Um quarto de século de retomada da normalidade institucional em tese seria tempo suficiente para a democracia ter sido incorporada à cena nacional com a naturalidade das coisas que simplesmente "são".
Como água encanada e luz elétrica. Na prática, porém, não tem funcionado assim: temos discutido muito a democracia no lugar de exercê-la sem discussão, o que seria muito mais natural. Depois de reconquistada a democracia a impressão que dá é que o País não sabe direito o que fazer com ela. A questão continua em aberto como ainda nos faltasse, fosse uma meta a ser alcançada, uma cidadela em permanente risco. Comparemos, para efeito de raciocínio, com a estabilidade econômica. Tem dez anos a menos e já saiu da agenda para entrar no campo dos consensos.
Daqueles arraigados aos quais não há quem ouse agredir sob pena de perder a batalha na sociedade, de tão consolidado que está o conceito. Não se observa produção robusta e recorrente de pregações sobre os benefícios da estabilidade e a necessidade de preservá-la. Ela "é" e ponto final. Auto-explicável, auto-aplicável, compreendida e absorvida.
Dora Kramer
O momento vivido pelo País tem despertado questões e aflições.
Vamos enunciar algumas delas e tentar esclarecer os horizontes. "Muita gente acha que a democracia corre riscos quando a lei é menosprezada. Não se sabe se a legalidade que temos é firme o suficiente pra impedir retrocessos." A legalidade é firme?
Em 1946 pensávamos que a Constituição democrática que encerrou o ciclo da ditadura Vargas tinha o apoio irrestrito do povo brasileiro e que, por isso, duraria muito; mas a volta do antigo ditador ao poder quatro anos depois, e o aparelhamento do Estado por seus seguidores abalaram nossa confiança na permanência da ordem constitucional democrática. A desestabilização das instituições não se deveu, então, à Constituição, mas aos que no governo e na oposição fraudaram a sua letra e o seu espírito, como sucederia também de 1961 a 1964.
Não me animo a fazer prognósticos, ainda que acredite na possibilidade de se praticarem políticas constitucionalmente heterodoxas, como, aliás, pode ocorrer com quaisquer partidos ou pessoas que estejam no poder. Melhor será pensar o nosso presente e o nosso futuro em períodos longos como propuseram os grandes historiadores franceses da escola conhecida como Annales.
Sem nenhuma vulgaridade, o ciclo que vivemos no Brasil obedece ao imperativo de por comida no prato de todos os brasileiros e de levar aos menos afortunados educação, saúde, inserção social e participação política. Ainda uma vez, embora não queira ser pitonisa, parece-me que enquanto não se exaurir esse ciclo, a maioria dos cidadãos não atribuirá importância decisiva à boa governança, à probidade inatacável dos gestores do Estado, ao respeito que eles devem às limitações constitucionais e à ética política. O ideal é que o progresso material e a evolução moral sigam pari passu.
Isto me parece possível e percebo claramente que as pessoas e as comunidades urbanas beneficiadas por programas sociais efetivos e bem administrados despertam para outros tipos de exigência, como exação e probidade não só dos servidores do Estado como de seu próprio grupo. "O presidencialismo imperial quebra o equilíbrio entre os poderes. A ponto de Lula ter dito à sua candidata, há algumas semanas: "Espero que o seu Congresso seja melhor que o meu." O desejo de solução imediata e cabal dos problemas que afligem os mais necessitados se sobrepôs à legitimidade ética e à legalidade, representadas pela independência e equilíbrio dos poderes e a autocontenção dos que os exercem. Não são somente os pobres que assim procedem, mas também os que não o são.
Quando o crime, organizado ou não, ameaça, pede-se ação drástica e muitas vezes injurídica, acreditando ser ela mais eficaz do que os procedimentos juridicamente legítimos. Isto não é de hoje, é de sempre, pois os antigos já diziam salus populi suprema lex est (o bem-estar do povo é a lei suprema), para se eximirem do cumprimento da lei. Da mesma forma, quando os juízes exigem da polícia e do Ministério Público o respeito à Constituição e à lei que limitam o discricionarismo na persecução penal, e mandam o Judiciário garantir os direitos individuais de inocentes e infratores, a reação da opinião pública e da opinião publicada quantas vezes denigre o Judiciário tachando-o de frouxo e covarde.
