7 de jun. de 2012

Um modo incoerente de fazer jornalismo


Os profissionais de Comunicação, sobretudo os jornalistas, estão sendo cada vez mais vistos com olhos de desconfiança por boa parcela da população. Diante de notícias e comentários estereotipados e (muitas vezes) de mau gosto, o jornalismo já não é mais visto como um lugar de construção e desconstrução de fatos, mas como legitimador de um senso comum superficial. É possível encontrar distorções (sutis e escrachadas) nos mais variados meios de comunicação, nas abordagens de incontáveis temas.
Como seria impossível relatar todas as falhas éticas (sejam de ethos jornalístico ou relativas a um código de moralidade da profissão) que – infelizmente – encontramos publicadas cotidianamente em diversas interfaces, este artigo tem seu foco voltado à cobertura da Marcha das Vadias de Porto Alegre em 2012 pela Rede Brasil Sul de Televisão (RBS – distribuidora da Rede Globo para os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina).
A Marcha das Vadias é um manifesto que ocorre desde 2011 em várias partes do mundo, inclusive em várias cidades do Brasil. A onda de protestos começou quando foi constatado um número bastante alto de estupros na Universidade de Toronto (Canadá) e um policial tentou “conscientizar” as mulheres dizendo-lhes que “não se vestissem como vadias” se não quisessem ser estupradas – como se (absurdamente) as mulheres abusadas pudessem ser culpadas por seu estupro. A manifestação em Porto Alegre aconteceu no dia 27 de maio (domingo) e atraiu pelo menos 1.500 pessoas à Praça da Redenção (Praça Farroupilha).
Roupas curtas
O evento ativista reuniu mulheres, homens, homossexuais, idosos e crianças que reivindicaram igualdade de direitos, clamaram pelo fim do machismo, do abuso sexual e da violência contra as mulheres – independentemente da roupa que elas estejam usando. O movimento pacífico não era partidarizado, embora houvessem algumas pessoas com símbolos e bandeiras de partidos políticos, e não pretendia visibilizar nenhuma organização ou instituição em específico. Apesar de frases e gritos de crítica à Igreja católica (que é totalmente contra o aborto) e ao sistema capitalista (iniciativas mais isoladas), foi uma marcha voltada à sociedade em seus mais diversos âmbitos.
Desde o início, durante a confecção de cartazes, muitos ativistas já comentavam os possíveis desdobramentos midiáticos que a marcha – organizada com a ajuda imprescindível de redes sociais virtuais – poderia causar e especulavam quais seriam os discursos e críticas ao protesto por parte da RBS, que concentra boa parte dos meios de comunicação do estado e da região Sul do país. Mas a empresa surpreendeu. E não foi de maneira positiva.
Distorcer entrevistas e minimizar a participação popular da marcha foi apenas o começo. Afirmar que um movimento que parou uma importante via da capital com mais de mil manifestantes tinha “dezenas de pessoas” no jornal impresso Zero Hora foi uma piadinha bem rápida, perto da stand up comedy que se desenrolaria na segunda-feira subsequente (28 de maio). Logo no Bom Dia Rio Grande, telejornal matinal da emissora no estado, gritos e frases de efeito contra a violência sexual e pela igualdade de gênero foram simplesmente igualados às escolhas de vestuário das mulheres – com direito a comparações com personagens caricaturais de novelas. Mensagens como “Meu corpo, minhas regras”, “Estupro não tem justificativa”, “Pelo fim da violência contra a mulher”, “Menos violência + orgasmo”, “Se ser livre é ser vadia, somos todas vadias”, “Estupro = Machismo”, “Eu não vim da tua costela, tu que vieste do meu útero”, “Basta! Não somos estupráveis”, “Mulher bonita é a que luta”, foram simplesmente ignoradas em parte da matéria, que mostrou a Marcha das Vadias como um protesto para que as mulheres usem roupas curtas ou chamativas. E só.
Participação “oportuna”
Parece óbvio que se a marcha tivesse um motivo eminentemente estético, de aparência, relativo à moda, não haveria o por quê de marchar e de mobilizar tantas pessoas em torno de uma causa. Mas o discurso da RBS deixou claro que o grupo ativista lutava pelo direito de usar roupas consideradas “vulgares” quando as mulheres bem entendessem. Visão reducionista que transfere o valor do poder político das mulheres a uma discussão sobre moda, consumo e corpo físico.
Apesar de a matéria televisiva ter mencionado que a organização do protesto defendia que “[...] a mulher deve ser respeitada, independente (sic) da forma de se vestir”, imediatamente depois a repórter Dayanne Rodrigues diz que as mulheres estavam lutando (pasmem!) para que as roupas justas não fossem consideradas vulgares. O foco da matéria foi nas roupas das mulheres, e não no manifesto pacífico contra o machismo e a violência sexual. E como já não fosse suficientemente incoerente, exibe um trecho de entrevista (que contradiz a fala da própria repórter) com uma das organizadoras da marcha explicando que, não importa a roupa que a mulher use, nada confere a um homem o direito de abusar sexualmente dela.
Até aí, talvez algum leitor pense que esta análise é totalmente feminista, radical e que não considera eventuais deslizes que ocorrem naturalmente na profissão de jornalista, na correria das redações etc. Mas a reportagem é fechada com “chave de ouro” com a participação bastante “oportuna” de uma consultora de moda. Sim, porque uma consultora de moda obviamente iria revelar dados importantes correlacionados a uma marcha contra a violência sexual (quanta coerência!). Deturpando o objetivo principal da Marcha das Vadias, a matéria passa a discutir o que uma mulher pode vestir (ou não) e quando vestir, ratificando assim os padrões impostos às mulheres quanto ao estereótipo e ao comportamento – aspectos ironicamente questionados na marcha.
