapegarmos das coisas, a fazermos o trabalho do luto. Nossa vida toda é um trabalho de luto; luto da infância, dos pais idealizados, das etapas vividas, de todas as perdas que o transcurso da existência nos impõe e por fim a preparação para o último luto, da própria vida. Mas o medo da morte não está posto para todos de igual modo. Sujeitos que tiveram más experiências primitivas ficam mais morbidamente fixados na angústia da morte. Uma criança que teve uma infância favorável desenvolve mecanismos mais adequados para lidar com dificuldades, perdas e consequentemente com a morte.
O irônico quanto à negação da morte, é que, o sujeito visando evitar a morte, o faz matando tanto de si mesmo e uma faixa tão grande de seu mundo de ação que ele na verdade se isola e diminui-se, ficando como se já estivesse morto. Inúmeros poetas nos contam que a pior morte é a que se vive em vida. A morte na cultura Freud escreveu em seu artigo Além do princípio do prazer (1920) que a noção de morte natural é inteiramente estranha às culturas primitivas; elas atribuíam a morte à influência de um inimigo ou espírito mal. Na realidade todos os homens opõem-se à idéia de que a vida pulsional sirva para ocasionar a morte; que ela trabalhe para garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho em direção a uma morte mais natural possível.
Em “Reflexões para o tempo de guerra e morte” ele escreve que apesar de parecer óbvio ser a morte o resultado da vida e que cada um deve à natureza uma morte, natural, inegável e inevitável, isso não ocorre. Ao contrário, a tendência é de negá-la, silenciá-la, colocá-la de lado, eliminando-a da vida.
A tendência é pensar a morte como fortuita, decorrente de acidente, doença, idade avançada. Nós só conseguimos lidar com a morte natural transportando-a para a velhice. E a conjunção de morte e velhice desloca a morte para um futuro sempre incerto e imaginariamente sempre longe e no qual não nos vemos. E dessa forma conjugando morte e velhice se imputa a essa última todo o horror com conseqüente medo e negação.
Morte e luto, fracasso e perda, fazem parte da estrutura da vida e, portanto acompanham o sujeito. Por paradoxal que seja, porque há morte é que sabemos da vida, a vida transita pelo desamparo e é diante da eminência da morte que a ela recupera seu pleno sentido.
Estamos sempre associando velhice e morte. É inegável que à medida que a velhice chega, o sujeito passa por inúmeras perdas. Para muitos não é fácil reinventar a vida após certa idade quando vários laços foram desfeitos. Mas a saída é o trabalho do luto. Luto que cada um deve fazer inclusive de si mesmo, além do luto pela perda dos objetos. Alguns tentam resolver com ódio, com lamentação e queixa. Ainda que a lamentação faça parte do luto, é preciso concluí-lo. Luto e vida andam juntos, não é possível andar pela vida sem passar pelo luto e a fuga dele acaba impedindo o movimento da vida. Mesmo que o sofrimento seja inevitável a esse processo, suportar que algo falte permite ao sujeito construir respostas mais inventivas em torno dessa falta, extraindo dela um saber sobre si mesmo.
Suportar que algo falte, é a grande questão diante do luto, da morte. Os rituais foram elaborados para auxiliar o homem nesse processo.
Maud Mannoni cita em seu livro O nomeável e o inominável uma vasta pesquisa realizada por Philippe Áries em O homem diante da morte que explica as mudanças de atitude da sociedade diante desse acontecimento. Ele escreve que na Idade Média a morte dava como que um aviso prévio e as pessoas eram simplesmente observadores dos sinais sobre si mesmas. Quando chegava a hora, morriam exatamente como era preciso. Não havia recursos para fazer frente à morte. No século XVIII e até mesmo no início do século XIX, morria-se em público, a casa era aberta a todos. Era costume que os amigos, vizinhos, padres viessem assistir o moribundo.
O homem sabia que ia morrer e preparava-se para isso. Os testamentos com freqüência eram testamentos místicos, onde o homem dizia um trajeto de uma vida e o que a morte lhe remetia. Uma tradição se transmitia assim, da vida além da morte, para uma geração seguinte. Os túmulos tinham como função impor a recordação de uma vida à posteridade.
Na contemporaneidade os ritos da morte são simplificados e os avanços da ciência empurram a morte cada vez mais para longe da existência do homem. A morte não é mais vista como fazendo parte da vida e seu insondável mistério banalizado. A ciência resiste à morte tanto quanto o profissional se sente impotente diante dela na relação com o paciente. O doente terminal Como lidar com doente para quem a ciência já não tem mais recurso? O paciente marcado por uma doença incurável ou em fase terminal, convoca o profissional da área de saúde e também seus familiares a se portar diante da morte. Como lidar com essa experiência, como ajudar essa pessoa, o que fazer nesse momento em que parece que não há mais nada que possa ser feito? Ainda que a existência autônoma esteja comprometida, até mesmo quanto à dignidade da existência, há ali um sujeito. O cuidado, a realidade que lhe é propiciada, faz surgir nele uma dimensão tranqüilizadora ou de desamparo.
Nessa relação todos os “pequenos nadas” que dão à vida seu sal constituem uma dimensão essencial: um olhar, uma palavra amiga, um gesto de carinho, uma pequena atenção. O que mantém vivo, “com vida”, uma pessoa nessas condições é a afeição, a ternura, o aconchego no qual possa haver a presença de alguém que o reconheça, que o escute, que o acolha. O cuidar vai além do atendimento às necessidades básicas do sujeito, é um exercício de respeito, de amor e compaixão. Tão mais importante quando privilegia os momentos em que esse doente pode se expressar como sujeito. Ele sabe quando lhe faltam com respeito, quando insistem em procedimentos que ele recusa. Os procedimentos que podem ajudá-lo devem ser tentados, mas que se discuta com ele sua posição e escolha.
É muito penoso para o doente que está ficando cada vez mais dependente ter a impressão que está perdendo seu estatuto de sujeito. Até o final da vida persiste sua sensibilidade aos efeitos de uma fala. E diante do inevitável o maior consolo talvez seja poder fazer um balanço positivo da vida que se está prestes a deixar.
Retornamos assim ao ponto de onde partimos: é a maneira como vivemos que nos prepara para morrer. Ou, como transmitiu Sêneca: "Deve-se aprender a viver por toda a vida e. por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer".
Helena Maria Galvão Albino,
Psicanalista com Especialização pela UFMG
Membro do fórum do Campo Lacaniano – FCL-BH

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto. Transmita à autora meus parabéns. Vou usá-lo este semestre em atividade academica com meus alunos. Claudia Lins Prado

Anônimo disse...

Apesar de ser um tema/tabu gostei muito. Continue nos prestigiando com estes ótimos textos. Aprecio bastante sua capacidade de escrever com extrema leveza/clareza e sem abdicar da profundidade. Quando sair seu livro faremos uma ampla divulgação.

Eduardo Cadore disse...

Olá.
Parabéns pelo ótimo texto. Com certeza uma escrita leve e instigante. Coordeno um grupo de estudos sobre a morte e o morrer, na Universidade onde estudo, e irei mandar por email este link.
Durante alguns meses nos encontramos semanalmente, lendo e discutindo sobre a morte e seus temas correlatos, como suicídio e o luto. Seu texto vem muito bem ao encontro do que conversamos e é ótimo para um fechamento ou abertura de um grupo como este que cito.
Parabéns também por escrever sobre o tema.

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