21 de out. de 2009

Sob o signo da intuição

Jung compara os pressentimentos a uma bússola interior – uma função psíquica que utiliza os cinco sentidos para produzir novas conclusões que não dependem da realidade concreta
Às vezes nos perguntamos se vale a pena dar ouvidos à voz interior que, como um alarme, pode sugerir algo inusitado ou mudanças de rumo em nossas vidas. Ou podemos acreditar que o apelo – vindo sabe-se lá de onde – não passa de cisma. O fato é que o modo como reagimos a esses “avisos” pode fazer toda a diferença em nosso cotidiano. E não são poucos os relatos a respeito.
Você provavelmente deve se lembrar dos comentários, logo após o terrível acidente que matou Airton Senna (1960-1994), em 1o de maio de 1994, em Ímola, na Itália. Quem compartilhava sua intimidade chegou a dizer que na noite anterior à fatídica corrida o piloto estava inquieto, arredio, como que prevendo algo que não soubesse explicar. O mesmo insight aconteceu com um dos integrantes da banda Mamonas Assassinas, o vocalista Dinho, que num vídeo amador deixou gravado seu mau presságio em relação àquela viagem, 2 de março de 1996, sem entretanto, dar a devida importância à sua percepção. As consequências dessas atitudes todos nós conhecemos. Também já passei por várias experiências semelhantes, e a mais marcante aconteceu anos atrás, numa viagem. Eu e uma amiga havíamos planejado férias de um mês, mas duas semanas depois de nossa partida tive uma noite péssima: sonhos terríveis me acordavam praticamente de hora em hora, como que impondo a decisão de antecipar minha volta para dali a dois dias. Foi o tempo necessário para despedir-me de minha irmã, que morreu exatamente na manhã seguinte ao meu desembarque em São Paulo. Tanto o senso comum quanto pesquisadores poderiam atribuir à minha percepção o rótulo de premonição, bruxaria. Mas é certo que algum atributo do nosso aparelho psíquico tem essa fantástica habilidade de enviar mensagens, que cada pessoa interpreta à sua maneira. É assim que a intuição age: segundos preciosos carregados de significado, e isso tanto para a vida afetiva quanto nas atividades profissionais. Todos nós temos a capacidade de registrar e compreender ou excluir essa linguagem de nossa vida. Chamada popularmente de sexto sentido, ela não é um predicado restrito às mulheres, embora muitos afirmem que nós somos mais intuitivas que os homens. Entretanto, há quem tenha maior ou menor facilidade para lidar com essa habilidade e desenvolvê-la que aparece nas mais variadas manifestações do nosso psiquismo: nos sonhos, nas sensações corporais, nos insights e nos atos criativos. Dizem que os gênios da música Ludwig van Beethoven (1770-1827) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) atribuíram à intuição suas maiores realizações. A intuição capta fragmentos das experiências de forma simbólica, imaginativa, de maneira que esses pequenos estilhaços possam ser organizados para compor uma espécie de vitral ou caleidoscópio, cuja combinação faz surgir um todo inovador. Mas para que essa nova informação aconteça deve-se abrir mão do raciocínio e da lógica, pois apesar de ela não se opor à razão, situa-se fora dos seus domínios. Enquanto uma procura organizar os fragmentos de forma coerente, a outra busca uma combinação harmoniosa, obtida pela via da imaginação, do relaxamento e da quietude. O psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) criador da psicologia analítica, chamou a prontidão para compor esse vitral, tirando o máximo proveito do jogo que se forma entre luzes e sombras, de intuição, no qual flashes criativos desvendam possibilidades. A intuição é nossa habilidade de perceber o que pode vir a acontecer; pressentir o que ainda não está visível e reconhecer potencialidades ainda não realizadas. Essa característica é muito comum em empresários audaciosos, que têm a ousadia de projetar e comercializar projetos inovadores; em jornalistas e editores que “farejam” no mercado qual título será bem aceito no ano que vem; nos corretores da bolsa de valores, cuja destreza em prever a alta de determinado papel no mercado fi nanceiro pode tornar seus clientes milionários; nos marchands, cuja capacidade de avaliar o potencial criativo de um pintor ou escultor surge antes mesmo que eles se deem conta da real qualidade de suas obras; em videntes, cartomantes, tarólogos e outros profissionais que trabalham com terapias alternativas, cuja extrema sensibilidade à atmosfera do lugar e às características das pessoas que os procuram, são capazes de revelar inúmeras coisas a seu respeito. Fruto de seu próprio processo individual e de um período que Jung chamou de “doença curativa”, descrito em sua autobiografia Memórias, sonhos, reflexões (1961) o capitulo “Confronto com o inconsciente”, no volume VI de suas obras completas no qual expõe a teoria dos tipos psicológicos, ajuda-nos a compreender o que, na época, o autor sistematizou sobre o psiquismo. Aliás, nunca mais se viu uma obra sua com tal característica, tão cientificista. Publicado em 1921, o texto é o resultado de quase 20 anos de trabalho na prática clínica e a primeira produção intelectual depois do seu rompimento com Freud. Nele, o psiquiatra suíço constata que além das muitas diferenças individuais na psicologia das pessoas, existem também diferentes maneiras de nos relacionarmos com os fatos cotidianos. No lugar de dividi-las em categorias, Jung tentou