Há um século, a comunidade internacional reuniu-se em Xangai para dar um basta à primeira crise de saúde pública provocada pelo consumo de droga: a epidemia de ópio na China.
O país produzia 35 000 toneladas anuais, quatro vezes a produção mundial atual, para atender os viciados – 25% da população. Desde então, o ópio perdeu popularidade – embora ainda seja consumido em grande quantidade na Ásia. Nas décadas seguintes, outras drogas, como maconha, cocaína e ecstasy, foram adicionadas à lista das substâncias proibidas.
Em comum, elas têm o poder de causar dependência e efeitos devastadores para o organismo humano. Na semana passada, uma reunião da Comissão de Entorpecentes da ONU em Viena, na Áustria, definiu os princípios da política antidrogas internacional para os próximos dez anos. O impressionante não é o plano para o futuro, mas o balanço da última década. A tentativa de criar "um mundo livre de drogas", proposta na reunião da ONU de 1998, foi um fracasso.
Estima-se que 210 milhões de pessoas, ou cinco em cada 100 adultos, usaram algum tipo de droga ilícita nos últimos doze meses. A proporção mantém-se inalterada desde a década passada. Apenas um em cada oito usuários é dependente, como foi o argentino Maradona – os demais são consumidores ocasionais, a exemplo do nadador americano Michael Phelps.
Mesmo diante de inegável derrota da meta anterior, o encontro de Viena decidiu-se por mais uma década de "guerra às drogas" – desta vez, articulada com programas assistenciais, como a distribuição de seringas para viciados em heroína. A novidade, ironicamente, ficou por conta de uma proposta antiga – que o falecido Nobel de Economia Milton Friedman já defendia na década de 70 –, mas que nunca antes tivera tantas adesões: a legalização das drogas.
É bom deixar claro: a ONU não chegou nem perto de liberar as drogas. O que houve foram vozes isoladas, mas num coro crescente, que sugeriram que essa opção fosse incluída no debate. Os defensores, entre os quais está o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, argumentam que as drogas devem ser tratadas como uma questão de saúde pública.
Seus usuários são doentes, e não criminosos, e devem ser atendidos por serviços assistenciais com o intuito de reduzir os riscos a que estão expostos, como overdose, aids e outras doenças. Os governos poderiam taxar e regulamentar o comércio de drogas, tirando-o das mãos dos traficantes e diminuindo a violência associada à disputa por mercados consumidores. Com esse dinheiro, financiariam programas de tratamento de dependentes e educariam seus cidadãos sobre os malefícios dos entorpecentes.
Apesar de ter defensores de peso, a liberação das drogas ainda encontra muitas objeções. "O medo é que uma política de legalização das drogas hoje consideradas ilícitas implique uma banalização do consumo, como aconteceu com o álcool e o cigarro", diz a advogada Janaína Conceição Paschoal, ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes de São Paulo. Embora não se saiba com exatidão o que aconteceria se o mundo inteiro resolvesse liberá-las, a maior disponibilidade de drogas certamente aumentaria o número de usuários.
"Isso já acontece quando pessoas que nunca experimentaram drogas viajam para locais onde o consumo é tolerado", diz o psicoterapeuta Paulo Campos Dias, especialista em dependência química. "Quando veem que o assunto é tratado com naturalidade na região, a curiosidade fala mais alto."
As experiências de relaxamento da repressão às drogas têm efeitos ambíguos. Na Holanda, que liberou a compra de até 5 gramas de maconha em lojas especializadas, apenas 5% dos habitantes fazem uso da substância, menos da metade da média verificada na Suíça, na Itália e na Espanha. Em compensação, a capital, Amsterdã, vive às turras com "turistas da droga", que transformaram o bairro da Luz Vermelha num centro do narcotráfico europeu. Iniciativa similar em Zurique, na Suíça, foi abandonada devido à degradação urbana provocada pela tolerância excessiva.
Eis o principal paradoxo da questão das drogas: a liberação aumentaria o consumo, mas leis mais severas não inibem os consumidores. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a forte repressão policial não impede que haja altos índices de usuários. O governo americano gasta 40 bilhões de dólares por ano e colocou 500 000 pessoas na cadeia na tentativa de livrar os Estados Unidos das drogas, mas o país não perde o posto de o maior consumidor mundial de substâncias ilícitas.
"Há um consenso cada vez maior sobre os limites inerentes a uma política antidrogas meramente repressiva", disse a Veja o economista americano Peter Reuter, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. "É preciso complementá-la com estratégias que façam diminuir as consequências maléficas do consumo."
Embora polêmicos, alguns programas baseados na política de redução de danos já foram implementados com sucesso, sobretudo na Europa. O governo suíço fornece heroína para os usuários que não largaram o vício pelos tratamentos tradicionais. Com a aplicação controlada, feita em último caso, os resultados impressionam: entre 1991 e 2007, os índices de overdose e de transmissão de aids por seringas contaminadas caíram pela metade.
O mercado mundial de drogas movimenta 320 bilhões de dólares por ano, o equivalente ao PIB da Dinamarca, e tem margens de lucro exorbitantes. Um quilo de cocaína produzido na Colômbia sai do país custando 1 500 dólares. Quando chega ao consumidor final nos Estados Unidos, é vendido por 150 000 dólares. Os ganhos bilionários dos traficantes compensam as cargas apreendidas pela polícia e os gastos com suborno de autoridades. Joaquín "El Chapo" Guzmán, o líder do Cartel de Sinaloa e um dos bandidos mais procurados do México, é um dos homens mais ricos do mundo, segundo a última lista de bilionários da revista Forbes. Endinheirados, poderosos e armados, os traficantes são capazes de pôr países inteiros em xeque.
Na Colômbia, o tráfico de cocaína financia os terroristas das Farc, que há quatro décadas tentam solapar a democracia do país. No Afeganistão, o primeiro provedor mundial de ópio, morfina e heroína, a maior parte do lucro fica com as milícias talibãs, que lutam contra as tropas da Otan. Se tentar combatê-las à força provou-se uma tática infrutífera, nada indica que a legalização das drogas varreria essas organizações clandestinas do mapa – elas poderiam continuar vendendo um produto mais barato no mercado negro. É isso que acontece com o cigarro hoje em dia. Definitivamente, não existem soluções fáceis para problemas difíceis.
Thomaz Favaro - Revista Veja
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