28 de jan. de 2013

Tragédia sem fim


Uma moça se aproxima de Lenir Ferreira de Queiroz Siqueira e pergunta por que ela tem aquelas queimaduras no corpo. “Teve um circo em Niterói, você não era nascida ainda”, começa a responder, quando a moça interrompe: “Ah, mas minha mãe fala...”.

Lenir já está acostumada. Há quase 50 anos, quando sai às ruas, chama a atenção dos que passam. Sobrevivente do incêndio que em 1961 matou cerca de 300 pessoas no Gran Circus Norte-Americano – inclusive seu marido e dois filhos –, ela carrega vida afora o dilema de toda a cidade em relação à tragédia: lembrar ou esquecer? 

Deslumbramento seguido de horror. Esses sentimentos contraditórios ainda estão presentes na memória dos que viveram aqueles dias. A chegada do circo da família Stevanovich a Niterói foi um evento fascinante. “Era dos circos mais ricos que havia na América do Sul. (...) Chegava, fazia passeata, botava banda em cima de uma carreta que ele tinha e entrava na cidade com alto-falante, corneta – ‘Está chegando o Norte-Americano!’ (...) Tinha três ou quatro elefantes, tinha uns vinte cavalos, tinha dromedário, camelo, hipopótamo (...) Nossa! Tinha lhama, bicho que nunca ninguém viu por aqui (...) Ah, tinha um dos melhores trapezistas do mundo... Não era banda, era orquestra o que tinha”, descreve Doracy Campos, o palhaço Treme-Treme, que já havia estrelado o espetáculo.

Para comportar tantas atrações, as dimensões do circo eram também grandiosas. A lona podia abrigar 2.500 pessoas, e estava lotada na sessão vespertina do dia 17 de dezembro de 1961. Às 15h45, quando se aproximava o fim do último número – o salto tríplice dos trapezistas – teve início o maior incêndio de circo de todos os tempos. E a maior tragédia da história do país. Marlene Denise de Oliveira Serrano estava lá: 

Quando gritaram “fogo!”, eu olhei para trás e vi a chama lamber (...) caí num bolo de gente. Eu vi isso quando abri os olhos, porque eu caí de costas, fui empurrada e caí de costas, e a minha vida começou a passar como se fosse slide. E eu, sufocada, de olhos fechados (...) Ali eu fui sentindo, assim que a vida foi passando, e eu sufocando, sufocando... Eu falei: “Morri!” Eu calculei que fosse assim: aquele desespero e, depois, era você se sentir bem. Nisso eu ouvi alguém gritando assim: “Socorro!” Aquelas vozes de pessoas falando, pedindo ajuda, eu abri os olhos e me vi deitada num bolo de gente assim. Eu fiz assim com as mãos e falei: “Ué, eu não morri não?”

“Espetáculo não pôde acabar. Só faltava o salto da morte”, estampou a Tribuna da Imprensa no dia seguinte. O jornal narrou assim o acontecido: “Em menos de 20 minutos o circo ficou completamente destruído, com um montão de corpos carbonizados na porta principal e outros espalhados pelas cadeiras e debaixo das arquibancadas. Um pouco longe do circo, era este o espetáculo: uns se arrastando quase em frente à estação [de trem] da Leopoldina, outros rasgando suas roupas (em chamas) aos gritos. Os que conseguiram sair sem ferimento gritavam por socorro. Dois minutos depois, chegava o Corpo de Bombeiros, que teve só um trabalho: juntar os mortos nos caminhões dos particulares e mandá-los para o necrotério. Praticamente não havia mais fogo”.

Consumada em poucos minutos, a tragédia estava apenas começando. O sofrimento e a comoção vivenciados por parentes, moradores e autoridades foram acompanhados passo a passo pela imprensa. Cada notícia divulgada aumentava a perplexidade coletiva. 

No estádio esportivo Caio Martins foram enfileirados os corpos carbonizados, cobertos com panos brancos doados pelo povo. Uma vez reconhecidos, eram colocados, ali mesmo, nos caixões para o sepultamento. A necessidade de disponibilizar grande número de esquifes de diferentes tamanhos transformou o campo de futebol na “maior e mais triste carpintaria do mundo”, segundo a revista Fatos & Fotos. O governador Celso Peçanha convocou todos os marceneiros e carpinteiros de Niterói para a fabricação dos caixões em regime de urgência. Chamava atenção o número de urnas para crianças. Durante vários dias, a cidade foi envolvida pelo clima dos velórios e enterros. Enquanto ocorriam os sepultamentos, novas covas eram abertas para os próximos. Carros circulavam com fitas pretas de luto.