diferenciar os indivíduos por meio de suas singularidades, propondo duas atitudes e quatro movimentos psíquicos como os modos pelos quais a alma registra e reage às experiências da vida. Jung percebeu que o destino de uns é fortemente determinado pelos objetos de seu interesse, enquanto o de outros é regido pelo seu mundo interior, pela subjetividade. Isso faz com que as pessoas se inclinem naturalmente a lidar com a realidade sob a influência desses fatores. Ou seja, de um modo bem genérico, há quem tenha mais interesse pelo mundo dos objetos, dando a eles um valor preponderante que os atrai como um ímã (os extrovertidos) e aqueles cujo movimento psíquico não vai para o objeto, mas se volta para o sujeito e para seus próprios processos psicológicos (os introvertidos). Ao lado das duas atitudes predominantes (a extrovertida e a introvertida), Jung também constatou a preponderância e quatro movimentos psíquicos básicos: pensamento, sentimento, sensação e intuição, funções da consciência que se inter-relacionam com certo grau de mobilidade e fluidez, permitindo à pessoa experimentar todas as funções sem fixar-se naquela com a qual tenha mais familiaridade. Essa relativização das funções significa que não há um tipo puro, pois todas as atividades psíquicas são importantes para a vida saudável do indivíduo. Para tirar o máximo proveito da função intuitiva, ela precisa estar conectada com as outras funções, porque o pensamento é indispensável para organizá-la e só por meio da sensação somos capazes de realizá-la. Jung comparou a intuição a uma bússola interior – uma função psíquica na qual a percepção dos fatos se dá por meio do inconsciente, utilizando os cinco sentidos (visão, paladar, audição, olfato e tato) para chegar a uma nova conclusão, que não depende da realidade concreta. Para ele, a intuição é uma espécie de apreensão instintiva e seu conhecimento é dotado de certeza e convicção intrínsecas. A atividade imaginativa da intuição descortina novos horizontes e perspectivas indispensáveis ao nosso tempo, sendo o desenvolvimento dessa função uma das mais importantes tarefas da psicoterapia contemporânea. OLHAR DE LONGE Do verbo intuire, que significa olhar para dentro, a intuição não é uma sensação dos sentidos(apesar de se utilizar deles), nem um sentimento ou uma conclusão intelectual, ainda que também possa aparecer sob essas formas. Nele, qualquer conteúdo se apresenta como um todo acabado, sem que saibamos explicar ou descobrir como esse conteúdo chegou a existir. Jung menciona que o filósofo Bento de Spinoza (1632-1677) considerou a scientia intuitiva como a forma mais elevada de conhecimento, sendo sua exatidão atribuída a algum conteúdo que repousa no inconsciente. As pessoas que orientam sua atitude geral pelo princípio da intuição e, portanto, pela percepção por meio do inconsciente, pertencem ao tipo intuitivo. E assim como as demais funções, a intuição pode ser extrovertida ou introvertida, conforme seja a sua utilização: para o conhecimento ou contemplação interior, ou para fora, para as realizações e o desempenho. Segundo a psicóloga Marie-Louize von Franz (1915-1998), no livro A tipologia de Jung (1967), para a intuição “funcionar”, as coisas precisam ser olhadas de longe, ou de modo vago. Só assim é possível captar esse pressentimento vindo do inconsciente, porque quando o foco está voltado para os fatos da realidade exterior essa qualidade quase mágica não tem espaço para se manifestar. É por isso que os intuitivos quase sempre são imprecisos e vagos... Pessoas “visionárias”, no bom sentido, cujas habilidades ganham um papel indispensável no mundo competitivo. Tanto que, atualmente, as empresas valorizam um novo perfil de profissional: indivíduos com aptidão para identificar tendências sem precedentes e com boa noção intuitiva para extrair tendências coerentes de dados conflitantes; que tenham capacidade para pensar além dos limites convencionais; dotadas de habilidade para influenciar atitudes e opiniões, além de disponibilidade para abraçar as incertezas. É o que Katharine Cook Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers – criadoras do Myers Briggs Type Indicator (indicador de tipos Myers Briggs)–, com base na tipologia junguiana, propõem como solução para o sucesso empresarial: a busca de profissionais capazes de descobrir novas formas de fazer as coisas, equilibrando um planejamento calculado com ações intuitivas. Ao emprestar do matemático Arquimedes de Siracusa (287-212 a.C.), a expressão “Eureca!”, o jornalista Nelson Blecher definiu com precisão o que a intuição significa para o mundo dos negócios. Em um artigo publicado em outubro de 1997, na revista Exame, ele apresenta inúmeros motivos para sua crescente valorização, entre eles a imprevisibilidade dos consumidores, a aceleração das mudanças econômicas e tecnológicas, que tornaram as coisas extremamente complexas, a exigência de soluções adequadas aos novos esquemas de produção e fontes de suprimentos. E se para essa habilidade inata do ser humano só existe um freio – aquele que nós mesmos colocamos –, a atitude fielmente junguiana para deixá-la seguir seu curso ou facilitar sua emersão da profundidade do inconsciente é um mergulho no autoconhecimento: um processo capaz de tirar da escuridão essa habilidade, ainda hoje, frequentemente menosprezada. Silvia Graubart

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