Se o presidente do Supremo Tribunal concede habeas corpus a um homem rico, logo é suspeitado de subalternidade. Por ser rico, ninguém tem cassado os seus direitos fundamentais; tão pouco por ser pobre. "Os tribunais temem os riscos de enquadrar o presidente da República, que pouco se importa com os limites da lei." Não creio que os tribunais tenham medo de enquadrar o presidente. Compete-lhes julgá-lo somente por crime comum, uma vez que os de responsabilidade são da alçada do Congresso. Em matéria eleitoral, temos visto soluções salomônicas que multam o presidente e sua candidata, assim como os opositores de um e de outra. Talvez a Justiça Eleitoral se tenha dado conta dos seus excessos regulatórios que, restringindo os movimentos dos candidatos em dose cavalar, praticamente selam o resultado do pleito. Se o presidente, com seus altíssimos índices de popularidade, faz campanha desinibida por sua candidata, bafejada ainda pela cornucópia dos ricos, a igualdade visada pelo espartilho eleitoral é apenas uma balela.
Fica assim demonstrado que o que assegura a lisura do pleito e a paridade dos candidatos na largada e no desenrolar da campanha eleitoral é menos a multa e muito mais a compostura das autoridades públicas - que, infelizmente, foi jogada no lixo. "A desvalorização do debate abre caminho para uma variante de ''democracia popular'' que poderia destruir as liberdades civis e dificultar a alternância de poder." A alternância dos partidos e dos governantes no poder é um dos requisitos da forma republicana do Estado, como sempre ensinaram as grandes vozes da democracia brasileira, mais que todas a de Rui Barbosa. Porém, essa alternância depende do voto que, sendo livre, não pode ser direcionado pela lei ou pelo ditado de juízes a desalojar quem está para entronizar outros que lá não estão. Independentemente dos critérios formais, o que ocorre hoje na disputa pela Presidência é a persistência do desejo de pão e circo. Mas, na medida em que se realize cabalmente, esse desejo cederá a vez a outro ciclo histórico, impulsionado pela aspiração coletiva e pessoal de valores como dignidade, liberdade e justiça.
Então será a vez da oposição, se ela tiver paciência, determinação e fidelidade a esse ideário. "É preciso dotar a democracia brasileira de garantias mais sólidas." Cada povo tem o autoritarismo que merece e o Brasil tem vivido na ilusão de que a ordem justa e o bom governo nascem da autoridade, não da liberdade. Mas estamos aprendendo com a nossa própria experiência. Os presidentes Hugo Chávez e Lula têm nas qualidades cênicas - histriônicas frequentemente - um traço comum, a exemplo dos líderes carismáticos e autoritários do passado. Não temos democracia popular, o que temos são líderes popularescos que caíram no gosto da maioria, que os tem tornado imbatíveis, pelo menos até que a fome seja saciada.
Célio Borja
3 comentários:
Muito bom o texto da Dora Kramer.
A política corrupta e desprovida de valores não é o problema. Não é causa. É efeito. Assim como a violência, as drogas, a pobreza, etc... A única responsável é a inconsciência humana. A falta de auto-conhecimento. Seres dotados de um potêncial incrível, limitados à mortalidade de seus corpos. Se apegando a cada centímetro de matéria. Dando valor excessivo a tudo o que é provisório, mutável, passageiro. Matando por isso. Roubando por isso.Espalhando sofrimento por isso. Deixando de viver com plenitude por isso!
Tem duas frases que eu gosto muito:
"O mundo está ao contrário e ninguém reparou." (Nando Reis)
"Vamos pedir piedade, Senhor piedade." (Cazuza)
Não sei escrever tão lindamente. Meu vocabulário não é dos melhores. Deve ter "um par" de erros gramaticais nesse texto(essas pontuações me matam!). Mas ando com um nó na garganta!! Vontade de sair por aí gritando algumas coisas que considero verdadeiras. Acho que já está na hora da humanidade despertar, soltar as amarras. Parar de achar que vai conseguir consertar as coisas focando nos fragmentos. Enfim... é isso!
Que a luz da consciência chegue pra todos nós!
Bjss
Bi@
Fico satisfeito, pois, ao menos, vocês (incluindo a Rede Globo) já compreenderam que são minoria.
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