Outra imagem marcante foi a quantidade de sapatos amontoados no local do desastre. Nélia Siqueira Dupuy, mãe de um menino de 5 anos de idade que sobreviveu, recorda o que chamou sua atenção no picadeiro incendiado: “Quando nós chegamos lá, eu vi que a coisa tinha sido realmente muito feia, porque o que tinha de sapato...”. Quase um eco do que diz o palhaço Treme-Treme: “O que eu via de sapato, de gente – Deus me livre – morta”.

Não escaparam à imprensa reações individuais de desespero. Diante da perda da mulher e dos filhos, um dono de botequim destruiu seu estabelecimento. Outro homem “enlouqueceu”, acusando a vizinha por ter levado seus filhos ao circo. O caso mais difundindo foi o do Profeta Gentileza. Como suas primeiras pregações aconteceram no local do incêndio assim que soube do acidente, até hoje persiste o boato de que ele teria perdido a família na tragédia, versão que não se confirma. O personagem ganharia fama no Rio de Janeiro, pintando suas mensagens em grandes painéis.  

O apoio às vítimas envolveu grande mobilização social. Em Niterói, a maioria dos atendimentos foi feita pelo Hospital Antônio Pedro, que estava fechado havia cerca de 20 dias por causa de uma greve. A carência da instituição era total, e seu funcionamento só foi possível graças ao empenho de órgãos públicos e particulares, e pelo grande número de doadores de sangue. Medicamentos, roupas, camas, comida – em pouco tempo o hospital recebeu mais doações do que era necessário. Comércio e indústria ficaram de portas abertas noite adentro para garantir medicamentos e materiais, atender feridos e realizar sepultamentos. A diretoria do Flamengo anunciou que colocava sua equipe à disposição para organizar um jogo em benefício das vítimas. Senhoras da sociedade criaram um fundo de assistência às vítimas. 

Ações de solidariedade se espalharam por todo o Brasil e também no exterior. A embaixada dos Estados Unidos doou um estoque de antibióticos, ataduras e soro, e seu governo, em colaboração com a Cruz Vermelha, enviou 500 frascos de plasma sanguíneo. Da Argentina veio uma equipe de seis cirurgiões plásticos e oito enfermeiras do Instituto Nacional de Queimados, além de uma tonelada de medicamentos e material cirúrgico. 

“Vi o espetáculo mais triste de minha vida”, disse o presidente da República, João Goulart, em visita ao hospital, acompanhado pelo primeiro-ministro Tancredo Neves. Até o papa João XXIII rezou missa pelos mortos. 

O chefe da equipe responsável pelo tratamento das vítimas de queimaduras se tornaria o mais conhecido cirurgião plástico brasileiro: Ivo Pitanguy. O trabalho foi tão intenso que abriu um grande campo de investigação dessa especialidade médica no país, contribuindo para tornar o Brasil a principal referência em cirurgia plástica no mundo. Hoje médico conhecido em Niterói, Carlos Caldas começou sua carreira ali. Ele acabava de voltar de seu baile de formatura, em Petrópolis: 

Foi o meu batismo de fogo como médico. Na acepção da palavra (...) Me disseram: pegou fogo no circo de Niterói. Eu fiquei desesperado, porque a minha mãe não foi ao baile. Evidentemente, não foi ao baile porque ficou com meu irmão menor, caçula, e eles iriam ao circo. Então, já começou meu drama. Aí, começamos logo a trabalhar. Sofri logo um impacto terrível porque o primeiro paciente que eu fui atender, um minuto ou dois depois ele morreu. 

Centenas de mortos, milhares de vidas afetadas, uma cidade inteira de luto, um país unido na dor e na solidariedade. Menos de 50 anos depois, um episódio tão marcante parece ter se apagado da história. Mas não da memória.

Hoje, poucos sabem dizer a data ou mesmo o ano em que ocorreu o incêndio. E é muito raro encontrar alguém que consiga indicar o local exato onde ele ocorreu. “Tragédia a gente deve esquecer, né? (...) Monumento para uma tragédia seria algo como cultuar um velório”, diz Gilberto da Cunha Lopes, na época repórter da Tribuna da Imprensa, sobre o fato de não haver nenhum marco histórico dedicado ao desastre. Nelli Gomes, que trabalhava na Associação Fluminense de Reabilitação, concorda: “Nós temos que rezar pelos que se foram, pelos que ficaram aqui com problema físico, mental, mas não deve ser lembrado”. O palhaço Treme-Treme é outro que evita tocar no assunto: “Quero falar de coisa alegre”.

Embora os sobreviventes procurem afastar as más lembranças, será que isso é possível? “Não esquece... É um acontecimento que não tem condição de esquecer, não tem condição de esquecer, não tem condição de esquecer... foi muito violento, muito violento”, repete Maria Pérola Sodré, que liderou um grupo de escoteiros e lobinhos voluntários nos trabalhos do hospital. 

