21 de abr. de 2009

Calígula de Albert Camus

A montagem de "Calígula", com direção de Gabriel Villela, é bom motivo para ler o mais importante texto da dramaturgia de Albert Camus, cuja tradução está disponível apenas em edição portuguesa. 

Ao lado do romance "O Estrangeiro" e do ensaio "O Mito de Sísifo", essa peça de 1944 compõe uma espécie de "trilogia do absurdo". Data de publicação e tema podem induzir a interpretações equivocadas, associando-o ao "teatro do absurdo" de Ionesco ou levando o espectador a ver na história do imperador louco uma alegoria da Europa sob o nazismo. 

O absurdo, em Camus, nada tem que ver com ilogismo; é, antes, a constatação racional da equivalência de todas as coisas (que suspende qualquer ajuizamento) e a confrontação do desejo humano de compreender e durar com a opacidade do mundo e com seu destino de morte. 

É desses lugares-comuns, herdados dos moralistas franceses (Pascal, Chamfort), que Camus retira um pensamento sintetizado na máxima que Calígula repete na peça: "Os homens morrem e não são felizes". Nesse apego desesperado a uma carne que apodrece, a "uma terra cujo esplendor e cuja luz falam sem trégua de um Deus que não existe" (como escreve Camus no ensaio "O Deserto", do livro "Núpcias") está a força de uma literatura que se obstina entre sol e sombra. O Meursault de "O Estrangeiro" vive na gratuidade que o levará da sensualidade das praias da Argélia (país natal de Camus) ao cadafalso. Calígula mergulha nas trevas após a morte da irmã e amante, tornando-se um maníaco cuja tarefa não é triunfar, mas acumular atos de arbitrária crueldade que perfazem uma pedagogia negativa. 

São variações sobre o absurdo, cuja expressão política, em Camus, vem associada a uma revolta metafísica. Numa das passagens capitais da peça, o jovem Cipião acusa Calígula de ser um tirano, ao que ele responde: "Se soubesses contar, saberias que a menor guerra empreendida por um tirano razoável ficar-vos-ia mil vezes mais cara que os caprichos da minha fantasia." "Mas ao menos seria razoável, e o essencial é compreender", replica Cipião. "Não se compreende o destino, e é por isso que me fiz destino. Tomei o rosto estúpido e incompreensível dos deuses", conclui Calígula. Imitador de Deus (segundo expressão de Jean Grenier), o imperador romano ganha espessura teológica. 

Daí a frivolidade de associá-lo a Hitler ou de ver em "Calígula" uma metáfora da Resistência -da qual, aliás, Camus participou: o absurdo não se resolve na história, mas é uma tensão permanente, um antídoto contra a entronização da história e de déspotas medíocres. 
Manuel da Costa Pinto

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