De como Chiquinho calculou mal sua entrada no bar e seu refúgio na vida
De churrasqueira não se espera queda, mas ascensão. Ascensão de fumaça e de cheiro de picanha no sal. Francisco ficou no meio do caminho. Levitava dentro da chaminé, entoando um mantra penoso: "Ai, socorro, me ajuda". Os pés tingidos de carvão balangavam sofregamente, e era só o que o público em frente do Bar da Pura conseguia ver do gatuno. A gozação era geral. O ladrão tinha entalado.
Cleia foi quem deu o flagrante no Cinderelo. Acabara de chegar do hospital com a filha de 9 anos, que uma hora antes tinha machucado levemente os dedos num ventilador. Diante do seu bar na Rua Campo Comprido, no bairro do Imirim, quatro viaturas cegavam os moradores com seus giroflexes. Cleia pensou no marido. Teria tido um ataque? Benê dormia o sono profundo dos consumidores eventuais de um relaxante. Como o "Ai, pelo amor de Deus" persistisse, resolveu abrir o bar tendo um policial como escudo. Um olhar de canto identificou as solas rachadas, a poucos centímetros da grelha. "Algo em mim dizia que era o infeliz que vi rodeando o bar antes de sair com minha filha."
E era. Francisco sondara o local sem muito disfarce, tanto que, antes de rumar para o pronto-socorro, Cleia chegou a chamar uma viatura, que não deu pista dele. O moço, de 19 anos, teria galgado o muro pegado ao bar, uma parede de concreto encimada de pregos e cacos de vidro, se embrenhado no milharal e no bananal que cobrem o terreno e, uma vez na penumbra, subido no telhado do estabelecimento. Ali tirou a cobertura da churrasqueira, desvencilhou-se dos chinelos e da camiseta e afundou no túnel. A compleição esguia não fez de Francisco um quiabo. "Ele entrou, mas se ferrou", relatou Neuma, a vizinha que chamou os policiais. "Ficou engasgado."
Os bombeiros olharam daqui, olharam de lá, e um deles até pensou em puxá-lo pelos braços, tanto que quebrou a ponta da churrasqueira, o que só aumentou o prejuízo de Cleia e Benê. Por baixo, outros companheiros marretavam a torre de alvenaria de 3 metros de altura com um vão quadrado de 23 cm por 23 cm, enquanto a notícia do larápio desastrado se espalhava como pólvora pelas tevês e pelo YouTube. Depois de uma hora Francisco pariu-se de corpo inteiro para os holofotes. Apresentava escoriações nas pernas e nos braços e uma feição abobalhada. Foi levado para o Hospital do Mandaqui, onde lhe radiografaram o tradicional, e dali seguiram com ele para o 13º DP.
QUATRO VEZES FEBEM
Na manhã seguinte, Fernanda soube por uma vizinha da trapalhada de Chiquinho, como ele é fichado na família. Já estava habituada com os enroscos do irmão, preso por furto quatro vezes na Febem e mais três em CDPs depois que ganhou a maioridade. Alguns da comunidade de Lauzane Paulista, bairro de inspiração suíça próximo do Imirim, o têm em conta negativa. Chegaram a amarrá-lo certa vez numa árvore, para cada um dar sua contribuição ao linchamento. Foi salvo pela polícia.
"Ele nunca pegou numa arma, só furta eletrônico para comprar droga", ressalva Fernanda. Até os 13 anos, era moleque de empinar pipa e fazer carreto para as senhoras que subiam as ladeiras com as sacolas de feira marcando os antebraços. Mas não configurava um menino tradicional. Já tinha passagem pelas Clínicas com um histórico de hiperatividade e déficit de atenção. Mal frequentou a escola, porque não conseguia se concentrar, e virava e mexia tinha siricoticos. Saía pela rua agitado, "como um passarinho que tem que voar".
A partir dos 13, virou "13" para os conhecidos, um louco de pedra. O crack deteriorou o que sobrava nele de interatividade sadia. Passou a sumir de casa e a surrupiar furadeira, DVD, aparelho de som, o que lhe parecesse moeda de troca. A mãe, que se dividia na criação autônoma dos outros oito filhos, não sabia mais como insistir no tratamento da hiperatividade se a ela se juntara a droga. Fosse viva, saberia que até os agentes de saúde fogem dos noias...