Até mesmo Lenir – sempre abordada como memória viva do incêndio – acredita que, com o tempo, ninguém mais falará do episódio. Ela sabe muito bem o quanto custa lembrar. Mas entende também qual é o risco de esquecer: “Amanhã vão dizer que isto é lenda. E não foi lenda”. 
Paulo Knauss 

incêndio do Gran Circus Norte-Americano, uma semana antes do Natal de 1961, deixou cerca de 500 mortos e 120 mutilados. Foi a maior tragédia que Niterói já viveu e causou comoção no mundo inteiro, com votos de pesar inclusive do Papa João XXIII.  A cidade ficou traumatizada e só voltou a ver um circo 14 anos depois.
Incêndio no Circo de Niterói 14

Tragédia

O fogo durou cerca de dez minutos e consumiu rapidamente a lona recém-adquirida, que pesava seis toneladas e era de nylon (detalhes que faziam parte da propaganda do circo). A cobertura, em chamas, caiu sobre os 2.500 espectadores. A multidão tentou fugir, o que causou pânico e pisoteamento.
Morreram 372 pessoas na hora e pelo menos 200 feridos foram hospitalizados, a maior parte em estado grave. Muitos destes não sobreviveram. Como não havia espaço no IML de Niterói, vários corpos estavam sendo recolhidos às câmaras de estocagem de carne bovina da Indústrias Frigoríficas Maveroy.

Culpados

Enquanto Valter Rosas dos Santos jogava gasolina pelo lado de fora do circo, Adílson Marcelino Alves (réu confesso), assistia, dentro, ao espetáculo, se divertindo com o palhaço. Cinco minutos antes de terminar o show, saiu e, mesmo sabendo que amigos seus estavam dentro do circo, botou fogo em tudo” – contou aos jornalistas o próprio Adílson, o Dequinha, o principal responsável pelo incêndio, na presença dos policiais.
- Tribuna da Imprensa, 22 de dezembro de 1961
Três homens foram condenados pelo incêndio:
  • Adilson Marcelino Alves: conhecido como Dequinha, foi condenado a 16 anos de reclusão. Na época, considerava-se que a pena equivaleria à prisão perpétua, pois sendo ele oligofrênico congênito, a cada seis anos seria submetido a um teste psiquiátrico que dificilmente o daria como indivíduo são. Mas onze anos depois, Dequinha fugiu da cadeia e foi encontrado morto em um beco de Niterói.
  • Valter Rosa dos Santos: conhecido como Bigode, condenado também a 16 anos de reclusão.  Cumpriu 13 anos da pena e foi solto, em 1975, em regime de liberdade vigiada.
  • José dos Santos: conhecido como Pardal, condenado a 14 anos de prisão.
O motivo foi vingança. Adilson trabalhou na montagem da lona, mas foi demitido porque o dono do circo, Danilo Stevanovich, descobriu que ele tinha antecedentes criminais. Um dia antes da tragédia, Adilson acusou o funcionário Maciel Felizardo de ter provocado a sua demissão, que o agrediu. Adilson reagiu jurando vingança.

Profeta Gentileza

Seis dias após a tragédia, José Datrino acordou ouvindo “vozes astrais”, segundo suas próprias palavras:
No dia 23 de dezembro de 1961 eu recebi o chamado de três vozes astrais para deixar o mundo material, e viver o mundo espiritual na terra. Eu deveria vir como São José para representar Jesus de Nazaré na terra, perdoar toda a humanidade e mostrar o caminho da verdade que é o nosso Pai. (…) Fui ao Circo ser o consolador de todos que chegavam desesperados porque perderam papai, mamãe…
O empresário pegou um de seus caminhões, foi para o local do incêndio e plantou jardim e horta sobre as cinzas do circo. Aquela foi sua morada por quatro anos. Daquele dia em diante, passou a se chamar José Agradecido ou Profeta Gentileza.

Ivo Pitanguy

Pitanguy e uma equipe de voluntários dedicaram-se, durante meses, ao tratamento das vítimas, através da cirurgia reparadora mas também da cirurgia estética, na época ainda desprezada. Nessa ocasião, Pitanguy organizou o Serviço de Queimados do Hospital Antônio Pedro.
Eram 12 médicos da equipe de Ivo Pitanguy e seis médicos argentinos. Os EUA forneceram 300 metros quadrados de pele humana congelada para ser usada no tratamento das vítimas.

Gran Circus Norte-Americano hoje

Panfleto do Gran Circo Americano
Temos notícias do funcionamento do Gran Circus Norte-Americano em pelos menos três ocasiões:Santos (1996), São José dos Campos (1997) e Joinville (1998).
Nesta última, o circo contava com uma estrutura de 56 veículos, 80 animais, uma equipe de 70 pessoas fixas e ainda 30 trabalhadores terceirizados.
Mas, convenhamos, é difícil sobreviver no mundo dos espetáculos carregando um estigma desses.
Blog de Niterói

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