Muitas vezes, amigos brasileiros me perguntam o que está acontecendo na Itália e "por que Berlusconi". Quase sempre procuro responder sorrindo (meio sem jeito), alegando que não é fácil explicar o fenômeno Berlusconi.
Começarei, então, por Videodrome, um filme do diretor canadense Cronenberg, de 1984, que antevia alguns conflitos entre a TV e o incipiente computador.
Na minha opinião, Berlusconi assiste semanalmente a Videodrome para aplicá-lo ao contexto italiano. "O poder passa pelos olhos" - o filme cita Lorenzo de Medici, o Magnífico, senhor de Florença e poeta.
Os olhos tornaram-se uma membrana sutil que conecta o visus do "Cavaliere" (como o premiê é chamado na Itália) a um público transformado em "audiência". Visus é a maneira científica com a qual Berlusconi trata seu corpo concentrado no rosto e o torna imutável: um rosto-corpo que se alarga tomando toda a tela da TV. E se expande além dela, difundindo-se em cada interstício visual. Em seu visus-visual, tudo deve ser organizado nos mínimos detalhes. Inútil dizer que os cabelos são falsos, assim como os dentes, que o lifting facial ou a maquiagem são sabiamente excessivos.
Berlusconi é fake no sentido de falso-verdadeiro. É tão visível e excessivamente falso que parece quase verdadeiro; ou, pelo menos, verossímil.
Seu eleitorado é um público - "audiência" que tem na TV aberta seu principal veículo de comunicação (não a internet). E conseguiu transformar em arena política a comunicação visual difundida por sua videocarne. Berlusconi é o taylorismo-fordismo aplicado, não mais à produção de mercadorias padronizadas, mas à comunicação da TV aberta. Ou seja, ele incorpora a transição - totalmente política - de um sistema econômico baseado na produção de mercadorias para outro relacionado à onívora comunicação visual.
Daí o colapso do conceito de sociedade que ele (e, antes dele, Margaret Thatcher) aposentou como relíquia dos séculos 19 e 20 defendida inutilmente pela esquerda: com o colapso da sociedade, esvaem-se no ar-de-pixel as divisões de classe, de idade e gênero (mas não de "etnicidade"). Berlusconi faz sucesso com um público interclassista, multigeracional, transgênero. Como a publicidade de Dolce&Gabbana.
Paralelamente, ocorre a transfiguração do seu corpo em videocorpo. "Ele" aplica a si mesmo, como instrumento de poder de sedução, as tecnometamorfoses experimentadas por inúmeros artistas de vanguarda, expondo suas cirurgias estéticas nas arenas televisivas. Por isso, parece indestrutível, imodificável, inimitável. Sua identidade fixa ("fixada") realiza-se mediante contínuas modificações aclamadas pelos irredutíveis 34% do seu eleitorado projetivo no sentido estatístico e psicológico. Essa política do visus caminha lado a lado com a do camelô, mais antiga.
De fato, Berlusconi costumava cantar nos navios de cruzeiro e entretinha o público com piadas de fundo sexual: adestramento que ele reproduz para as mais variadas plateias mostrando a dupla fileira de dentes branquíssimos. Na recente Assembleia do PPE, na Alemanha, ou seja do partido popular de matriz cristã, ele disse que "tem colhões" e não se deixa atemorizar pela magistratura italiana que o condenou por corrupção. Em seguida, abraçou Angela Merkel - que retribuiu o abraço.
Berlusconi atua sobre as paixões elementares de tipo visceral e as enxerta nas tecnologias televisivas. Esse mix tecno-visceral é apresentado como uma espécie de paradigma amigo-inimigo aplicado não mais às forças sociais, mas ao próprio ego gigantesco versus todos os outros. Desse modo, o nó da discussão desloca-se da crise econômica para o pró ou contra o amor/ódio por "ele" mediante retóricas emotivas: inveja pelo sucesso, pelas mulheres, filhos, apesar da bondade que o distingue enquanto ungido pelo Senhor, predestinado para esse papel por "mamãe" (depois do atentado, disse que "recebeu um milagre"); no sexo ele afirma o pior machismo latino (quando foi acusado de andar com prostitutas disse "não sou nenhum santo"), enquanto ódio e rancor caracterizam toda a oposição.
Finalmente, está em sintonia com Ratzinger (o papa), promulgador de uma teologia reduzida a interferir sobre a vida e a morte: essas duas paixões fundamentais casam perfeitamente com as outras paixões elementares do capo da Mediaset.
A essa altura, é atingido pelo autor do atentado de Milão, Massimo Tartaglia, com uma estatueta que quebra dois dos seus dentes, o septo nasal e fere o lábio. Esse homem de 42 anos, definido como "perturbado mental", incorpora perfeitamente o tipo fraco, com um ego precário e doente que, recusando a mão estendida oferecida pelo "bem", "enlouquece", como todo opositor.
Evidentemente, trata-se de um atentado infeliz, quer porque o uso da violência em política é sempre detestável, quer porque reforçará o poder do rei-sacerdote, que, ferido, perdoará o homem que atentou contra ele. E a oposição só poderá balbuciar solidariedade, sem mergulhar na obscura esquizofrenia que se apoderou da maioria dos italianos.
Um dos povos que têm mais emigrados no mundo, por exemplo, no Brasil, tornou-se em apenas dez anos racista, desconfiado, vulgar. A universidade é abandonada pelos melhores cérebros. O próprio reitor da Luiss, uma das universidades particulares de maior prestígio, que não é absolutamente de esquerda, escreveu uma carta aberta ao filho sugerindo que vá estudar no exterior. É a perspectiva que transmiti a muitos dos meus alunos e eu mesmo decidi empreender. O meu não é propriamente um exílio, mas certamente minha decisão de abandonar a universidade italiana tem um sentido amargo de derrota, inclusive pessoal, e de vontade de não me render.
O resto do problema será facilmente solucionado: Berlusconi irá para a Suíça, para uma clínica chamada precisamente Ars Medica, onde em pouco tempo e com muito dinheiro, criarão para ele um novo visus , cada vez mais indestrutível para um interminável Videodrome.
Berlusconi perdoará quem o atacou, terá solidariedade e, vezeiro em plásticas, se reconstruirá na Suíça
Massimo Canevacci
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