7 de mar. de 2010

Nas pedras pisadas do cais

Quem tem menos que 35 anos ou não seja aficionado por samba, provavelmente não conhece O Mestre Sala dos Mares, com letra de Aldir Blanc e música de João Bosco. Gravado em 1977, entrava no registro de música altamente alegórica para passar pela censura do regime militar e tendo forte carga contra o estado das coisas da época. A música narra um dos momentos mais dramáticos da primeira fase da República brasileira e completamente maldito para a Marinha, mais conhecido como A Revolta da Chibata. Em 1910, mais de 2.300 marinheiros, quase todos negros e mulatos, se insurgiram contra o castigo corporal então infligido e tomaram conta de quatro navios de guerra em plena Baía da Guanabara, chegando a bombardear o Rio de Janeiro, então capital da República. Pois este capítulo da história nacional feita por gente do povo teve o seu melhor e mais apurado registro em obra que agora ganha relançamento, meio século depois de sua primeira edição, o clássico do jornalista Edmar Morel (1912-1989), A Revolta da Chibata. Esta reedição especial, organizada pelo historiador Marco Morel, neto do jornalista, tem como anexo o diário inédito em livro de João Cândido, o líder da revolta. O material foi originalmente publicado em 12 edições no jornal Gazeta de Notícias, entre 1912 e 1913. Esta nova edição incorpora, ainda, uma nova introdução e uma rica seleção de imagens do Acervo da Fundação Biblioteca Nacional. Esta obra traz o registro, entre outras qualidades, de um dos capítulos mais importantes na luta dos Direitos Humanos no Brasil em termos mais geral e do combate aberto ao racismo que ainda persiste. Entre documentações várias e imagens expressivas pesquisadas e aqui impressas a partir dos arquivos, encontra-se a carta manifesto dos revoltosos ao governo. Como explicitamos mais adiante era, um refinado documento que justifica e apresenta um grupo de lutadores que tinha perfeita consciência de seu lugar na sociedade e apenas reivindivam os seus direitos mais elementares na jovem República Brasileira na qualidade de cidadãos. Direitos estes que, visivelmente e de várias maneiras, continuam sendo vedados à grande maioria de pobres, negros e mulatos ainda hoje, cujo resgate desta dívida social teve início há apenas poucos anos. A Revolta da Chibata é um corajoso registro de fatos que a historiografia oficial tentou deixar esquecidos especialmente pela ação do governo brasileiro e da Marinha: os tenebrosos massacres na Ilha das Cobras, onde os revoltosos (já anistiados legalmente) Eram encarcerados em uma masmorra subterrânea repleta de cal e submetidos a fuzilamentos e torturas de toda ordem; a desumana escravidão de centenas de marinheiros e trabalhadores exilados para a selva amazônica; os desmentidos do governo; a longa prisão e os últimos dias de João Cândido. A publicação do título custou a Edmar Morel a cassação de seus direitos políticos e sacrificou sua atividade jornalística. Na época, ele sofreu repressões e muitas dificuldades, mas por ter partilhado com João Cândido a trajetória de perseguições, não recuou e com orgulho assinou o polêmico e audacioso título, que acabou por batizar o movimento. Trata-se não apenas de uma interpretação sobre o passado, o que já seria muito, mas de corajoso posicionamento diante do presente: contra o racismo e a violência do Estado sobre as camadas pobres, valorizando os heróis da plebe como protagonistas da História e a capacidade de rebeldia e transformação dos setores oprimidos da sociedade. A publicação do título custou a Edmar Morel a cassação de seus direitos políticos e sacrifi cou sua atividade jornalística. Na época, ele sofreu repressões e muitas dificuldades Tomada dos navios de guerra As chibatadas foram abolidas da Marinha logo após a Proclamação da República. Porém, esta resolução durou apenas cinco meses. Apesar de ser alegado na época que este tipo de medida era comum em outras partes do mundo, o fato é que no Brasil e aos marujos tinha um sentido todo específico. Afinal, boa parte do seu contingente era composta de negros e de mulatos. Logo, eram tratados como não cidadãos e a contrapelo da lei de abolição da escravatura. Há pelo menos dois anos antes