Então, é isso. Barbie precisa ser ultralongilínea para que mãos infantis possam vesti-la e despi-la sem dificuldade. Ou seja, só num corpinho liso, enxuto e sem obstáculos, as roupas deslizam em caimento perfeito. O esclarecimento foi dado recentemente por Kim Culmone, desenhista-chefe da Mattel, fabricante desta que é a coqueluche entre as meninas desde 1959. Kim me fez entender por que já travei tantas batalhas em provadores de roupa, suando em bicas debaixo de uma iluminação cruel, na tentativa de fazer deslizar uma mísera sainha pelos quadris de uma mulher não exatamente gorda, mas longe de ser o tipo mignon. E agora sei por que zíperes emperrados sempre me irritaram. Seja lá como for, são acidentes de percurso.
Lembro de minha filha, ainda criança, testando modelitos e penteados na sua Barbie. Passava horas no tira e põe, em silêncio, falando sozinha ou numa farra com amigas igualmente viciadas na boneca. E quando desaparecia o bendito sapatinho, ficando o par incompleto? Um deus nos acuda pela casa, móveis revirados, lixeiras, idem, sempre sobrava para o cão a suspeita do sumiço. E assim caminha a humanidade: certamente vou rever a cena quando netas vierem animar a minha existência.
O que me intriga é a longevidade dessa boneca de formas, digamos, absurdas: os peitos são protuberâncias que não se coadunam com a cintura muito mais delineada do que a caixa de um violino. As pernas, finas, retas e compridas, parecem um par de hashi, aqueles pauzinhos para comida japonesa. E os pés, o que dizer dos pés eternamente prontos para o salto? Barbie não sente cãibra. Nem tem calos. Dorme, acorda e vive nas alturas.
Recentemente, o artista gráfico Nickolay Lamm lançou um crowdfunding pela internet, com o propósito de angariar fundos para fabricar uma rival da heroína. Não é a primeira vez que essas rivais pintam em cena, mas, agora, a novidade agitou o mercado de brinquedos. Em um mês de doações, o americano arrecadou meio milhão de dólares para o lançamento da sua Lammy, a boneca de formas naturais: não tão alta, nem tão magra, nem tão tábua quanto a blondie. Aliás, Lammy é morena.
Seu criador martela um conceito: average is beautiful, em livre tradução, a beleza mediana tem lá seus encantos. E assim ousa fazer o contradiscurso para essa esqualidez fashion valorizada por uma sociedade que já decretou: o mundo é dos magros. Ponto.
Lammy usa maquiagem, veste roupas esportivas, tem braços e pernas fortes. Faz o gênero malhadora light. Nick Lamm começou a empreitada pesquisando o que seria uma Barbie "normal", mas daí chegou a uma boneca loura que, perto da verdadeira, parecia um botijão de gás. Resolveu então parir uma criatura nova.
A Mattel saiu em defesa do seu ícone. Contra-atacou pela internet com uma campanha em que afirma que o padrão Barbie não tem nada que se desculpar (#unapologetic, certamente inspirada em Rihanna...) e sapecou um slogan bem bolado: Be Youtiful. Seja linda, você mesma. Não dê bola para gordinhas invejosas que a chamam de varapau. Nem para cafonas que não entendem o glamour de um guarda-roupa em Pantone 219, o mundialmente famoso cor-de-rosa Barbie - uau! Mesmo assim, dizem que a Mattel já iniciou conversas com Lamm, de olho no potencial da boneca saudável.
Esse tititi ao menos esboça uma reação à beleza pré-fabricada, tamanho ultrapequeno. O índice de doenças nervosas a partir de distúrbios alimentares, especialmente a anorexia e a bulimia, tem alarmado a Organização Mundial de Saúde (OMS), que por sua vez ainda não dispõe dos dados globais do problema. Mas a letalidade mantém-se alta (fala-se em 15, 20% dos casos). Em Berlim, na inauguração da Barbie Haus, casa-museu com toda a tralha pink da boneca, ativistas da organização Femen botaram pra quebrar. Com seios à mostra, as jovens feministas protestaram contra um "símbolo sexista" que leva meninas à distorção da própria imagem e a doenças graves.
Por que então essa busca por um corpo de medidas perigosamente irreais? A fotógrafa britânica Sheila Pree Bright há anos denuncia a ditadura estética de um feminino feito de privações. E o faz a partir de manipulações no computador, fundindo imagens de bonecas com imagens de mulheres. Esse trabalho, Plastic Bodies, já foi visto em exposições pelo mundo, sempre com grande interesse. Também há tentativas de lançar as Barbies plus size, mais gorduchas. Não emplacam. E mesmo as Barbies étnicas acabam repetindo estereótipos da boneca branca - só que em "pele" negra: olhos grandes, nariz afilado, rosto comprido, bochechas sulcadas. E muita magreza.
Esta semana ficamos sabendo que a bióloga gaúcha Ana Paula Maciel, ativista do Greenpeace, presa tempos atrás na Rússia por protestar contra a exploração de óleo no Ártico, posou para a Playboy brasileira. No ensaio fotográfico, deram um trato nas longas madeixas de Ana Paula, providenciaram maquiagem matadora e vestiram a moça com um biquíni metalizado - figurino mais para domadora de circo ou assistente de mágico do que para ativista verde. Ela diz que seu cachê vai para a criação de uma entidade protetora dos animais. E jura que os leitores a verão sem retoques na revista. Não sei se Ana Paula vai fazer muito pelos bichos com suas fotos. Mas pode fazer pelas mulheres se insistir em ser vista e admirada com seus quilinhos a mais, distribuídos num corpo onde a perfeição não é uma meta.
O corpo da mulher continuará sendo protagonista no espetáculo da vida. Que ao viço da infância, sucedam o tônus da juventude e depois as marcas que o tempo deposita. Que elas cheguem mansamente, incorporadas sem traumas e tratadas com carinho. Pensei nisso ao ver a veterana atriz francesa Fanny Ardant, numa aparição fugaz no filme A Grande Beleza. Além do pretinho clássico, ela vestia um magnífico sorriso de mulher madura. Se você ainda não viu, vale conferir.
Laura Greenhalgh
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