22 de nov. de 2012

O ser e a bola


Como o futebol pode se apoderar da alma do torcedor – e moldar sua personalidade



Um amigo tenta me consolar do rebaixamento do Palmeiras à segunda divisão: “Ainda bem que você tem outros times para compensar!” 
É verdade. Como muitos meninos criados no interior do Brasil, adotei um time para cada Estado da federação. Assim, já que minha cidade não contava com possíveis campeões (havia um revezamento de troféus entre os dois times de Porto Alegre), eu mantinha meu interesse à distância pelo futebol.
Em São Paulo, calhou de meu time ser somente o Palmeiras, um dos símbolos da imigração italiana no Brasil. Mas tenho times espalhados pelo Brasil e pelo mundo, não vou citar todos aqui. Fico apenas com o Rio de Janeiro. Houve um tempo em que adotei quase todas as equipes cariocas, já que eu promovia campeonatos de botão com os amigos na condição de “treinador” dos times cariocas disponíveis. Em relação ao campeonato do Rio, portanto, tornei-me ecumênico, pois gosto de todos. Consigo ser Vasco, Fluminense e Flamengo ao mesmo tempo, bem como Botafogo, Bangu e América.
  O que eu quero dizer é que possuo uma espécie de defeito de personalidade porque não me prendo visceralmente a nenhum clube, embora torça por alguns. Em futebol, meu coração é leviano. Eu colecionava figurinhas de todos os times. Sou de um tempo em que amigos e suas famílias iam aos estádios com camisas de times diferentes, torcendo no mesmo espaço por times rivais. E ninguém se matava ou matava os outros por isso. Com o tempo, os torcedores foram forçados a se transformar em fanáticos. Enquanto isso, cresci e me interessei por outros assuntos além do futebol. Mas ele permaneceu, como o menino permanece no homem.
A razão, no entanto, veio me socorrer. Em vez de sair para berrar ofensa ou me mortificar, passei a refletir sobre como o futebol no Brasil não apenas faz parte da vida das pessoas, como sobretudo constitui o sujeito, para roubar um termo de psicanálise. Assim como Jean-Paul Sartre diria que o ser precede a essência, eu me arrisco a dizer que no Brasil e em outros países a bola precede o homem. O futebol, em especial o time, fornece as características do que constrói o sujeito. E, numa tosca paráfrase a Thomas Hobbes, o homem é o time do homem. Hoje, torcer consiste em uma ação bem diferente daquela de minha infância. 
Torcer é “ser”. Assim, “ser” palmeirense em São Paulo, sobretudo nos últimos meses, significa apreciar as grandes tragédias, purgar os pecados nas chamas da derrota, rastejar em tempos difíceis e sair purificado ao final. No domingo passado, a assistir pela televisão a mais uma derrocada palmeirense, preferi ouvir uma ópera completa, O crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner, na versão “mozartiana” de Karl Böhm. Ao mesmo tempo que terminavam os últimos acordes - que marcam o fim dos deuses e o nascimento da humanidade – ouvi ao longe os fogos da torcida adversária, locupletando-se com a derrota alheia. Não atendi ao telefonema de meu cunhado santista, para não ouvir zombarias. Depois, no Twitter, algum gaiato postou: “Palmeirenses, tranquem as portas e fiquem em casa porque vamos festejar e arrebentar quem usar camisa verde”. Quase fui obrigado a me sentir humilhado, ofendido e acuado.  
A tradição de glórias e derrotas de uma equipe e futebol deve necessariamente pesar sobre os ombros do torcedor. Ser palmeirense é assumir a pungência da tragédia. O palmeirense é o novo sofredor diante da força do destino (é um título de ópera aliás). Ocupa o lugar deixado há muito tempo pelos coritintianos. Da mesma forma, ser corintiano hoje impõe ao ser do torcedor uma certa dose de grandiosa insanidade. Quando a Fiel grita que é um bando de loucos, não é só força de expressão. Trata-se da manifestação de uma crença arraigada na essência de cada um dos integrantes do grupo. Pertencer a uma torcida implica compartilhar cores, valores, origens, amizades, amores e idiossincrasias. É odiar os mesmos inimigos. É matar e morrer por esses “ideais”. Daí o surgimento das agressivas torcidas organizadas, que também podem reencarnar no Carnaval, com suas facções fantasiadas de escolas de samba.
Os reflexos da ontologia da bola acontecem até na vida amorosa. A comédia O casamento de Romeu e Julieta, de 2004, transforma a rivalidade entre as famílias Capuleto e Montecchio, de Verona, para as torcidas corintiana e palmeirense. Um corintiano pede uma palmeirense em casamento, mas precisa se disfarçar de verde para agradar ao sogro, dirigente do Palestra Itália. Conheço uma situação parecida: um casal de namorados, ela palmeirense, ele corintiano, que muitas vezes têm problemas de relacionamento por causa do fanatismo de um e outra. Uma coisa será impossível, infelizmente: vê-los em um setor de qualquer estádio, juntos, namorando, cada um com sua camisa, como teria sido comum em meados do século passado. Torcidas e amor, torcidas e diversidade são termos incompatíveis. As torcidas organizadas – e mesmo as não - se transformam em falanges de uma guerra perpétua e inexplicável. Pertencer a um time significa satanizar aqueles que não pertencem à falange. 
A que se deve tal situação? Talvez à degeneração dos valores humanos e culturais, fenômeno que se repete e se torna mais dramático nos estádios de futebol. Assim, o fanatismo clubístico é tanto um fator de união como de cizânia social. Sigmud Freud e Elias Canetti ensinaram que a psicologia das massas é irracional e causadora de tremendos conflitos. O fanatismo não tem outro sentido que estimular o ódio e o ressentimento ao “outro”. Esse tipo de mobilização em torno de uma ideia, ainda que clubística, já mostrou ser deletério. É algo próximo ao fascismo, e as torcidas organizadas são as atacantes do processo. Como ensinou o Filósofo das Quatro Linhas: “Futebol é futebol – e vice-versa”. Ou, pelo menos, deveria ser assim. O problema é que ele pode deixar de ser só futebol para transbordar para outras áreas. Feito um regime totalitário, por exemplo, o futebol se apodera do sujeito. O esporte atua como um invasor de almas. Sob a capa de cultura, ele vampiriza a vontade e anula a iniciativa do torcedor.

Você, palmeirense, já pensou em não ser palmeirense por um dia, por uma semana? (neste momento, seria aconselhável). E você, são—paulino, santista, gremista e outros, que tal passar umas horas sem encarnar o time, sem pensar nele? Eu, que me cultivei na admiração ecumênica por vários times, acho isso natural e saudável. Não consigo entender a mentalidade de “onda” com que alguns indivíduos cultivam a própria personalidade. Afinal, futebol não é tão importante assim para compor a maneira de viver, pensar e se comportar de qualquer indivíduo. O ser precede a bola - e é maior que ela.

Luís Antônio Giron

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