da revolta existiam planos para se insurgir contra os castigos corporais entre outros fatos degradantes, desde as péssimas condições de trabalho até uma alimentação das mais indignas. O movimento foi disparado em 22 de novembro de 1910, quando o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi condenado a 250 golpes de chibata a bordo do Minas Gerais, então o mais moderno navio de guerra da marinha e recém chegado da Inglaterra. Liderados por João Cândido, um grupo se formou com a tripulação dos também navio de guerra São Paulo, o cruzador Bahia e o blindado Deodoro, todos parados na Baía de Guanabara. Entre as reivindicações dos revoltosos, estava o fim dos castigos físicos, salários mais dignos e uma escala de trabalho mais equilibrada para evitar os longos e desumanos turnos impostos. O governo federal, então presidido pelo Marechal Hermes da Fonseca, endureceu e se recusou a negociar. Em 23 de novembro, os navios Minas e São Paulo disparam salvas de canhão de grosso calibre sobre o Rio de Janeiro e Niterói, ocasionando duas mortes no Morro do Castelo (no centro da capital federal) entre outros feridos e perdas materiais. Neste dia e no seguinte o pânico tomou conta da capital federal, ocasionando fuga em massa, especial-mente de trem rumo a Petrópolis. A frota de quatro navios rebelados, ainda em 24 de novembro, rumou para alto mar em manobra para não serem bombardeados, mas o Deodoro chegou a disparar contra dois destróieres de reconhecimento. No dia seguinte, o presidente da república aparentemente cedeu e assinou a anistia a todos os envolvidos e, entre os dias 26 e 28, ocorreu o desarmamento e a entrega dos navios. Porém, neste mesmo último dia, a Marinha não cumpriu a anistia e literalmente exonerou dezenas de revoltosos, o que aumentou ainda mais a tensão entre marinheiros e oficiais. Ante o desenrolar dos acontecimentos e o Estado descumprir o que assinara, ocorreu um motim no Batalhão Naval da Ilha das Cobras. Em resposta, os cruzadores Barroso, Tamoio e o Rio Grande do Sul bombardeiaram o quartel provocando 23 mortos e 18 feridos. Mas os marinheiros do Rio Grande do Sul se uniram à revolta, resultando na morte de um revoltoso e de um oficial. João Cândido e mais 17 revoltosos foram encarcerados no presídio do quartel da Ilha das Cobras em 13 de dezembro e, na manhã seguinte, 16 encarcerados morrem sufocados pela cal que cobria as paredes das celas como desinfetante, mas João Cândido sobrevive. Para 97 ex-marinheiros a sentença foi o exílio no estado do Acre, onde cumpriram pena na Comissão Rondon, trabalhando na construção da Estrada de ferro Madeira-Mamoré. Durante o translado por mar, e sob a suspeita de revolta, cinco presos foram fuzilados. Por dois meses, João Cândido permaneceu internado no Hospital Nacional de Alienados e, após essa permanência, voltou ao mesmo presídio até 1912. Carta manifesto Estes foram os fatos, o esqueleto da passagem dramática para a única vez em que a capital da República foi bombardeada. Mas o fio narrativo de Edmar Morel, somado às memórias de João Cândido, dão carnadura sobre o cotidiano, desfilam os personagens e os sonhos de cada um destes protagonistas anônimos que foram silenciados por quase 60 anos. Fontes da Marinha tentaram semear na imprensa que João Cândido era argentino, então um estrangeiro infiltrado para desestabilizar a ordem vigente Entre outros materiais inéditos em livro, esta edição traz o comunicado oficial do levante feito pela comissão de marujos, datada de 22 de novembro, e endereçado corretamente ao Presidente da República do Brasil, afinal, o chefe em exercício das forças armadas. Uma verdadeira carta manifesto de caráter dos mais objetivos e precisos, demonstrando que são um grupo coeso e devidamente ciente de seu lugar na ordem estabelecida nas regras da República. Logo no começo, é importante observar que eles se autodenominam "cidadãos brazileiros e republicanos". Esta qualificação está diretamente ligada ao cerne do movimento. Pois eles (a carta é escrita na primeira pessoa do plural, é um coletivo e não um movimento individual ou personalista) são cidadãos e não escravos para receberem chibatadas como medida disciplinar. Logo no começo, é importante