15 de fev. de 2009

Livro disseca o comportamento corrompido do regime Bush no Iraque

Poucas coisas marcaram mais o período presidencial de George W. Bush do que as fotografias tiradas por militares americanos que atuavam como carcereiros na prisão de Abu Ghraib, nas cercanias de Bagdá.
Sustentada em um discurso firmemente calcado na guerra moralmente justificável pela “libertação” do povo iraquiano, a invasão unilateral do país árabe foi objeto de repúdio mundial. Assim que as imagens de presos torturados e submetidos a atos de sadismo e humilhação pelos seus supostos libertadores foi revelada pela revista The New Yorker, o que era rejeição virou nojo. E um carimbo indelével para toda a campanha iraquiana: se militarmente equivocada, a intervenção ganhou a reprovação moral das piores ações do gênero. Procedimento operacional padrão, escrito pelo jornalista investigativo Philip Gourevitch, da Paris Match, e pelo cineasta Errol Morris, disseca o arcabouço degenerado e decadente que conduziu à brutalidade pura. O título nem parece tão atraente a princípio. Mas a leitura esclarece o essencial. Trata-se do tratamento padrão conferido a todo prisioneiro recebido pelos soldados na prisão. Antes de ser levado à cela ou entregue a torturadores profissionais a serviço da CIA, o infeliz era despido e submetido a um ritual de agressões e humilhação destinado a quebrar a sua eventual resistência. O maior mérito do trabalho dos autores americanos é o de estabelecer o que as imagens por si sós não são capazes. Sem negar a força das cenas – e sem mostrá-las, propositalmente – Gourevitch e Morris montam os cenários em torno dos quais apenas um fragmento de realidade foi capturado e passou a traduzir uma história de desvios de conduta em todas as instâncias do governo dos EUA. Vítimas ou loucos? Apesar de ter sido um claro exemplo de como a máquina militar agiu sem controle à revelia dos ideais que deveria defender, nenhum oficial de alta patente foi punido criminalmente pela tortura na cadeia. Essa é uma parte importante da história, já que todos os militares condenados julgavam agir – e estavam corretíssimos – com o beneplácito de seus superiores. Do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, ao comandante das tropas americanas no Iraque, general Ricardo Sanchez, passando pelo subsecretário de Justiça Jay Baybee e pela comandante da prisão, a general Janis Karpinsky, todos contribuíram para que o horror se concretizasse: Rumsfeld, pela pressão em cima dos militares por dados de inteligência que mitigassem as crescentes perdas humanas diante da resistência. Sanchez, por ter fechado os olhos à barbárie da qual fora informado mais de uma vez, e Karpinsky, sua subordinada, por não tomar conhecimento do que era praticado pelos inquisidores civis sob sua égide – sua sala de comando, segundo os autores, ficava na capital kuwaitiana, a 3 mil Km de distância das celas. E Baybee, finalmente, por ter cunhado a famosa e triste definição que faria a alegria dos degenerados: só há tortura quando a dor imposta ao prisioneiro decorre de algum dano físico permanente. O repórter e o diretor se empenham em montar o quebra-cabeças atrás de cada fotografia, e usam para isso o melhor material, o depoimento dos principais acusados, todos militares de baixa patente. Sabrina Harman, Lyndie England, Megan Ambuhl, Charles Graner e Javal Davis descrevem a atmosfera que os cercava. Seus depoimentos, transcritos em longos trechos – uma sábia escolha – são de uma ingenuidade absolutamente convincente. Deixam evidente que em nenhum momento consideravam qualquer das circunstâncias que cercavam as cenas uma imposição degradante a outros seres humanos, muitos deles inocentes. A famosa imagem que ilustra a capa do livro e que é reproduzida acima é a síntese daquele ambiente de loucura digno de um quadro de Hieronymus Bosch: como o prisioneiro apelidado de Gus – fazia parte do comportamento opressivo dos invasores despersonificar os iraquianos – tinha sintomas de demência, como viver se arrastando no chão e se sujar com as próprias fezes, a saída encontrada foi a de prendê-lo com uma coleira. Lyndie England, a soldado que aparece na foto – tirada pelo então namorado, o sargento Graner – conta que posou a pedido do oficial, mas não considerou a situação um ato infracional grave. Para ela, como em tantas outras situações, não havia sofrimento. As descrições se sucedem, sempre com contrapontos tocantes e surpreendentes. Harman, por exemplo, era conhecida na prisão pela forma excessivamente cordial – segundo seus superiores – com a qual lidava com as “crianças prisioneiras” (?), dando-lhes doces. Sim, porque sem informações confiáveis sobre a quem combater, as patrulhas militares passaram a prender indiscriminadamente velhos, mulheres e menores que estivessem nas proximidades de algum incidente que os envolvesse. Qual seria então a razão de seu envolvimento? Ter ajudado colegas a cumprirem o procedimento operacional padrão, ter-se deixado fotografar sorrindo ao lado de presos despidos e ameaçados. Para ela, apenas atos sem maiores danos. Graner, nos depoimentos e nos julgamentos, é acusado de ser o mentor da barbárie (o exército o entregou às feras para proteger os oficiais envolvidos). Seu comportamento, mesmo antes de as fotos vazarem, apontado como um perigoso psicopata manipulador, já mereceria uma investigação, mas Gourevitch e Morris reforçam a idéia de que era apenas uma peça perfeitamente encaixada num modelo de gerenciamento militar organizado apenas quando visto de longe. Assim, enquanto os presos continuassem confinados, todo desvio seria tolerado sem maiores aborrecimentos porque justamente pessoas como o sargento mantinham as coisas sob controle. O sistema degringolou a partir de episódios como o que resultou na morte de um preso inocente, um iraquiano idoso, brutalmente surrado por torturadores civis e que, segundo os autores, teria sido entregue aos militares para que fosse escondido enquanto se decidia, em instâncias mais altas, o que fazer com o cadáver. Em sua revisão de consciência, o grupo de acusados se considera inocente no episódio, já que “apenas” se deixou fotografar junto à atração turística do pavilhão. Mas nenhum dos autores do assassinato foi identificado – torturadores civis tinham passe livre na prisão e não prestavam contas a ninguém dos seus atos.
O maior símbolo da degeneração do aparato militar americano no Iraque é a foto do homem encapuzado em pé sobre um caixote, com os braços atados a fios elétricos. É também, pelo livro, a síntese da loucura. Segundo os autores, a suposta tortura foi simulada como forma de pressionar o preso a cooperar. Para os militares, não há crime nisso. A construção dessa reportagem é exemplar para condensar aquilo que a apuração do escândalo diluiu durante meses de manchetes, desmentidos e tentativas de encobrimento oficiais. A conclusão de que a definição frouxa de tortura abriu espaços para que Abu Ghraib se transformasse naquilo que o aparato ultraconservador cristão que sustentava George Bush mais temia: a contrafação made in America do próprio regime baathista de Saddam Hussein – que usava o complexo para exatamente os mesmos fins.
Marcelo Ambrosio

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