21 de dez. de 2012

Mexeu com a igualdade, mexeu com todo mundo


O sucesso do filme Lincoln, de Ste­ve Spielberg, ins­pirou uma série de artigos nos Es­tados Unidos ressaltando a importância da po­lítica, quando é realizada por pes­soas generosas com o objetivo de melhorar ávida de milhões.
Os articulistas esperam que a exibição do filme leve os especta­dores a lamentar a mediocrida­de da atmosfera política de hoje e que desperte o desejo de elevar seu nível por meio da própria participação.
Não vi o filme, apenas as entre­vistas de Spielberg e de Daniel Day-Lewis, que interpreta Lin­coln. Consegui, entretanto, o li­vro que, de certa forma, inspirou o filme: Team of Rivals, The Political Genius of Abraham Lincoln, de Dóris Kearns Goodwin. A autora se estende também na biogra­fia dos três candidatos que dispu­taram com Lincoln no Partido Re­publicano. Todos jovens ambi­ciosos e capazes, admirados pe­los seus eleitores.
Não posso prever que efeito o filme terá nos Estados Unidos. Noto apenas que a época empur­rava para a grandeza: todos saí­ram de casa e cruzaram os Esta­dos Unidos para construir sua carreira. E havia um grande tema esperando por eles: a escravidão.
Os grandes temas ajudam, quando os políticos são capazes. Joaquim Nabuco, no Brasil, enri­queceu sua trajetória na luta con­tra a escravidão. Lincoln é produ­to de outra cultura e se insere de modo especial no momento polí­tico americano. Mas, como a re­flexão sobre a política trata de variáveis universais, pode ser que desperte algum interesse no Brasil.
Vivemos um momento estra­nho. Dois presidentes, José Sar­ney e Lula, defendem-se recipro­camente com o argumento de que estão acima de suspeitas ou investigações. Sarney conferiu a Lula a condição de inalcançável e este, por sua vez, no auge do es­cândalo no Senado, afirmou que Sarney não deveria ser tratado como uma pessoa qualquer. Cria­ram uma irmandade dos intocá­veis. Sarney já tem um museu de­dicado à sua vida; Lula está a cami­nho de construir o seu.
Além de intocável e com um museu ainda em vida, Sarney também é imortal. Essa condição ainda falta a Lula, mas não me sur­preenderia se o amigo conseguis­se para ele uma cadeira na Acade­mia de Letras.
Na década de 1960, escrevi um artigo ironizando as pessoas que se achavam especiais porque mo­ravam em Ipanema. Até hoje rola pela internet. Jovem existencia­lista, mostrava a futilidade de se julgar especial por pertencer a al­gum lugar ou grupo ou mesmo por alguma condição nata. Era a forma de negar a importância das opções cotidianas, a construção de nossa realidade por meio das escolhas mais intrincadas.
Sar­ney e Lula não reivindicam uma vantagem nata, muitos menos a que decorre do pertencimento a um grupo ou lugar. Eles se recla­mam intocáveis pelos serviços prestados ao País. E nisso reside seu erro monumental. Não exis­tem serviços prestados ao País que possam garantir uma condi­ção acima de qualquer suspeita. E, se foram prestados com essa expectativa, corrompem as suas próprias intenções generosas.
Sarney e Lula fizeram nesse as­pecto particular um pacto pelo atraso. Com o domínio do Con­gresso que o primeiro exerce e a popularidade do segundo, conti­nuam com potencial de mobili­zar a maioria. Mas sempre existi­rá uma minoria, resistindo com a frase tantas vezes subversiva: so­mos todos iguais perante a lei.

Compreendo que há uma luta política. Os governistas preci­sam proteger a imagem de Lula, pois ela é a garantia de futuras vi­tórias eleitorais. O desgaste de Lula enfraquece um projeto de poder.
Não compreendo, entretanto, o argumento que nos faz retroce­der ao período anterior

à Revolução Francesa. Esse desejo de po­der estendido ao controle da bio­grafia, da inevitabilidade da mor­te, do alcance da lei, é um desejo patético.
Mesmo aqueles que acham que o mundo começou com o nas­cimento de Lula, em Garanhuns (PE), ou com o nascimento de Jo­sé Ribamar, em Pinheiro (MA), deveriam ser sensíveis à bandei­ra da igualdade.

A fraternidade dos intocáveis é uma construção mental que re­baixa as conquistas do movimen­to pela democratização no Brasil e nos divide entre semideuses e seres humanos.
Na verdade, o argumento dos dois presidentes aprofunda a des­confiança na política e nos políti­cos. Por isso a chegada de Lin­coln, o filme, apesar de uma cul­tura e uma época diferentes, po­de ser um pequeno sopro de ar fresco na sufocante atmosfera po­lítica brasileira.
Nem nos Estados Unidos nem aqui é possível repetir a grandeza política de Lincoln. Já no segundo capítulo do livro de Dóris Goodwin é possível imagi­nar como Lincoln brigaria feio com os marqueteiros moder­nos: ele se recusava a dramatizar ou sentimentalizar sua infância na pobreza.

Ainda assim, com todas as res­salvas, precisamos de outras épo­cas, outros líderes, para ao me­nos desejar algo melhor do que o que estamos vivendo. Não me re­firo, aqui, à satisfação majoritária com as condições materiais devi­da. Muito menos quero dar à tra­jetória democrática no século 21 a dramaticidade de um tempo de guerra e escravidão.
Quando um presidente do Bra­sil diz uma barbaridade, senti­mos muito. Quando dois presi­dentes dizem a mesma barbarida­de, isso nos obriga a apelar para tudo, até para um bom cinema.

Depois do cha cha cha delia se­cretaria. Lula se vê em apuros com as denuncias de Marcos Va­lério. Concordo com os peristas de que não se deva confiar nele, embora tenham confiado tão pro­fundamente em 2003. Mas a me­lhor maneira de desconfiar é ana­lisar as acusações, apurando-as com cuidado. E assim que se des­cobre o que é verdade e o que é mentira.
Fora disso, só construindo uma redoma onde Lula e Sarney possam estar a salvo dos percal­ços que ameaçam os simples mortais. E criar essa visão religio­sa de uma santíssima dualidade. E ninguém se ajoelha e reza dian­te dela, porque a ferramenta hoje não é oração do passado. Basta um #tag.

Se Sarney e Lula se contentas­sem com um museu e a condição de imortais, tudo estaria bem. Mas, mexeu com a igualdade, me­xeu com todos nós.
Fernando Gabeira

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