observar que eles se autodenominam "cidadãos brazileiros e republicanos". Esta qualificação está diretamente ligada ao cerne do movimento. Pois eles (a carta é escrita na primeira pessoa do plural, é um coletivo e não um movimento individual ou personalista) são cidadãos e não escravos para receberem chibatadas como medida disciplinar. Esta prática era presente no regime de escravidão da Monarquia, logo completamente equivocada e sem lugar em regime republicano em qualquer país do mundo que adotou esta forma de governo. Finalmente, eles se declaravam brasileiros, apresentam -se não como bandidos, mas como nacionalistas. O que foi fundamental, pois fontes da Marinha tentaram semear na imprensa que João Cândido era argentino, então um estrangeiro infiltrado para desestabilizar a ordem vigente. O que não era verdade. Na seqüência, ainda no início da carta manifesto, o coletivo vai direto ao ponto: "não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brazileira [referência explícita à República em vigência], a falta de proteccção que a patria nos dá [muito bem colocado em termos conceituais e políticos demonstrando que os revoltosos sabiam exatamente o seu lugar nesta realidade: o patriota tem relação de mão dupla com a sua pátria] e até então não nos chegou". Mais uma vez, ao repisa uma recorrência das mais importantes, afirmam como toda a classe de marinheiros é vista e tratada. Aqui, fica bem evidente sem ser grafada a condição do racismo imperante. "A Marinha Brazileira não ser grandioza, porque durante vinte annos de Republica ainda não foi bastante para tratarmos como cidadãos fardados em defesa da patria". Logo após, ressalta-se que este movimento visa exclusivamente garantir a toda uma classe "os direitos sagrados que a Republica nos faculta, acabando com as desordens, e nos dando outros gosos". O que não está dito aqui, mas provavelmente estava na perspectiva desta primeira carta manifesto, seria o combate de outra maneira do racismo se manifestar na Marinha: a de não permitir a promoção de negros e mulatos ao oficialato, algo que demandou décadas para mudar. Além do fim dos castigos corporais, os insurgentes reivindicam mudanças estruturais, visando outras etapas necessárias no saneamento desta força armada. "... retirar os officiaes incompetentes e indigozos de servirem a Nação Brazileira, reformar o Código imoral e vergonhoso, que nos regem, affim de que desapareça a chibata bollo de outros castigos similhantes; augmentar o nosso soldo pelos ultimos planos do Ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os Marinheiros que não teem competencia para vestirem a orgulhoza farda, mandar por em vigor a tabella de serviço diaria que a acompanha". Ou seja, deste trecho emerge, nada mais nada menos, do que os princípios que nortearam a Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Movimento este que fundou o conceito moderno do regime político da República. Para se ter liberdade, é fundamental o pleno respeito ao cidadão. Respeito este que deriva diretamente de instrução e de retribuição em justo pagamento ao seu trabalho honesto. Mas, para que estas básicas condições possam ser concretizadas igualitariamente, é vital a exclusão de oficiais racistas e intolerantes e a reformulação em regra do código da Marinha. O final deste sintético manifesto não poderia ser outro. Estipula 12 horas para o chefe do poder Executivo a responder sobre as reivindicações do movimento rebelde e dar continuidade a uma negociação, "sob pena de ver a patria aniquilada", clara alusão à possibilidade de bombardeio ao coração da capital federal, o que realmente aconteceu. Descoberta da pauta Edmar Morel registra em sua Introdução Heróis o silenciamento a que foi imposto esta revolta. Na viagem que fez para chegar e fixar residência no Rio de Janeiro, lembra que viu um exemplar da Revista da Semana sobre "um pobre velhote recolhido como indigente a um hospital", que era o próprio João Cândido. Assim ele soube da história do movimento, quando iniciava a sua carreira jornalística. Em 1934, já na ditadura de cunho fascista de Getúlio Vargas, um dos principais jornalistas cariocas, Aparício Torelly, mais conhecido pelo pseudônimo Barão de Itararé, anunciou