23 de nov. de 2012

O lado obscuro do papai

Afinal, quanto de sua história vale a pena abrir para o seu filho? 
E como falar com ele de eventuais fracassos, excessos ou transgressões?
Filho de um garimpeiro espanhol que buscava diamantes no Centro-Oeste, o arquiteto Gil Lopes, de 55 anos, passou a infância sendo transferido de escola em escola. Às vezes, precisava andar a cavalo quatro horas por dia, duas para ir e duas para voltar, só para assistir a suas aulas diárias. Era um aluno oscilante e raras vezes teve bons professores. Nessas andanças, além de ser mandado embora da escola, acabou proibido, certa vez, de entrar na igreja da cidade depois de pego em flagrante tentando roubar hóstias na sacristia. Fazia sempre isso na hora do almoço. Sem dinheiro nem comida, antes de encarar mais uma cavalgada de volta para casa, ele pegava as tais “bolachinhas” para matar a fome.
Se você é pai de um menino, chegará uma hora em que surgirá o dilema da sinceridade e da transparência. A história de Gil, nesse sentido, é exemplar. Contá-la ou não para o filho? Na ânsia de transformá-lo em um parceiro e querer ajudá-lo a se lançar para a vida, será fácil, em algum momento, perder a medida da informação para mais ou para menos. Afinal, quais os limites do que falar para um garoto sobre sua própria história e suas eventuais transgressões? Se acontecer, por exemplo, um questionamento sobre experiências com drogas, deve-se dar detalhes sobre uma certa viagem na juventude? 

E sobre os fracassos – aquela demissão humilhante por ter destratado um subordinado ou cometido um erro grosseiro, ou as frequentes repetições de ano na escola e a maldita expulsão na 6ª série? “Nunca quis induzir o Ariel, que tem 19 anos, a seguir um caminho que não fosse o dele, e, de um modo geral, na escola, ele tem se saído melhor do que eu”, esclarece Gil. “Mas nunca tive vergonha da minha vida e, dentro de alguns limites, tratei de contar minhas experiências para ele.”
No nosso afã de transmitir conhecimento, sempre nos preocupamos se uma história ou determinada informação pessoal não vai abalar a imagem que o garoto faz do pai, provocar a perda do respeito ou de repente transformar seu companheiro de sempre em um estranho. Ele pode pensar, por exemplo, que o pai foi ou é irresponsável e não tem moral para querer que ele seja bom aluno e muito menos para exigir um alto desempenho escolar. 

Ou, caso perceba uma tolerância a bebidas e outras drogas, se sentir à vontade para experimentá-las e embarcar em outros vícios, já que o homem que deveria ser exemplar fez de tudo quando era jovem e parece ter saído ileso. Fica a dúvida se o mais interessante seria omitir, mentir, dar respostas enviesadas e construir uma imagem mais certinha, afinal a ideia é que o menino enxergue no pai alguém virtuoso. Evitar realçar deslizes hedonistas, pecados e mazelas para moldar uma mentalidade positiva no filho é uma fórmula que passa pela cabeça de qualquer pai normal que quer evitar que seu rebento corra grandes riscos.
O caso clássico de teste de sinceridade é o das drogas. O que fazer quando seu filho perguntar alguma coisa sobre esse assunto? Se você nunca experimentou, fica fácil. Basta dizer que mata, destrói a vida, ou, pior, leva ao crime e deixa a pessoa abobada. E se você já experimentou? E se gostou? Aí pinta o medo de que ele prove e se perca, de influenciá-lo negativamente. Como transmitir conhecimento na medida certa, sem sobrecarregá-lo de informação ou afetar a imagem que ele talvez tenha de você? “Não acho que meu filho precise saber se eu fumei maconha algumas vezes aos 18 anos ou não”, diz o investidor autônomo Renato Schmekel, que, inclusive, escreveu e lançou um livro só para enumerar tudo o que quer que seu filho, Pablo, de 8 anos, saiba até completar 20 anos. 

“Não falo sobre esse assunto e nem vou falar. Considero as drogas um erro e, particularmente, não desejo que meu filho as use.” Em certos casos, Schmekel, de 47 anos, defende um modelo de educação talvez antiquado, em que havia uma relação de respeito e medo. Ele acredita que admitir e dar detalhes sobre certas experiências representa um tipo de permissividade que dará motivos para o filho copiar o comportamento do pai. O trabalho de Renato se chama Livro ao Meu Filho e foi realizado com uma intenção principal: desenvolver no pequeno Pablo a chamada inteligência emocional. 

