29 de ago. de 2010

Basta o essencial!

Ela estava dentro de uma loja olhando roupas quando a proprietária disse para a vendedora: “Atenda aquela senhora ali”. Olhou para trás procurando a senhora em questão e qual não foi a surpresa quando a vendedora se aproximou dela. De susto, foi obrigada a entender que a palavra senhora foi usada para designá-la. Há algum tempo a palavra senhora vem perseguindo-a como se fosse mais um fio de cabelo branco que nasceu ontem e tomou conta da raiz e de parte da sobrancelha direita. Ela nunca escondeu a idade, porque nunca teve motivos. Viveu os 20, 30, 40 com tamanha intensidade que, às vezes, parecia exagerada. Ela confessa que hoje só bebe vinho, mas continua cometendo excessos. Ela tem sede de poesia e da embriaguez dos sentidos, voa demais e por isso nunca se lembra das coisas objetivas. Confessa que quer parar de fumar. Todas as amigas de sua geração conseguiram. Ela continua achando que ainda tem tempo de planejar um futuro que nunca esteve nas suas preocupações. Ela viveu o tempo todo no presente, usufruindo o melhor dele, mas nos últimos tempos tem esbarrado na expressão senhora em cada esquina e se viu obrigada a fazer um exame de consciência. Os excessos cometidos fazem acelerar o tempo e o melhor parâmetro é constatar que o filho já tem mais de 20. Constrangimento? Não. É apenas uma constatação, porque até há pouco ela cuidava da mãe com mais de 90. Mesmo assim, achava que a mãe tinha uma beleza rara que só a idade é capaz de moldar no rosto e na alma. Por que é, então, que está se preocupando tanto quando lhe dirigem a palavra senhora? Por que, então, ainda insiste em abrigar a menina inquieta, rebelde e compulsiva dentro dela? Lembra-se da mãe dizendo que a mente dela estava em dia, atualizada, mas o corpo não acompanhava mais os pensamentos lúcidos, saudáveis e repletos de sonhos, de vontades de ir à praia, ao cinema, ao supermercado, ao cabeleireiro, de andar pelas ruas quando os ipês floresciam, como sempre fez até os 86 anos. Depois disso, as pernas não acompanhavam mais a mente. Nem mesmo com a ajuda de uma bengala, a mãe conseguia andar tão rápido quanto seus desejos. Depois que a expressão senhora se incorporou à sua figura, ela pensa mais no futuro, nas questões ainda não resolvidas, como não ter onde morar, um lugar para fechar a porta e transformá-lo em ninho para suas incertezas. Não sabe falar inglês nem francês nem espanhol, imagine alemão e mandarim. Está presa à língua pátria e é dependente de um tradutor nas viagens por outros mundos. O filho dela, de 20 ou mais, diz que ela só sabe escrever, nada mais. Mas é escrevendo que ela viaja, anda de carro e torna-se universal. Escrever para ela é libertar os seus fantasmas, é dedicar o melhor dela aos leitores, é abrir as portas internas, mergulhar no oceano profundo das emoções. Ela hoje entende mais a fala da mãe – e olha que não se passaram nem dois anos. A mãe partiu em dezembro de 2008, e os cabelos da filha já estão mais brancos, os sentimentos também amadureceram à força e hoje ela é mais melancólica do que antes. Hoje, na verdade, ela é mais séria, parece mais uma senhora mesmo, porque foi obrigada a crescer de súbito. O termo senhora hoje combina mais com ela do que antes. Amigos antigos quando a encontram dizem que ela está com a mesma aparência, mas também parece cansada. Com o tempo, as perdas vão ficando marcadas não só no rosto, mas também no espírito. Vão fazendo vincos na pele e no coração, vão enrugando os sonhos e os projetos se equilibram em fios tênues. Envelhecer não é perder o viço ou ficar invisível. É ir entristecendo, fechando portas, abrindo a guarda. O termo senhora não a assusta tanto quanto sentimentos aprisionados que vão embaçando a visão e amarrando a alma. A palavra senhora dá certa nobreza, coloca as mulheres no patamar das sábias, das poderosas que um dia se tornarão anciãs e têm um lugar de destaque na tribo das mulheres. A palavra senhora para ela é como uma conquista, a transformação da menina em adulta, em mãe do próprio filho. Como diz Mário de Andrade, “descobri que tenho menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro. Descobri que para mim, o essencial faz a vida valer a pena”. Obrigada, Mário de Andrade: para esta senhora também basta o essencial! Déa Januzzi

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