no jornal Folha do Povo uma série de reportagens sobre João Cândido. Foram publicadas apenas duas. Pois ele foi sequestrado por oficiais da Marinha, lembra Morel, conduzido a Barra da Tijuca e sofreu uma série de constrangimentos por pura intimidação. Acredita-se que, devido a esse fato, o Barão tenha adotado uma placa nas porta da redação onde se lia "Entre sem bater". Morel recorda que ficou estarrecido com o ocorrido. "Um herói da ralé não podia ter história?" Então começou a trajetória de 10 anos de pesquisas apuradas e longas entrevistas com João Cândido para a confecção desta obra. História de um livro Esta reedição comemorativa traz três ineditismos valiosos em relação às anteriores: um ensaio introdutório de Marco Morel, historiador e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e neto de Edmar Morel; as memórias do líder do movimento A Vida de João Cândido ou o Sonho da Liberdade, pela primeira vez publicado em livro desde sua edição no Gazeta de Notícias - o maior jornal do Rio de Janeiro do começo do século passado - entre 31 de dezembro de 1912 e 12 de janeiro de 1913. Além disso, inclui mais dois anexos. O primeiro é Reminiscências de uma Fábula Criminalista, do contra-almirante Evaristo de Moraes, então deputado incumbido pelo governo para negociar com os revoltosos. Ao subir no navio Minas Gerais, os marinheiros explicaram em detalhes os motivos da revolta pelos graves castigos corporais e apresentaram um marinheiro surrado dois dias antes. O segundo anexo, é o texto Versão Oficial, de autoria do capitão do mar e guerra Luís Alves de Oliveira Bello, uma tentativa de resposta ou negação institucional ao livro de Edmar Morel, logo após o seu lançamento. Todos estes três textos trazem introdução explicativa do organizador desta edição, Marco Morel, para contextualizar devidamente o leitor. O que evidencia mais ainda o cuidado e a pertinência desta reedição. Finalmente, esta versão traz fotos preciosas da revolta, derivadas do acervo da Biblioteca Nacional. Em seu estudo introdutório, Marco Morel já inicia informando que foi seu avô quem nomeou o movimento, através do título de seu livro A Revolta da Chibata. Além disso, Morel elenca uma série de informações importantes para localizar o leitor em relação a detalhes de tempo e de espaço, desde o pesado silêncio que cercou o tema até 1959 e, também, como Edmar formou esta sua obra. O cearense Edmar Morel chegou ao Rio de Janeiro nos anos 30 e logo se tornou um dos principais jornalistas da época, tendo atuado nas principais mídias como O Globo, Jornal do Brasil, O Cruzeiro, incluindo e outros aliados à militância da esquerda nacionalista e democrática, logo, fora da esfera do Partido Comunista de Luis Carlos Prestes. Mas essa passagem histórica da Revolta da Chibata teve ampla cobertura da imprensa em 1910, mas depois disso caiu no pleno esquecimento e não foi à toa. O livro foi resultado de 10 anos de pesquisas de Edmar Morel passando pelos mais diversos materiais: fontes documentais, relatos orais, matérias de jornais da época, manuscritos, debates parlamentares, livros, textos oficiais, poemas, caricaturas, correspondências privadas Para saber e memórias. Como destaca Marco Morel, "Redigida com estilo ágil e direto do jornalismo, sempre traz explícito o ponto de vista do autor - que cita, incorpora e se posiciona diante de visões contrárias e hostis aos feitos dos marujos de 1910". Isto é de fundamental importância, pois o próprio autor deixa claro que é parcial nesta narrativa jornalística. Ou seja, para quebrar o silêncio que o Estado impôs ao tema, reprimindo todas as tentativas anteriores a 1959 de publicar qualquer material sobre o tema. Esperando, assim enterrar sob o esquecimento o que era considerado atos criminosos de militares que quebraram a linha de comando em motim explícito, ao mesmo tempo em que se fazia acreditar que as causas do movimento eram irrelevantes. Outro aspecto histórico importante nesse contexto é que este trabalho consegue a sua confecção e publicação pelo governo de Juscelino Kubitschek, uma das gestões mais democráticas que o Brasil conquistava até então. Gutemberg Medeiros

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