“Voz do povo”
Quando a repórter diz que “vale o bom senso” em relação às roupas a serem usadas por mulheres, ela deve ter esquecido (ironicamente) sobre como esse é também um elemento primordial na produção de conteúdo jornalístico. O direito de sair de shortinho ou de minissaia defendido na marcha não é um apelo comercial para que se compre mais dessas peças de roupas, mas um pedido de respeito para que, muito vestida ou pouco vestida, nada dê o direito a qualquer homem de considerá-la fácil, vulgar ou “estuprável”. A impressão que ficou é a de que, se não houvesse imagens, facilmente acreditaríamos que a repórter nem teria se dado ao trabalho de ir à manifestação para ouvir a versão dos ativistas.
E as incoerências supracitadas no impresso e na TV do grupo RBS foram apenas uma preparação ao que viria a ser dito em um programa da Rádio Atlântida (pertencente ao mesmo conglomerado comunicacional) horas mais tarde. O locutor Alexandre Fetter, em total desrespeito às manifestantes, disse: “Vão lavar uma louça. Como vou respeitar quem se auto-intitula de vadia?” O comentário gerou revolta por parte de muita gente e gerou uma série de réplicas ao “comunicador” (se é que é possível utilizar essa denominação), a ponto de ele escrever debochadamente em sua conta de Twitter as seguintes mensagens: “Sofrendo ataque de vadias e variações sobre o gênero, a tarde inteira” e “Daí quem se auto intitula vadia fica braba por que a chamo pelo título. Não consigo entender, daí, gurias. Relaxem e, eventualmente, gozem.”
Surge, então, o questionamento: seria essa a “voz do povo” do Rio Grande do Sul? De uma pessoa que utiliza um programa de rádio para debochar de causas ativistas e claramente corrobora com agressões simbólicas machistas? De alguém que sequer foi capaz de pesquisar no Google sobre os motivos do nome da Marcha das Vadias? O já referido “bom senso” citado pela repórter do Bom Dia Rio Grande espera que não.
“Aprodução e transmissão do saber”
Percebe-se que, se a sociedade e a cultura do brasileiro estão tendendo (mesmo que lentamente) à não aceitação de estereótipos e ao não conformismo, o profissional de comunicação das grandes empresas (talvez imposto por seus editores, ou não) deturpa critérios de noticiabilidade, modifica narrativas e sentidos, desconsidera denúncias importantes. E um jornalismo que não acompanha esse processo está fadado a ser tão desacreditado quanto a política eleitoral no país.
Levando em conta a noção de ethos, que seria “a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.220), qual é a imagem de si que os comunicadores estão construindo? Será que os jornalistas e o locutor do grupo RBS tentam ser objetivos à medida do possível, ou seria esse um jornalismo híbrido deformado no qual “nem temos um jornalismo opinativo consistente, pluralista; nem temos um jornalismo noticioso habilitado a exercer a grande reportagem de aprofundamento e investigação dos problemas sociais” (MEDINA, 1988, p. 140)?
Se, como diz Pena (2005), “a notícia nunca esteve tão carregada de opinião”, por que travestir de informativo o que não é? Se o mesmo teórico diz que o jornalismo é uma “prática discursiva especializada de produção e transmissão de saber”, não seria esse saber orientado e direcionado previamente? Se “a percepção individual, para ser ampliada, necessita da assistência de intérpretes munidos com dados não amplamente disponíveis à experiência individual” (BAUMAN, 2004), como proceder quando os intérpretes não estão devidamente informados e bradam o que primeiro lhes vier à cabeça?
Pretensa objetividade
Este artigo não tem a intenção de incitar o boicote à RBS, ou de propor alternativas de comunicação aos produtos do grupo. Mas questionamos como dar credibilidade a uma empresa de comunicação que age da forma supracitada e que, muito irônica e incoerentemente, recém publicou um “guia de ética” que prega que “o primeiro dever do jornalismo é a busca da verdade”, que considera como seu objetivo “assegurar ao público seu direito à informação independente, à opinião plural, às respostas e às correções sempre que estas se fizerem necessárias” e que se diz “uma empresa ética e que se orgulha do que faz”. É difícil encontrar na prática um “bom senso” da RBS que seja tão lindo e transparente como é o guia utópico.
A Marcha das Vadias de Porto Alegre conseguiu o que queria: gerar debates, discussões, dissabores, polêmica e visibilidade ao movimento pelo fim da violência sexual. Junto com um novo pensamento em termos de sociedade e de educação (voltadas à diversidade), o que deve ser repensado no fazer jornalístico e na sua pretensa objetividade?
Tamires Coêlho

2 comentários:

Anônimo disse...

É que esses jornalistas estão mais interessados em agradar à "Santas Madres Igrejas",(católicos, protestantes e demais hipócritas), que preferem "tapar o sol com a peneira" a terem que admitir o machismo, a pedofilia e o mau caratismo que grassa nesse meio.

Cassiano Simões disse...

O blog Amigos do Freud é um dos melhores da web brasileira. Aparentemente apolítico, não se constrange de reproduzir as maiores barbaridades elucubradas pela grande mídia, sempre que o assunto é a esquerda e o PT. Não que ali estejam os anjos, mas a forma acrítica como o assunto é tratado demonstra que a compreensão do jornalismo pelo blog ainda precisa amadurecer muito. Que o futuro lhe seja fértil.

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