Enquanto em Brasília se discute a “Fome Zero”, a obesidade no Brasil já tem custos. São um bilhão e cem milhões gastos com consultas médicas e tratamentos para excesso de peso. Estamos cada vez mais gordos, e mais caros! Numa sociedade lipofóbica que só nos quer magros e esbeltos e onde a medicina vê na obesidade um caso de saúde pública, já há militantes do “Fat is beautiful”. A rejeição da obesidade e dos gordos levou Marlon Brando a reagir: “entre mercadores da magreza, diz ele, ser gordo é revolucionário!”.
Antigamente era diferente. A definição social da boa corpulência (l´embonpoint ou em-bom-estado) era bem outra. Lembremos, por exemplo, que a entrada do açúcar e da batata no cardápio europeu modificou os modelos de beleza feminina. O historiador Jean-Louis Flandrin foi o primeiro a apontar a transformação sofrida pelos cânones estéticos, por meio da introdução destes lipídios1. Entre os séculos XVI e XVIII, a Europa abandonava os seios pequenos e quadris estreitos das mulheres retratadas por pintores como Dürer, para mergulhar nas dobras rosadas das “gordinhas” de Rubens e Rembrandt. Gordura não era só sinônimo de beleza, mas, também, de distinção social.
Nas sociedades do Antigo Regime, os indivíduos se distinguiam por sua capacidade em escolher determinados alimentos, em detrimento de outros. A nobreza podia se dar ao luxo de consumir cremes, manteiga, açúcar e molhos ácidos e temperados. Os pobres cozinhavam o pouco que comiam, com banha. Os derivados da cana, por sua vez, eram tão caros que só podiam ser consumidos como remédio. Nestas sociedades, o regime das elites ditava um ideal feminino que andava de par com a corpulência das grandes damas. Não havia formosura, sem gordura! E gordura era sinônimo de riqueza. Havia também uma correlação direta entre gosto alimentar e gosto sexual. Na poesia e na literatura do mesmo período, observa-se que os adjetivos empregados para designar a mulher amada e a comida são os mesmos: “delicada, gostosa, suculenta, doce, deliciosa” etc...
Apesar das preocupações higienistas alimentarem a moda da gordinha − engordavam-se as mulheres muito magras, pois se temia que essas ficassem anêmicas ou histéricas −, a obesidade começava a provocar, em meados do século XIX, interjeições negativas. Sobre as baianas, “os maiores espécimes da raça humana” dizia um estarrecido viajante , estrangeiro de passagem pelo Brasil que essas pesavam mais de 200 libras e andavam “sacudindo suas carnes na rua, e a grossa circunferência de seus braços”. As mulheres brancas eram descritas por observadores estrangeiros como possuidoras de um corpo negligenciado, corpulento e pesado, emoldurado por um rosto precocemente envelhecido. As causas eram várias : a indolência, os banhos quentes, o amor à comodidade, o ócio excessivo desfrutado numa sociedade escravista, o matrimônio e a maternidade precoces, as formas de lazer e de sociabilidade que não estimulavam o exercício físico, o confinamento ao lar impregnado de apatia onde prevalecia o hábito de “desfrutar de uma sesta, ou cochilo depois do jantar”, como explicava, em 1821, o inglês James Henderson.
Apesar do declarado horror à obesidade, os viajantes estrangeiros reconheciam, contudo, que o modelo “cheio”, arredondado, correspondia ao ideal de beleza dos brasileiros, o que explicavam pela decorrência do gosto de seus ancestrais. Gorda e bela eram qualidades sinônimas para a raça latina meridional, incluídos aí os brasileiros, e para explicar essa queda pela exuberância, era invocada a influência do sangue mourisco. Dizia-se que o maior elogio que se podia fazer a uma dama no país era estar a cada dia “mais gorda e mais bonita”, “coisa – segundo o inglês Richard Burton, em 1893 – que cedo acontece à maioria delas”. Gordas quando mocinhas, ao chegarem aos trinta anos já eram corpulentas, incapazes de seduzir o olhar dos estrangeiros. “O leitor pode notar, nessas moças vestidas de preto da cintura para cima, um contraste com a gorda matrona que a segue”, queixava-se Daniel Kidder.
Gilberto Freyre chega a dizer com graça, que as “vastas e ostensivas ancas” das matronas brasileiras eram verdadeiras “insígnias aristocráticas”. preciso fosse, usavam-se suplementos de variado tipo, feitos de barbatanas, lâminas de ferro, pufs de jornal e até “pneumáticos” para preencher e valorizar as virtudes calipígias das que não as tinham. O século XX trouxe transformações. Desde o início do século, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. As idéias de teóricos importantes como Tissot ou Pestalozzi corriam o mundo. Uma nova atenção voltada à análise dos músculos e das articulações graduava os exercícios, racionalizando e programando seu aprendizado. Não se desperdiçava mais força na desordem de gesticulações livres. Os novos métodos de ginástica investiam em potencializar as forças físicas e as mulheres começavam a pedalar ou a jogar tênis na Europa. Não faltou quem achasse a novidade imoral, uma degenerescência e até mesmo, pecado.
