14 de mar. de 2010

Ligia


Ao andar pela primeira vez no calçadão de Copacabana, fiquei quase estático diante das belezas naturais e animais que só o Rio de Janeiro possui. 


Ali compreendi que a inspiração para Vinícius e Jobim esculpirem musicalmente a “Garota de Ipanema” jamais poderia ter sido noutro lugar deste vasto mundo, pois o andar cheio de graça daquelas meninas que vêm e que passam, só mesmo na cidade maravilhosa. 


Todavia, a memória sentimental da música “Lígia”, de Tom Jobim, me impediu de ficar paralisado naquele calçadão, pois imediatamente comecei a cantarolar os versos “andar pela praia até o Leblon”, e parece que o dia ficou mais límpido com essa singela homenagem àquele que já foi chamado de maestro soberano por outro não menos soberano, o Chico Buarque; daí porque andar até o Leblon era questão de honra naquele dia cheio de luz. 


E assim foi. Cantei a melodia “Lígia” que tanto embalara minhas jovens tardes de domingo a domingo ao som de Chico Buarque. Sim, porque a primeira referência dessa mais que bela cantiga era a versão gravada pelo Chico no então elepê “Chico Canta”. Desde essa época encantei-me por essa musa chamada Lígia, afinal ela inspirou o Tom Jobim a dedilhar no piano uma de suas mais belas melodias, carregada de um frêmito desejo. 


Um dos aspectos mais inteligentes contidos na letra dessa cantiga é a negação do amor, pois de início se pensa que ele realmente está negando a paixão pela tal Lígia (“eu nunca sonhei com você”), mas logo se descobre que é uma negação infantil, de um frustrado que não consegue exprimir sua louca volúpia pelos olhos morenos que “metem mais medo que um raio de sol”. E a mentira se espalha nas afirmações nada coerentes. Afinal, como entender alguém que não goste de chuva e nem goste de sol? E que muito menos não vai a Ipanema? 


Eis aí a tragédia do tímido apaixonado. Ainda assim, a música “Lígia” continua negando a paixão. “E quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano, seu nome eu não sei”. Claro, ninguém sabe o nome da musa, afinal ele só repete “Lígia” por seis vezes ao longo da canção... O mais incrível, porém, ainda estar por vir. Quando ele diz que nunca quis ter a Lígia ao seu lado, num fim de semana, com um chope gelado em Copacabana, aí é demais. E não querer andar pela praia até o Leblon, então! 


Bem, quando eu estive nesse cenário desenhado pela pródiga natureza, passei a entender melhor a força da música. Como se não bastasse a formidável construção dos versos musicados, descobri mais tarde que há outras duas versões da letra, escritas pelo próprio Jobim, mas que não se sabe ao certo do porquê de três mudanças na letra da música. Como a versão cantada pelo Chico Buarque foi a primeira que ouvi, chamo-a de primeira versão. E é a partir dela que assinalo as mudanças nas demais versões, gravadas tanto pelo próprio Tom Jobim, como por João Gilberto. 


A segunda versão é a dedilhada pelo mestre João Gilberto – aquele que praticamente inventou a bossa nova, com a batida revolucionária de seu violão, resquício das lembranças ribeirinhas de sua meninice, onde observava o andar rebolado das lavadeiras em Juazeiro da Bahia – e o que se percebe nessa versão é uma letra mais direta, menos lírica, porque não há o intenso jogo de negação/afirmação da letra da versão primeira. Se bem que nessa nova faceta da música há uma tirada sensacional, quando Tom Jobim diz que jamais deveria se casar com a Lígia, pois fatalmente iria sofrer tanta dor pra no fim perder a musa. Um receio que só quem de fato a conheceu deve entender esse medo tão fatalista. 


Há uma terceira versão, registrada em show de voz e piano com o maestro Jobim, realizado nas Minas Gerais, no ano de 1981, onde os olhos da musa já não são morenos, e sim castanhos. Nessa versão, ao invés de cantar “e quando você me envolver / nos seus braços serenos / eu vou me render”, ele diz que a Lígia tem modos estranhos de se aproximar (“você se aproxima de mim / com esses modos estranhos / eu digo que sim”). 


Infelizmente nunca saberemos a que modos o Antonio Brasileiro quis de fato se referir; mas dá para imaginar. É um exercício interessante ouvir as três versões (Chico Canta, 1974, Philips; João Gilberto in Tokyo, 2003, Universal; e Antonio Carlos Jobim em Minas ao vivo, 2004, Biscoito Fino), porque assim se tem uma vaga idéia de como essa musa chamada Lígia não só inspirou uma belíssima música, como também foi capaz de render três versões sobre a mesma melodia. A mulher certamente era um furacão.  


Quando eu estiver novamente caminhando pela praia de Copacabana, até o Leblon, será irresistível andar lentamente, a tempo de poder cantar todas as versões de “Lígia”, pois é mais que necessário relembrar canções como essa, de um gênio chamado Tom Jobim. Até porque essa música, além de ter o fascínio das boas cantigas, carrega em suas entranhas um inconfundível cheiro de maresia Mantovanni Colares




A Lígia do Tom 
"Eu nunca quis tê-la ao meu lado num fim de semana/um chope gelado em Copacabana". A música de Tom Jobim foi escrita em 68 para uma paquera de botequim. Lygia Marina Pires de Moraes, a musa da história, tem 54 anos e conheceu o compositor aos 21, no antigo bar Veloso (que hoje se chama Garota de Ipanema). 

"Estava tomando cerveja com uma amiga e vi o Tom na mesa ao lado. Logo ele avançou, dizendo que eu tinha mãos de pianista, imagine!". Copo vai, copo vem e Tom se lembrou que, na mesma noite, tinha que dar uma entrevista para Clarice Lispector. Lygia só foi descobrir a música anos depois, quando já estava casada com o escritor Fernando Sabino. 

Um dia, Sabino atendeu um telefonema de Tom, que ligou para procurar Lygia. "Meu ex-marido morreu de ciúmes e Tom gravou a música para dar de troco para ele, que desligou o telefone e não me deu o recado." Não é por acaso que a canção diz: "E quando eu te telefonei/ desliguei/ foi engano". Mas o engano mesmo foi outro. "Ele errou a grafia do meu nome", diz Lygia, com y, que fique claro.


Eu nunca sonhei com você 
Nunca fui ao cinema 
Não gosto de samba não vou a Ipanema 
Não gosto de chuva nem gosto de sol 
E quando eu lhe telefonei, desliguei foi engano 
O seu nome não sei 
Esquecí no piano as bobagens de amor 
Que eu iria dizer, não ... L
ígia Lígia 
 Eu nunca quis tê-la ao meu lado 
Num fim de semana 
Um chopp gelado em Copacabana 
Andar pela praia até o Leblon 
 E quando eu me apaixonei 
Não passou de ilusão, o seu nome rasguei 
Fiz um samba canção das mentiras de amor 
Que aprendí com você 
É ... Lígia Lígia 
*Você se aproxima de mim 
Com esses modos estranhos e eu digo que sim 
Mas teus olhos castanhos 
Me metem mais medo que um dia de sol 
É... Lígia Lígia 
**E quando você me envolver 
Nos seus braços serenos eu vou me render 
Mas seus olhos morenos 
Me metem mais medo que um raio de sol 
É... Lígia Lígia 
Tom Jobim - Chico Buarque

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