Renato diz que se despiu das vergonhas e falsos moralismos e se desmistificou para o garoto. “Quis mostrar o quanto fui arrogante e competitivo e dizer que ele, se quiser levar uma vida mais feliz, não deve ser como eu fui”, explica. “Perdi meu pai aos 3 anos e acabei criando uma caixa para me proteger do mundo. Não quero que Pablo passe por isso e se torne defensivo, nem fique a vida inteira pedindo aprovação alheia antes de agir.”
O jornalista Luís Colombini, de 47 anos, também é autor de um livro sobre a relação entre pais e filhos, chamado Aprendi com Meu Pai, uma compilação de 54 depoimentos em que pessoas bem-sucedidas contam a principal lição que receberam do homem mais importante de suas vidas. 
Como regra geral, o que ele percebeu, questionando seus entrevistados sobre cenas fundamentais de seu processo de educação, é que é raríssimo alguém lembrar de um discurso paterno ou de uma situação em que foi dado um ensinamento específico. 
O que marca o filho e realmente funciona na transmissão do conhecimento são histórias vividas e exemplos, como o do empresário José Mindlin, que destacou no seu pai uma característica fundamental: o amor à verdade. “Tento buscar alguma coerência entre minha vida e o que digo e mostro para meu filho, até porque quero que seja uma coisa só”, afirma Colombini, pai de Tales, de 15 anos. 
“Procuro não ir muito além do repertório dele e evito informação excessiva.” Como outros pais de adolescentes, Colombini quer abrir canais de comunicação com Tales e encontrar pontos de identificação. Os vínculos entre os dois são fortes e não falta afeto na relação, mas há uma dificuldade do pai para entrar no universo do filho e dar conselhos ou recomendações mais específicos. Ele sente que sabe pouco sobre Tales e não encontra acesso à sua intimidade. Acha o garoto retraído e fica curioso sobre ele, faz perguntas tentando descobrir coisas, mas, em geral, não é muito bem sucedido. “Outro dia perguntei se ele via algum site pornográfico e ele ficou roxo”, lembra. “Acabou respondendo que sim, mas depois se esqueceu do assunto.”
Para alguns especialistas, o excesso de informação causa mais danos do que benefícios. E, frequentemente, o que leva o pai a falar de mais é a sensação de culpa por não poder estar com os filhos todo o tempo que eles gostariam. A ausência paterna, principalmente quando os pais são separados – caso dos três personagens desta matéria –, costuma ser um catalisador de confidências desnecessárias e até de bobagens. 
De modo geral, um adolescente com uma família que o apoia, que tem um desempenho escolar no mínimo razoável e uma vida feliz não tende a se juntar a um grupo de amigos delinquentes, a se perder com a violência ou em algum vício, os maiores temores de qualquer pai. Ainda que tenham experiências com drogas, dificilmente serão fatídicas. Pais atentos deveriam tentar perceber se os filhos estão felizes e satisfeitos com suas vidas, em vez de querer devassar intimidades. 
“Muitos pais estão confusos, sentem que não passam um tempo adequado com os filhos e, para compensar essa ausência, querem virar ‘amiguinhos’ e falam de mais”, afirma a psicóloga Magdalena Ramos, especialista em terapia de família. “Tem de ficar muito claro que o papel do pai é o de pai, o que não significa ser autoritário, mas é importante colocar-se no seu lugar”. Não vem ao caso, por exemplo, contar tudo o que você fez na vida só para conquistar a intimidade do filho. Também não faz sentido fumar maconha ou usar qualquer droga com o garoto só para mostrar que você é um pai legal. Mais importante, diz Magdalena, é transmitir informações úteis e oportunas e, em vez de passar longos sermões, tentar dar um bom exemplo. O que não dá certo é querer se colocar no lugar de amigo, nem ficar culpado pela falta de tempo.
Outro assunto que testa a sinceridade do papai é o sexo. Em geral, os pais demonstram preocupação com o desenvolvimento da sexualidade dos filhos e querem influenciá-los na masculinidade ou despertar-lhes a “macheza”, como se isso fosse possível. Os filhos, por sua vez, se preservam e tentam viver a própria vida, sem se preocupar com a expectativa alheia. O mais comum é que o pai tente sondar o garoto sobre seu interesse pelas meninas e elogie uma mulher que está passando na rua só para ver a reação do filho. 

Ou conte alguma de suas façanhas amorosas para moldar o menino pelo próprio exemplo. Mais uma vez o risco é acabar falando além do necessário. “Puxei conversa com meu filho sobre masturbação e ele disse que não estava a fim de falar no assunto”, conta Schmekel. “Apesar da idade, ele conversa com os amiguinhos e conhece alguma coisa do tema.” Outro dia mesmo, Colombini notou uma moça japonesa na calçada e perguntou para Tales se ele tinha visto como ela era bonita. Os dois estavam no carro. 

Mencionou que sua primeira paixão foi uma japonesinha. Tales não disse nada. “Não sei nada sobre a vida amorosa e sexual de meu filho”, afirma Colombini, com ar de desolação. “Talvez porque ele seja muito menino.” O arquiteto Gil Lopes enfrenta a mesma dificuldade: tenta avançar na intimidade do filho sem colher qualquer resultado. “O Ariel não pergunta nada sobre sexo e prefere não tocar no assunto comigo. O que eu faço de vez em quando é comprar um estoque de camisinhas e dar de presente para ele”, conta o arquiteto, que concentra suas preocupações nas questões de saúde sexual e de gravidez precoce e evita orientações machistas.

Todas essas iniciativas têm um só objetivo: quebrar barreiras de comunicação e conhecer os dilemas e dificuldades do filho para impedir que ele entre em enrascadas ou apoiá-lo na solução de seus problemas. “Não vejo função pedagógica para histórias muito pessoais ou experiências pesadas”, afirma Lopes. “Acho que os riscos que ele próprio enfrenta ensinam mais para ele do que qualquer coisa que eu possa dizer. Minha experiência nunca vai substituir a dele.” Como outros pais de sua geração, Lopes fez mais do que diz, mas não é hipócrita e nem acredita na mentira ou na omissão como recursos pedagógicos. Sua visão é a de muitos pais hoje em dia: não dar demasiados detalhes ou falar mais do que o filho pergunta. Ele acha que não é preciso se expor de mais para transmitir conhecimentos úteis e ajudar Ariel.
Vicente Vilardaga

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