Na Europa, de onde vinham todas as modas, a entrada da mulher no mundo do exercício físico, do exercício sobre bicicletas, nas quadras de tênis, nas piscinas e praias, trouxe também a aprovação de corpos esbeltos, leves e delicados. Tinha início a perseguição ao chamado “enbompoint” − os quilinhos a mais −, mesmo que discreto. O estilo “tubo” valorizava curvas graciosas e bem lançadas. Regime e musculação começavam a modelar as compleições esguias que passam a caracterizar a mulher moderna, desembaraçada do espartilho e ao mesmo tempo de sua gordura decorativa. As pesadas matronas de Renoir são substituídas pelas sílfides de Degas. Insidiosamente, a norma estética emagrece, endurece, masculiniza o corpo feminino, deixando a “ampulheta” para trás. Realizada em setembro de 1996, uma pesquisa Datafolha6, cujo título era “Beleza a qualquer custo”, revelava que 50% das mulheres não estavam satisfeitas com o seu peso e que 55% gostariam de fazer uma cirurgia plástica. O dado contrastante é que 61% das mesmas não praticava exercícios físicos, preferindo cuidar da beleza na base da compra de cosméticos. Barrigas perfeitas, pernas rijas, seios altos, enfim, se possível, “tudo no lugar”, graças a produtos milagrosos!
Segundo a Datafolha, 50% não estão satisfeitas com o seu peso atual e 20% gostariam de perder mais de dez quilos. Emagrecer, sim. Fazer ginástica, como propunham os higienistas dos anos 20, não! A preocupação com a beleza suplanta a com a saúde. Microcâmeras que entram no corpo, cânulas que sugam gentilmente camadas de gordura entre peles e músculos, transferência de gordura de uma região do corpo para outra, substâncias sintéticas que funcionam como massa de modelar, tudo isso permite à mulher “fazer-se mais magra e logo, mais bela”. Hoje, a gordura cresce mais rapidamente entre as classes desfavorecidas que não podem se dar ao luxo de regimes e academias. Mas nada disso é novo. Melhorar as capacidades do corpo, exercícios e cuidados com a pele existem na literatura médica desde Hipócrates e migraram daí para os tratados de educação e saúde da Idade Média e do Renascimento.
Tudo bem que as técnicas de ontem são, hoje, consideradas suaves: dança e caminhadas. Interessante é que no passado, o exercício não era jamais emprestado ao mundo masculino, mas ao feminino. Varrer o quintal e esfregar o chão era tido por ginástica eficiente e útil. Recomendavam-se técnicas passivas extraídas das atividades diárias: se deixar sacudir, numa carroça, por exemplo, para tonificar os músculos. Enfim, exercícios tão passivos quanto aqueles a que nos submetemos ao ligar nosso corpos aos eletrodos de cintas que prometem milagres. Não faltavam, também, manuais ensinando as pessoas a “se governar para conservar a beleza e a saúde”. Não eram apenas regimes alimentares, mas regimes de vida onde se buscava o equilíbrio entre exercício e repouso, ar e meio ambiente, alimento e bebida. Já se procurava o famoso equilíbrio que parece faltar, tanto na discussão sobre a “Fome Zero” quanto na lipofobia que tomou conta do país.
Num primeiro momento diríamos que a obesidade já teve seu lugar na história da estética e, tal como a feiúra, é uma questão cultural. Entretanto, desde os primórdios dos tempos modernos, quando identificamos o início do culto à magreza, vemos que ficou reservado à obesidade o lugar da exclusão. Sobretudo às mulheres, que, na atualidade, são excluídas do "mundo fashion", daquele que é aceito pela mídia e que determina o seu espaço social. O mundo globalizado que diminui distânciase espaços também ficou menor para os obesos. Em sua ambigüidade, a globalização disseminou os hambúrgueres e as fritas, que são os representantes máximos desse aumento de peso.
Nestes tempos de "fast food" a obesidade ganha então uma nova dimensão, passando a ser considerada um problema de saúde pública, saindo da polaridade feio x bonito ou aceito x excluído, para entrar na questão morbidade x saúde. Não há mais espaço para tantos excessos ou tanta gordura. Os obesos experimentam, além da exclusão social, uma baixa auto-estima que potencializa ainda mais os núcleos relativos à compulsividade, à ansiedade, às insatisfações sexuais e ao medo de se expor, tão presentes nesse processo de engordamento". No entanto, esses sintomas pouco representam se comparados com a morbidade encontrada quando a obesidade já está instalada. Referimo-nos ao fenômeno da Obesidade Mórbida e de suas conseqüências, tais como a dificuldade nas articulações da marcha, a diabetes do tipo II, o aumento da taxa do colesterol e dos triglicerídeos, a hipertensão arterial e as eventuais complicações cardíacas que se seguem; sem nos esquecer daquelas que prejudicam o sujeito do ponto de vista emocional, como o processo de “anestesiamento” ou o “congelamento” do sentir.
Hoje já podemos afirmar que a obesidade é uma doença! Doença que causa muitos desconfortos, do ponto de vista físico, estético ou psicológico. Ela tem aumentado cada vez mais, chegando a apresentar as características do que podemos chamar de uma epidemia de obesidade. O Dr. Alfredo Halpern diz que parece que quanto mais falamos e tentamos resolver o problema, mais a obesidade cresce. “De duas uma, ou se discute e se age de maneira errada ou a obesidade tem uma espécie de força que a torna evolutiva e incurável”. Preferimos acreditar que mudando a maneira como se vem atuando poderemos contribuir para a diminuição das catastróficas dimensões que ela vem adquirindo. Considera-se obeso o sujeito que tem uma quantidade de gordura maior do que a “quantidade normal...”.
Mary Del Priore; Dirce de Sá Freire
picture by Diego Rodriguez de Silva y Velázquez
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