Morreu há quatro meses de ataque do miocárdio. O filho mais velho já tinha assumido responsabilidades de pai de família, mas os mais antigos da Rua Saint Gall também davam seus pitacos na tentativa de tirá-lo desse caminho. Seu Ademir, dono do Bar e Empório Saint Gall, alimentava Francisco com paçoca Gibi, Coca-Cola e conselhos que mal entravam por um ouvido e saíam pelos dois. "Ele faz que aceita, mas o olhar dele não se fixa em nada nem em ninguém."
Nem na parede democrática do bar, tomada de pôsteres de todos os times paulistas campeões, Francisco botava curiosidade específica. "Se você desse uma camisa do Palmeiras, ele usava, se fosse do Corinthians também, até do Fluminense ele gosta", indigna-se Zé, frequentador do botequim, que ficou três anos na cadeia, mas por causa da cocaína. Regenerado, ajeita o boné para tentar explicar como Francisco se safaria do Bar da Pura caso seu quadril driblasse a chaminé e ele ainda dobrasse ao meio seu 1,80 metro para passar pela boca da churrasqueira. "Assim que alguém abrisse a porta, ele saía correndo."
ANCAS NA JANELA
Em maio do ano passado, Osnar dos Santos Cesário também calculou que suas ancas não entalariam na janela de outro bar, este em Jundiaí, interior de São Paulo. Acabou consigo mesmo metade para fora, metade para dentro, quando tentava sair do local sem o objeto do desejo. Aos gravadores, disse que havia sido assaltado, ficara sem dinheiro e invadiu o bar para filar a grana do busão. Às câmeras, saiu-se com "Mais uma, de novo" - donde se presume que, ou já se embaraçara em outras estreitezas da vida, ou era reincidente no crime. Ao levantarem a ficha do homem de 40 anos, ela veio limpa. A polícia, então, o liberou, para enquadrá-lo de novo em novembro, quando foi autuado em flagrante por furto na cidade de Várzea Paulista. Na cadeia de Jundiaí, seu nome não consta mais entre os 420 detentos.
Em novembro mesmo, um romeno tentou passar por um postigo que o levaria da rua ao supermercado do seu António, em Almancil, na província portuguesa de Algarve. Não atentou para a própria circunferência abdominal, que o impediu de evoluir na empreitada. Como disseram os nativos, acabou com o rabo para fora, posição em que permaneceu por nove horas até a chegada do proprietário. Quando os bombeiros chegaram, ele estava com as calças arriadas até os joelhos e apenas de peúgas, sem os sapatos. Permaneceu dessa forma, atravessado, em trajes mínimos e sem tocar o chão com o bico dos pés, por mais um par de horas.
Moradores disseram que, se o invasor tivesse estudado mais um bocadinho, não teria protagonizado aquele espetáculo. O proprietário nem sequer apresentou queixa. O ladrão, sim. Três meses depois, alegou que alguém lhe despiu as pantalonas antes da chegada das autoridades. Culpa seu António pelo constrangimento. O dono do supermercado tira sarro. Considera a situação "hilariante" e garantiu estar com a consciência absolutamente tranquila. A queixa foi remetida ao Ministério Público.
Assim como o proprietário do bar de Jundiaí, que teve de pagar por uma janela e seis vidros quebrados, Cleia e Benê assumem sozinhos o ônus da invasão. A churrasqueira, com as entranhas à vista, ela emprestava àqueles que desejavam assar o kit linguiça/contra-filé/picanha/pão de alho. O lucro vinha da cervejinha, que terá de ser tomada a seco pelos fregueses em volta da mesa de bilhar.
A família de Francisco arca com a exposição de um sofrimento que, até então, ficava moderadamente circunscrito à moradia de quatro cômodos escada abaixo, dividida entre 14 membros - ou 15, nas vindas esporádicas de Chiquinho. As crianças viraram "sobrinhos do churrasquinho" ou "gnomos de Papai Noel". Estão todos enclausurados, com a vergonha a inundar a casa.
Francisco foi do 13º para o 72º DP e, de lá, para o Centro de Detenção Provisória de Osasco I. Permanece na tranca e, por isso, os irmãos ainda não podem visitá-lo. Como das vezes anteriores, terá advogado nomeado pelo Estado. É acusado de furto qualificado sob o inciso de "abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza". Escalada, sim. Destreza, pouca. Abuso de confiança, difícil. Com a vida encalacrada no vício, Francisco não inspira nenhuma. Não à toa, quando os policiais lhe perguntaram o que fazia dentro da chaminé, ele se limitou a dizer: "Nada, senhor". Absolutamente nada.
Mônica Manir
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